“A Bíblia é Pró-Escravidão.”
É uma acusação comum nos dias de hoje. Parte do ataque neo ateísta à religião, ela também vem de vários círculos progressistas a fim de defender determinadas visões sociais (em consonância com a chamada hermenêutica do movimento redentor).
A alegação é compreensível. Ela tem algum embasamento aparente e sério, não apenas na lei do Antigo Testamento, mas também nas epístolas do Novo Testamento escritas pelos próprios apóstolos de Jesus Cristo:
Efésios 6.5: “Quanto a vós outros, servos, obedecei a vosso senhor segundo a carne.”
Colossenses 3.22: “Servos, obedecei em tudo ao vosso senhor segundo a carne.”
1 Pedro 2.18: “Servos, sede submissos, com todo o temor ao vosso senhor.”
Então, como os cristãos devem responder a isso? É uma questão complicada que um breve artigo não pode resolver, mas eis alguns argumentos iniciais que podem ajudar a, pelo menos, chamar a atenção para sua complexidade.
Definindo a palavra “escravidão”
Quando lemos versículos como Efésios 6.5, Colossenses 3.22 e 1 Pedro 2.18, ouvimos a tradução “escravo” à luz do nosso próprio contexto histórico. Normalmente, pensamos em escravidão com base em raça, na qual o escravo é propriedade do dono e não tem nenhum direito legal. Esse tipo de escravidão é claramente uma das instituições mais desprezíveis que já desonraram a civilização humana. Não é, no entanto, esse tipo de escravidão que os textos abordam.
A palavra grega “doulos” pode ser traduzida como “escravo”, ou, às vezes, “servo” ou “criado”, e, muitas vezes, refere-se a pessoas que tinham um nível surpreendente de posição social e legal no mundo greco-romano do primeiro século. Muitos não foram “escravos” desde o nascimento, por toda a vida ou por causa de sua raça. O jurista romano Gaio (século II), por exemplo, afirmou que a maioria dos escravos eram prisioneiros de guerra que teriam sido executados se não tivessem admitido essa condição.
De maneira similar, no Antigo Testamento, as leis israelitas libertavam os escravos a cada sete anos (Êx 21.2), ordenavam a pena de morte para sequestradores (Êx 21.16) e, geralmente, buscavam limitar a instituição a fim de proteger o escravo. Além disso, a escravidão geralmente não era instituída por raça, mas por circunstância e situação econômica, como no caso de estrangeiros e devedores, entre outros.
É claro que toda forma de escravidão distorce a intenção criada por Deus para os seres humanos, e há algumas passagens difíceis com as quais temos de lidar. Mas há uma grande diferença entre a malvadez abominável que vemos em um filme como 12 Anos de Escravidão e, por exemplo, o que Paulo diz à igreja de Éfeso do primeiro século ou o relacionamento de Abraão com seu principal servo (Gn 24.2).
Isso não responde à pergunta, mas a enquadra com mais precisão.
Considere toda a Bíblia
Revelação progressiva significa simplesmente que Deus não revelou sua vontade e caráter para a humanidade de uma só vez, mas gradualmente, durante um longo período. Portanto, é preciso ler toda a narrativa da revelação bíblica para interpretá-la de forma justa, em vez de apenas pegar um versículo aqui ou ali.
Os cristãos também acreditam que Deus ajusta sua revelação a contextos históricos particulares e, até mesmo, a estruturas sociais caídas dentro deles. Isso faz sentido quando paramos para pensar – a menos que exijamos que Deus se abstenha de dar instruções ou leis a um determinado povo em um determinado momento, até que todo o mal da sociedade seja removido. Uma exortação ética em um documento pontual (como uma epístola) pode, portanto, não dizer tudo que precisamos saber sobre a vontade e o caráter de Deus. Na verdade, ela provavelmente oferece mais um retrato da vida cotidiana de um cristão em um determinado contexto do que o ideal geral da Bíblia com relação ao mal institucional e estrutural.
Como analogia, posso dizer a um amigo: “Vote nas próximas eleições!”. Será que isso significa que minha filosofia geral considera a democracia o sistema político ideal? E se eu encorajasse um soldado na frente de batalha a seguir as ordens de seus oficiais, isso revelaria minha perspectiva completa sobre as forças armadas, a batalha em que ele está lutando ou a própria guerra em si? Não necessariamente. Faltariam mais informações para chegar a essa conclusão.
