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“Legalismo!” Esta é uma acusação poderosa. Ela tem a capacidade de macular, aprioristicamente, quem a recebe. Não é necessário ir a fundo para ver se, de fato, se está defendendo o que, histórica e teologicamente, tem sido entendido como legalismo.

“Legalismo!” Este é o grito de todo antinomiano que se ressente de qualquer tentativa do seu interlocutor, de pensar a partir de categorias bíblicas e de se esforçar que estas controlem quaisquer inferências posteriores. Como alerta o Dr. Don Kistler, “legalismo” é um termo “pejorativo que é muito usado nos círculos cristãos, na maioria das vezes por alguém que tenta defender um determinado comportamento ou tenta desviar de uma crítica ao seu comportamento”.[1] “Legalista!” Este é o rótulo odioso imposto a qualquer pessoa que entende que qualquer tentativa de se formular uma psicologia da tentação tem de estar submissa à Sagrada Escritura. Defender que a Escritura é a “norma que normatiza” a discussão, e não as categorias acadêmicas seculares, é dar margem para anatematizado pelos que defendem teses opostas.

“Legalismo!” Vocifera aquele que não sabe o que é o legalismo, ou que, caso saiba, usa o rótulo apenas como é conveniente. O que interessa, na realidade, é o uso emotivo do termo, pois como nos diz Sinclair Ferguson, “palavras que terminam com -ismo e -ista costumam se prestar a usos emotivos, e não descritivos”.[2] É interessante que dentro da própria história da tradição reformada, “legalista” foi usado como “um rótulo ofensivo para um puritano”.[3] Uma das definições mais equivocadas, porém mais conhecidas, de “legalismo”, é que se trata de uma obsessiva preocupação com regras, ou uma tendência de prestar mais atenção à letra da lei que ao espírito da lei. Ignora-se completamente – talvez propositalmente –, que a essência do legalismo é, em sua explicação mais simples, a doutrina que apregoa a salvação pela obediência à lei de Deus. Ou como diz mais uma vez o Dr. Kistler: “Legalismo é um comportamento motivado pela falsa noção de que pecadores podem obter o favor de Deus, seja antes ou depois da salvação, através de meios legais – obediência, ritual, abnegação ou qualquer outro”.[4]

Todavia, ao mesmo tempo em que se vocifera “Perigo! Legalismo!”, acolhe-se ao seio o seu irmão gêmeo, o antinomianismo. E há de ser mesmo o caso de se acolher explicitamente antinomias (não em seu sentido filosófico, mas em seu sentido estritamente teológico) e reputá-las como “menos nocivas” do que o legalismo apontado no adversário virtual.

É vergonhoso ser legalista. Já abraçar uma antinomia, não. Pelo contrário, é digno de ovação e felicitações entusiasmadas de sequazes que têm em vista os mesmos fins, ainda que estes sejam contrários às Escrituras e claramente submissos ao espírito da nossa época. O antinomianismo, nessa visão, é algo próprio de corajosos, de heróis que resolvem mergulhar de cabeça nas sutilezas de pensamentos, sem qualquer preocupação em se manter dentro de limites bíblicos – ainda que se use termos bíblicos, porém, desprovidos de cuidadosa exegese. Opa! Esse papo de limite bíblico é coisa de legalista! E legalistas não herdarão o reino dos céus… dos antinomianos, ao menos.

É perigoso caminhar por esse terreno. É um terreno arenoso, pois legalismo e antinomianismo não são opostos. Não são rivais. Ambos andam de mãos dadas em oposição à palavra de Deus. Ambos são, igualmente, inimigos da fé cristã. Ambos são, da mesma forma, opostos à graça de Deus e ao evangelho. Ambos são infidelidades. Sinclair Ferguson destaca que “a oposição entre antinomianismo e legalismo não é maior do que a oposição de ambos à graça”.[5] “Mas eu odeio a infidelidade do outro apenas. A minha é ‘menos nociva’. Talvez seja até boa”. Não, ninguém diz isso explicitamente. É algo tácito.

No final das contas, temos presenciado um uso escorregadio da linguagem, o apego a sutilezas que correm em oposição às Escrituras, endosso de artigos que defendem pontos de vista da metodologia crítica e da teologia liberal (como a defesa de que a Torah era a lei de uma pequena elite cultural em Israel e que nunca foram usados como regulamentos para toda a sociedade), é tudo o que se precisa. É tudo o que importa, não é mesmo? “Meus amigos são aqueles que alimentam o meu pecado”.

 

[1] Don Kistler. “Introduction: What Legalism Is, What Legalism Does”. In: Don Kistler (Ed.). Law & Liberty: A Biblical Look at Legalism. Orlando, FL: The Northampton Press, 2013. p. 1.

[2] Sinclair B. Ferguson. Somente Cristo: Legalismo, Antinomianismo e a Certeza do Evangelho. São Paulo: Vida Nova, 2019. p. 93.

[3] Ibid.

[4] Don Kistler. “Introduction: What Legalism Is, What Legalism Does”. In: Don Kistler (Ed.). Law & Liberty: A Biblical Look at Legalism. p. 2.

[5] Sinclair B. Ferguson. Somente Cristo: Legalismo, Antinomianismo e a Certeza do Evangelho. p. 186.

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