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Muitas pessoas em nossa cultura, tanto dentro como fora da igreja, têm problemas com a ideia de um Deus irado. Muitos não-crentes olham para as passagens bíblicas em que Deus está irado, julgando pessoas, e pensam: “É justamente por isso que religião é uma coisa tão primitiva e perigosa”. E muitos cristãos parecem querer diminuir o tom, ou mesmo excluir completamente do nosso credo, a doutrina da ira divina. Ela é vista como um constrangimento, algo a ser amenizado, modificado, explicado, reconfigurado.

Muitos, por exemplo, se sentem mais à vontade com a visão que C. H. Dodd popularizou no início do século 20, de que a ira de Deus não se refere à atitude de Deus em relação às pessoas, mas ao inevitável processo de causa e efeito de um universo moral. Semelhantemente, outros apontam para passagens como Romanos 1.18-32 para argumentar que a ira de Deus é simplesmente uma reação passiva, onde o pecado colhe suas consequências.

Todo esse desdobramento não é uma questão secundária ou irrelevante para a vida e a adoração da igreja. A doutrina da ira divina é parte integral da mensagem do evangelho e, portanto, afastar-se dela, inevitavelmente trará consequências de longo prazo para a fé e a vida da igreja.

Vital Para o Evangelho

Creio, por exemplo, que o impulso fundamental por trás de muitas teologias revisionistas, sobre a expiação, está em seu desconforto com a doutrina tradicional da ira divina. George Smeaton declarou lá atrás, em 1870: “A questão da ira divina é, no presente, o grande ponto em debate, quando se trata da expiação”. Creio que seu comentário permanece cabível, ainda hoje, nas discussões sobre a expiação. De modo geral, nossa perspectiva da ira divina indicará nossa perspectiva sobre a expiação.

Penso que os movimentos que se distanciam da doutrina do inferno também estão, muitas vezes, relacionados ao incômodo com a ira divina. Por exemplo, lembro-me da pergunta de Rob Bell no vídeo promocional de Love Wins [O Amor Vence]: “Que tipo de Deus precisaria nos salvar de Si mesmo? E como isso poderia, eventualmente, ser uma boa notícia?” Para Bell, a raiz da questão não era apenas o inferno em si, mas a noção mais geral de ira e julgamento divinos.

Solidarizo-me profundamente com aqueles que podem estar lutando com essa doutrina, especialmente aqueles que lutam porque a tem visto de maneira insignificante, ou associam-na com sua experiência de ira humana pecaminosa. Com o intuito de ajudar, eis aqui quatro problemas em minimizar a ira divina (ou negar suas dimensões ativas e pessoais).

1. A Bíblia

Se queremos nos afastar da noção de um Deus irado, ao mesmo tempo em que temos em nossas mãos a Bíblia, que é incontestável, teremos um levantamento revisionista bastante pesado para fazer. Eu diria que esse esforço é comparável à tentativa de Thomas Jefferson de recortar o sobrenatural da Bíblia. Basta digitar “Lord wrath” [Ira do Senhor] ou “God angry” [Deus irado] na pesquisa do Bible Gateway [site em inglês]. Existem mais de 600 referências à ira divina na Escritura.’

O que mais me impressiona, no entanto, não é a frequência com que a Palavra de Deus se refere à da ira de Deus, mas a ausência de constrangimento, hesitação ou tremor de pés, tão frequentemente presentes nas atitudes contemporâneas em relação a essa doutrina. Na Bíblia, a ira de Deus não é o problema, mas a solução; não é uma doutrina ofensiva que precisa de defesa, mas a reivindicação por justiça, há muito aguardada, sob o clamor angustiado dos profetas: “Até quando, Senhor?” Daí a ira de Deus ser sempre expressa com as mais veementes metáforas e com a mais firme linguagem. Note, por exemplo, a metáfora do fogo (implícita nas palavras “ardia” e “furor”) empregadas pelo narrador de 2 Reis 23.26, depois de registrar o pecado de Manassés:

Nada obstante, o SENHOR não desistiu do furor da sua grande ira, ira com que ardia contra Judá, por todas as provocações com que Manassés o tinha irritado.

Ou considere o versículo de abertura de Naum (1.2):

O SENHOR é Deus zeloso e vingador,

o SENHOR é vingador e cheio de ira;

o SENHOR toma vingança contra os seus adversários

e reserva indignação para os seus inimigos.

Alguns pensam que o Antigo Testamento enfatiza a ira de Deus, enquanto o Novo Testamento enfatiza o amor de Deus. É mais preciso dizer que o amor e a ira de Deus estão presentes fortemente no Antigo Testamento, e ambos são definidos ainda mais intensamente no Novo. Apocalipse, por exemplo, prevê os reis da terra pedindo que as montanhas caiam sobre eles porque não podem suportar a ira do Cordeiro (6.15-17). Depois, ele defende um Cristo guerreiro, com uma espada e um exército, que vem para julgar as nações e “pisa[r] o lagar do vinho do furor da ira do Deus Todo-Poderoso” (19.15). Isso não soa como um processo impessoal e passivo de simplesmente deixar o mal colher suas próprias consequências.

J. I. Packer dedicou um capítulo de seu clássico “O Conhecimento de Deus” à ira de Deus, e nele fez uma pergunta valiosa:

Claramente, o tema da ira de Deus é aquele sobre o qual os escritores bíblicos não sentem quaisquer inibições. Por que, então, deveríamos nós ficar inibidos? Por que, quando a Bíblia se manifesta sobre isso, deveríamos nos sentir obrigados a ficar em silêncio?