Em particular, há dois pontos altos na revelação bíblica que devem ser levados em conta: a Criação, que diz que todos os seres humanos são feitos igualmente à imagem de Deus (Gn 1.26-28, 5.1-3, 9.6), e o Evangelho, que diz que Deus venceu divisões raciais, sociais e religiosas na cruz (Ef 2.11-22; Gl 3.28), e um dia criará um povo “de todas as nações, tribos, povos e línguas” (Ap 7.9) que viverá unido em perfeita harmonia.
É essencial considerar a Criação, pois ela revela a intenção original de Deus para a raça humana. E o Evangelho é fundamental, pois revela a suprema trajetória da obra redentora de Deus.
Se compreendemos Efésios 6.5, mas negligenciamos o contexto geral da história bíblica, podemos perder a visão do todo por focarmos apenas nos detalhes. Por analogia, imagine dizer a alguém “você é um médico ruim” apenas porque a incisão doeu muito, mas sem considerar sua formação ou o objetivo da cirurgia.
A lógica explosiva do Evangelho
Talvez alguém diga: “Certo, mas, mesmo se assumirmos que estamos lidando, na maioria dos casos, com uma forma mais branda de escravidão, e que, talvez, Deus esteja ajustando sua revelação dentro de um contexto histórico, ainda assim, por que a Bíblia não enfatiza a oposição à escravidão?”
Eu entendo essa preocupação. No entanto, uma última consideração ajudou-me a pensar sobre isso nos últimos anos e aprofundou minha convicção de que a Bíblia como um todo é totalmente contra qualquer forma de escravidão: Filemom.
É impressionante que Filemom não seja mencionado com mais frequência nesse tipo de discussão, já que trata da carta em que Paulo fala a um proprietário de escravos (Filemom) sobre seu escravo fugitivo (Onésimo). Na verdade, Paulo escreve a carta justamente porque Onésimo, depois que fugiu de Filemom, tornou-se cristão.
Se as Escrituras realmente fossem a favor da escravidão, o que se esperaria que Paulo dissesse aqui?
Surpreendentemente, Paulo instrui Filemom a receber Onésimo “não como escravo; antes, (…) como irmão caríssimo”, e pede: “recebe-o, como se fosse a mim mesmo” (v. 17).
Em outras palavras, Paulo anula a relação senhor-escravo e constrói, em seu lugar, uma relação irmão-irmão, na qual o ex-escravo é tratado com toda a dignidade com que o próprio apóstolo seria. Logo, mesmo antes de a própria instituição da escravidão ser abolida, a obra do Evangelho abole as suposições e os preconceitos que a tornam possível.
A epístola de Paulo a Filemom pode não corresponder a um manifesto abolicionista completo, afinal, como as outras passagens citadas, ela opera em um contexto particular e não aborda toda a sociedade. No entanto, acho que mostra como a lógica do Evangelho é totalmente contrária à escravidão. Pergunto-me se é, em parte, por isso que tantos abolicionistas fervorosos foram cristãos.
E, no mínimo, ao considerar a exortação de Paulo a Filemom, fica difícil simplesmente citar Efésios 6 e Colossenses 3 e dar a questão por resolvida.
A luta não acabou
Suspeito que minhas reflexões aqui não satisfarão totalmente a todos, já que eu mesmo ainda não estou completamente satisfeito com elas. Há muito mais a ser dito sobre esse tema desafiador.
Mesmo assim, acredito ser útil chamar a atenção para as diferenças entre escravidão antiga e recente, considerar como Deus trabalha, ao longo da história, em situações imperfeitas, e analisar a escravidão no contexto maior do supremo propósito de Deus para a criação e redenção. Sobretudo, acho útil considerar o exemplo do próprio Jesus Cristo, para quem toda a Escritura aponta. Ao contemplar Jesus e seu sacrifício na cruz, sei que tenho razões para confiar na bondade do coração de Deus.
Ainda tenho muitas dúvidas sobre esse assunto. Mas isso me dá a esperança e a perspectiva de que preciso para continuar lutando.
Traduzido por Bruno Nunes.