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O livro “A Cabana”, de Paul Young, vendeu 20 milhões de cópias, inspirou um grande filme e gerou muita reflexão e discussão espiritual. Algumas pessoas apreciaram sua representação da fé e do sofrimento. Outras ficaram incomodadas com suas excentricidades teológicas. Não foram poucos os que empregaram aquela palavra que começa com “h” para descrevê-lo (heresia). Contudo, o fato de “A Cabana” (e outros livros de Young) serem romances, torna difícil saber exatamente onde colocá-los. 

Recentemente, com a publicação de sua primeira obra de não-ficção, “As Mentiras que Nos Contaram Sobre Deus” (Ed. Sextante), Young toma uma atitude mais propositiva e concreta no que diz respeito às suas crenças. Embora o livro se mostre preliminar e dialogal, ele definitivamente se posiciona teologicamente e, muitas vezes, de forma bastante enérgica. Cada um dos 28 capítulos é dedicado a expor uma “mentira” que acreditamos sobre Deus, e a explicar a verdade oposta correspondente.

Infelizmente, a teologia adotada nesse livro representa um desvio amplo e inequívoco da visão cristã ortodoxa. Isso não quer dizer que tenho uma animosidade pessoal contra o autor, tampouco questiono suas intenções. Mas o motivo de categorias como “ortodoxia” e “heresia” terem surgido na história da igreja se deve ao fato de cristãos terem sustentado que existem maneiras corretas e erradas de se pensar sobre Deus, e que indicar as diferenças é importante. Quando um livro se distancia do cristianismo histórico e clássico, é fundamental ressaltar de forma clara as diferenças.

Diante da impossibilidade de ser exaustivo, me deterei em três aspectos problemáticos abordados no livro acerca do evangelho, da humanidade e de Deus. Depois disso, mostrarei uma preocupação geral sobre o método do livro e, por fim, um apelo final.

O Evangelho Salvou a Todos? 

Ninguém que está lendo e adotando “As Mentiras que nos Contaram Sobre Deus” sentirá a necessidade de se arrepender de seus pecados e confiar em Cristo para a salvação. Isto porque Young diz que não precisamos disso:

“Boas-novas não quer dizer que Jesus abriu a possibilidade de salvação e você, portanto, foi convidado a recebê-Lo em sua vida. Evangelho significa que Jesus já te incluiu na vida dEle, em Seu relacionamento com Deus, o Pai, e em Sua unção no Espírito Santo.  As boas-novas são a respeito de Jesus ter feito isso sem a necessidade do seu desejo. Não importa se você crê ou não, isto não tornará a questão mais ou menos verdadeira.”

Antevendo a acusação de universalismo, Young põe as cartas na mesa: “Você está sugerindo que todos serão salvos? Você acredita na salvação universal?” “É exatamente disso que estou falando!”. Logo depois, ele é igualmente direto: “Todo ser humano que você conhece… é filho de Deus”. Portanto, o inferno, diz ele, não é separação de Deus, e sim meramente a dor de resistir à salvação que temos e da qual não podemos escapar; a morte não resulta em julgamento final, mas apenas introduz “um processo restaurativo cujo objetivo é nos libertar para corrermos para os braços do Amor”.

Young, na verdade, não apresenta argumentos para o universalismo, tampouco um relato organizado de suas implicações (estou curioso para saber se ele, conforme Orígenes, defenderia a salvação de todos os demônios). Entretanto, ao reunir diversas declarações, parece-me que o universalismo de Young é fundamentado em uma visão cristológica particular. Um exemplo disto está no prefácio de C. Baxter Kruger, que ele endossa como sendo “o fundamento do que proponho como Verdade”. Kruger, aqui, em um resumo em itálico, basicamente sintetiza o evangelho como a boa notícia de que o Deus triúno e a humanidade uniram-se na obra encarnada de Jesus Cristo. Por essa razão, ele explica: “O autor e eu consideramos o conceito generalizado de que o ser humano está separado de Deus como a mentira fundamental, mentira essa que nega a própria identidade de Jesus”.

Essa espécie particular de universalismo cristológico, em que “a mentira fundamental” é que o ser humano está separado de Deus, pode ser considerada como o tema principal do livro.  Ele se repete no prefácio, nos agradecimentos, na conclusão, no resumo de Bonhoeffer e em “mentiras” como “você precisa ser salvo” (cap. 13), “nem todos são filhos de Deus” (cap. 24) e “o pecado nos separa de Deus” (cap. 27). 

O que está em jogo aqui não é meramente o universalismo, e sim uma visão particular do evangelho. Quando, por exemplo, Young afirma: “Jesus não veio para construir uma ponte de volta para Deus ou para oferecer a possibilidade de se unir a Ele”, ele justifica essa afirmação com base na sua compreensão da obra de Cristo em que “não há” nada fora de Deus… “Jesus é, na realidade e historicamente, Deus se unindo plenamente a nós em nossa humanidade”.