2. História da Igreja

Esse incômodo com a doutrina da ira de Deus parece, primariamente, ser um desdobramento ocidental recente. Em geral, os cristãos pré-modernos não tinham problema com a noção de um Deus indignado. Na verdade, eu teria dificuldade em encontrar qualquer teólogo importante, antes de 1750, que considerasse as atuais objeções à ira divina como algo que não fosse estranho, alarmante e muito extravagante.

A doutrina do juízo divino, um ensinamento irmão à ira divina, até alcançou o estatuto de credo. Os credos mais antigos e ecumênicos (dos Apóstolos e de Nicéia) afirmam que Cristo “há de vir julgar os vivos e os mortos”, e o Credo de Atanásio (também ecumênico) ampliou o juízo divino para incluir sentença para o “fogo eterno”.

O princípio do cristianismo ortodoxo e credal, de um Deus que julga o mal, foi estabelecido há séculos. Nem esse ponto distinguiu, de fato, o cristianismo das outras religiões monoteístas. Maimônides (judaísmo), Maomé e Martinho Lutero estavam todos de acordo quanto a este ponto.

3. Considerações Culturais

Por que a ideia da ira de Deus (assim como o Seu julgamento) não requereu, para a maioria dos cristãos, em toda a história da igreja, nenhuma defesa? Por que, ao contrário, ela tende a difundir-se nas sociedades mais prolíficas e confortáveis? Talvez porque seja difícil valorizar a justiça, a pertinência e até mesmo a desejável ira de Deus quando temos vidas bastante cômodas. Quando nos encontramos face a face com o mal brutal (ao nos sentarmos com uma vítima de estupro ou caminharmos pelos corredores de Auschwitz), a ideia de um Deus indignado raramente nos é ofensiva. Pelo contrário, entendemos porque os escritores bíblicos compreendiam a ira de Deus como uma coisa boa, uma parte justa e adequada da governança mundial. Miroslav Volf defende esse ponto com uma força devastadora:

Minha tese de que a prática da não-violência exige uma crença na vingança divina será impopular entre muitos cristãos, especialmente com os teólogos do Ocidente. Para a pessoa que está disposta a descartá-la, sugiro imaginar que você está dando uma palestra em uma zona de guerra (que é onde o documento no qual este capítulo está embasado foi originalmente palestrado). Entre os seus ouvintes, estão as pessoas cujas cidades e vilas foram primeiramente saqueadas, depois queimadas e niveladas ao chão; cujas filhas e irmãs foram estupradas; cujos pais e irmãos tiveram sua garganta cortada. O tópico da palestra: Uma atitude cristã em face à violência. A tese: Não devemos retaliar, pois o amor de Deus é perfeito e não-coercitivo. Logo você descobrirá que é preciso o silêncio de uma casa suburbana para o nascimento da tese de que a não-violência humana corresponde à recusa de Deus em julgar. Em uma terra abrasada, encharcada do sangue de inocentes, ela invariavelmente morrerá. E, conforme a vemos morrer, faremos bem em refletir sobre muitos outros cativeiros agradáveis ​​da mente livre.

4. A Psicologia da Raiva

Para além de quaisquer considerações teológicas ou ainda religiosas, a ideia de que o amor e a ira estão em desacordo é difícil de conciliar com a psicologia humana básica. Todos nós conhecemos pessoas boas e amorosas que se irritam, precisamente, porque são boas e amorosas. Que bom pai não se irrita, por exemplo, com o maltrato de seus filhos? Será que existe alguém que não sente raiva quando vê o mal real no mundo (como por exemplo, ganância desenfreada ou hipocrisia flagrante)? Será que esta raiva revela falta de solidariedade? Não, exatamente o contrário: Sentimos raiva de injustiças e do que é errado porque nos preocupamos com as pessoas. A raiva é como o bem responde ao mal, assim como os olhos se retorcem diante de luzes muito claras ou as mãos se encolhem em reação à superfícies quentes.

Ouso dizer que um Deus que nunca se irrita, um Deus que deixa o clamor da vítima e do oprimido sem resposta pela eternidade, não seria bom e, portanto, não seria Deus. Fica difícil adorar, crer, ou mesmo imaginar tal Deus. Como Tim Keller diz em seu livro, A Fé na Era do Ceticismo:

Crer em um Deus de puro amor, que aceita todos e não julga ninguém, é um grande ato de fé. Não apenas nos faltam provas disso na ordem natural, como também não há apoio para essa ideia em nenhum texto histórico ou religioso […] Quanto mais examinamos tal noção, menos justificada ela parece.

Evangelho Ofensivo

Podemos pressupor intuitivamente que um processo impessoal, do tipo, “o mal é seu próprio castigo”, seja uma maneira mais comedida e humana de alcançar a justiça neste mundo. Mas um processo impessoal não pode nos perdoar, enquanto que um Deus irado pode. Podemos ser tentados a negar a noção da ira divina em qualquer lugar, mas encontraremos mais liberdade e conforto em reconhecê-la e ver sua solução no Calvário.

Pode parecer difícil para a sensibilidade moderna olhar o corpo ensanguentado de Jesus na cruz e dizer: “Eu ajudei a colocá-Lo ali; é assim que Deus pensa em relação ao meu pecado”. Dizer isto é humilhar-se sob a ofensa do evangelho; é a última rendição, a morte do ego, o fundo da agulha pelo qual o camelo do orgulho humano deve encolher-se e espremer-se. Mas também é liberdade, porque a pessoa que diz: “Jesus enfrentou a ira que eu merecia”, também pode dizer: “Agora tenho o amor e o favor que Jesus mereceu”. Somente a pessoa que se sujeita à ofensa do evangelho pode ser elevada para ver plenamente a glória dele.

Traduzido por Rafael Salazar.

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