Na Bíblia, entretanto, não há menção de que o ser humano seja incluído de maneira universal e incondicional no escopo da obra salvadora de Cristo. Pelo contrário! O ser humano é chamado urgentemente a apropriar-se da obra de Cristo por meio da fé e do arrependimento. A Bíblia não afirma: “Jesus veio para nos salvar, você não pode evitar isso”. Ela afirma o contrário: “Jesus veio para nos salvar: Arrependa-se e creia” (At 3.19). 
Lamentavelmente, Young não se ocupa com o ensino bíblico que tem levado muitos cristãos a rejeitarem o universalismo. Consideremos, por exemplo, as advertências recorrentes de Jesus acerca do inferno como um lugar de “choro e ranger de dentes” (Mt 8.12; 13.42; 13.50; 22.13; 24.51; 25.30; e assim por diante). Na verdade, o leitor ingênuo do livro de Young pode nem mesmo perceber que o universalismo é historicamente uma questão controversa, condenada, por exemplo, pela igreja, em sua formulação por Orígenes, no Quinto Concílio Ecumênico de Constantinopla, no ano 553 d.C.

O Pecado Nos Separa de Deus?

Há outra razão pela qual o livro “As Mentiras que nos Contaram Sobre Deus” desencorajará os leitores a se arrependerem de seus pecados: Não há a crença de que temos muitos pecados para nos arrependermos.  “Sim”, Young admite: “Temos os olhos enfermos, mas não um núcleo de maldade. Somos verdadeiros e corretos, mas muitas vezes ignorantes e estúpidos […]. Nossa condição é a de um cego, não de um depravado”.

Young pode falar do pecado como uma espécie de “errar o alvo”, mas o alvo que ele erra não tem a ver com a perfeição moral de Deus, e sim, com a “verdade do seu próprio ser”. Young continua: “Com que se parece a verdade do seu ser? Com Deus. Você é feito à imagem de Deus, portanto, a verdade do seu ser se parece com Deus”. Assim, para Young, “pecado” não nos separa de Deus: na verdade, “ninguém jamais foi separado de Deus”. 
Tenho a impressão de que parte da motivação de Young, no que diz respeito a afirmar nossa humanidade, se deve ao fato de que ele quer ajudar as vítimas de abuso e aqueles que têm problemas de autoestima. Em relação a isto, estou plenamente de acordo com a defesa da dignidade de todo ser humano como portador da imagem de Deus. Desejo, da mesma forma, que as pessoas oprimidas sejam transformadas pelo terno e afetuoso amor de Deus.

Na Bíblia, porém, nossa condição de portadores da imagem de Deus não está em desacordo com nossa condição de pecadores que precisam de salvação. Não há dúvida de que nosso pecado nos separa de Deus. O profeta Isaías, por exemplo, declarou ao povo de Deus no Antigo Testamento: “Mas as vossas iniquidades fazem separação entre vós e o vosso Deus; e os vossos pecados encobrem o seu rosto de vós, para que vos não ouça” (Is 59.2). Se quisermos ter a afeição de Deus, é preciso reconhecer nossa profunda necessidade de Seu perdão. 

Deus Tem Expectativas a Nosso Respeito?

O Deus de “As Mentiras que nos Contaram Sobre Deus” é fundamentalmente definido por um tipo de amor; ele gosta de nós, nos valoriza, nos convida para um relacionamento, mostra interesse por nós e assim por diante. Pode-se confirmar muitas dessas declarações e, de fato, o amor está no centro do retrato bíblico sobre Deus.

No entanto, o livro passa a impressão de que Deus ama apenas desse jeito, substituindo outros atributos divinos tradicionais e diminuindo a absoluta transcendência de Deus. Young despreza a ideia de que Jesus morreu na cruz para nos resgatar do juízo de Deus. Ele nunca fala da autoridade de Deus, ao contrário, ele diz que Deus se submete a nós (cap. 4). Ele nem mesmo permite que Deus tenha expectativas a nosso respeito. Para Young, quando agimos através de nossas trevas e mentiras, Deus apenas sofre por nós e conosco; Ele “nunca está desapontado com você; Deus não tem expectativas a seu respeito”.

A força e a soberania de Deus também são colocadas em risco. Para Young, dizer que “a cruz foi ideia de Deus” é uma mentira (cap. 17); se a origem da cruz está em Deus, então Ele é um “cruel e monstruoso abusador cósmico”. Mais uma vez, seria bom lidar com os textos bíblicos que claramente se opõem a isso (por exemplo, Is 53.10; At 2.23). Se a cruz não foi uma ideia de Deus, então de quem foi? Young afirma que foi apenas algo que fizemos, uma manifestação de nosso “compromisso cego com as trevas” ao qual Deus se submeteu. Mas Deus poderia ter impedido isso? Isso é incerto, uma vez que dizer que “Deus está no controle” é uma mentira (cap. 3). 

O deus de “As Mentiras que nos Contaram Sobre Deus” não é o Rei majestoso, pleno e absoluto, como retratado na Bíblia. Não se pode ter certeza se esse deus é onipotente.

Como Sabemos Como Deus é?

Em um determinado momento de seu livro “Cristianismo Puro e Simples”, C. S. Lewis rejeita as “filosofias pueris” de respostas simplistas demais para serem verdadeiras. Diz ele: “A realidade, com efeito, é algo que ninguém poderia adivinhar. Este é um dos motivos pelo qual acredito no cristianismo. É uma religião que ninguém poderia adivinhar.”

A tirada de Lewis tem um quê de plausibilidade. Uma vez que a cultura esteja mudando constantemente, mas Deus (como os cristãos professam) nunca muda, a teologia nunca poderá concordar completamente com nossas percepções culturais. Sempre haverá pontos de atrito entre a verdade e o “espírito da época”; nunca será óbvio e fácil formar um conceito sobre Deus, dentro de nossas capacidades naturais.

Reconhecer isso é decisivo para a teologia. Isso determinará se estamos indo na direção certa. O teólogo-mártir alemão Dietrich Bonhoeffer expressou bem esse ponto em uma carta de 1936: 
“Ou conheço o Deus que busco a partir de minhas próprias experiências e compreensões, dos significados que atribuo à história ou à natureza — ou seja, de dentro de mim mesmo — ou conheço a Deus baseado na revelação de Sua própria Palavra. Ou determino o lugar em que encontrarei a Deus, ou permito que Deus determine o lugar onde Ele será encontrado. Se sou eu quem diz onde Deus estará, sempre encontrarei um deus que corresponda a mim, que me é agradável, que se ajusta a minha natureza. Mas se é Deus quem diz onde Ele estará, então lá verdadeiramente é um lugar que, a princípio, não será de todo agradável para mim e que não se ajusta muito bem comigo.”

Bonhoeffer prosseguiu em argumentar que o verdadeiro Deus é encontrado pela humilde aceitação de Sua revelação na Bíblia, e pelo olhar em fé para a cruz de Jesus Cristo. Esta abordagem contrasta com a de Young, que argumenta que, “para entender quem Deus realmente é, você pode começar olhando para si mesmo”.

Essa diferença metodológica básica afeta minha consideração geral com “As Mentiras que nos Contaram Sobre Deus”: O livro torna Deus “agradável” demais (Bonhoeffer) e “adivinhável” demais (Lewis). As ideias dele soam agradáveis; suas intuições são coerentes com os valores ocidentais modernos; ele conflita com as crenças cristãs históricas de todas as maneiras que nosso ethos cultural faz. Quem, nesse ambiente, não irá gostar de um Deus que salva a todos, afirma nossa bondade essencial e não espera nada de nós?

Eu fico com a abordagem de Bonhoeffer ao invés da de Young, e com o cativante, terrível e enigmático Deus dos credos e da Escritura, ao invés do deus mais aceitável, 'adivinhável', e moderado da percepção ocidental moderna.

Verdadeiras Boas Novas

Quem abraça “As Mentiras que nos Contaram Sobre Deus” não pode cantar com John Newton, e demais gerações de cristãos, o seguinte verso:

“Maravilhosa graça! Quão doce é o som que salvou um miserável como eu!”

Para cantar isso, você tem de saber que é um miserável. No entanto, Young persiste em dizer que não somos miseráveis (cap. 2). De fato, ele até mesmo se opõe à canção contemporânea que começa com “Tu és bom, tu és bom, quando nada é bom em mim”.

O verdadeiro evangelho é melhor do que isso. É uma notícia melhor dizer que Deus tem expectativas sobre nós (o nome disso é justiça, ou lei de Deus); que somos separados dEle (o nome disso é pecado); que Jesus morreu como sacrifício (expiação); que somos chamados a receber Jesus (conversão). 

É melhor porque significa que podemos mudar. Não estamos presos a nós mesmos. Um deus que simplesmente nos afirma não pode nos chamar a morrer e a nascer de novo para uma nova vida. Mas o verdadeiro Deus pode dizer: “Olhai para mim e sede salvos, vós, todos os limites da terra; porque eu sou Deus, e não há outro” (Isaías 45.22).

 

Traduzido por Abner Arrais e Ubevaldo G. Sampaio.

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