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Não finjo originalidade ao comparar a vida a esportes. Todo mundo sabe que esportes são frequentemente utilizados como ilustrações para a existência em suas mazelas e rodopios. É assim inclusive na Bíblia, onde o apóstolo Paulo faz alusões a provas de corrida e de luta. Por que é assim? Esportes são das mais empolgantes de nossas sub-criações. Com a criatividade que nós, como imagem de Deus, fomos dotados, inventamos uma infinidade de jogos em que buscamos vencer os outros. A vida é cheia de disputas. Desafiamos os outros por dinheiro, por promoções de emprego, pelo amor de uma moça, pela vaga no estacionamento, pelo espaço para mala de mão no voo, pelo último pedaço de pizza calabresa. A vida é uma disputa frequente. Isso não nos basta. Inventamos inúmeras formas de disputar por prazer. Futebol, esgrima, xadrez, curling, dance-dance revolution, natação… Isso sem falar em esportes fictícios como quadribol e calvinbol.

De todos os esportes que vem sendo usados para falar da vida penso que o futebol e o tênis são os que mais se prestam para isso. E é por onde vou passear hoje. Sim, tênis. Pratiquei tênis por alguns anos na infância. Não, não adianta chamar para uma partida, mesmo prometendo pegar leve comigo. As costas não deixam e são minha desculpa perfeita para não ter de te mostrar meu serviço desajeitado e nem meu backhand matador (de um só braço como o do Federer). Assisti muito tênis na televisão, em particular nos anos em que morei nos Estados Unidos, onde tem o esporte passando com muito maior frequência do que no Brasil. Meu hebraico seria melhor se Federer não fosse tão bom e não tivesse estourado justamente ali em 2004 e 2005. Admito. Chega de falar de mim. Falemos do esporte.

Essa é a hora de dizer um “A vida é como…”. Pois afinal, o ponto do artigo e da ideia é justamente mostrar como a metáfora é boa. Pois bem, vamos em frente. Estou enrolando mais que o Nadal para servir.

A vida talvez seja meramente existir como uma bolinha de tênis presenciando os gigantes se digladiarem no saibro, na grama ou nas quadras duras. Servimos e nos gastamos pelo bem estar dos outros, até o momento em que somos descartados com os cabelos em frangalhos. Talvez.

Quando Federer enfrenta Nadal, seja pela centésima ou pela milésima vez, os velhos debates se reabrem. Essa é das mais espetaculares rivalidades do mundo esportivo. Será Federer o melhor de todos os tempos? Ora, sim, é. Que coisa ficarem insistindo nisso. Alguém mais tem o nível de seu jogo, a grandeza de suas conquistas? Algum outro jogador será capaz de prover algo próximo a uma experiência religiosa em seus torcedores? Os apoiadores de Nadal insistem na supremacia do espanhol. Eles gostam de apontar que a superioridade de vitórias no confronto direto faz dele superior a Federer. Não é verdade, esse argumento não se sustenta. Posso provar com facilidade. Já o fiz em inúmeras conversas com outros torcedores; mas o objetivo aqui é outro. Ok, uma pequena amostra grátis do silogismo. Envolve basicamente argumentar que se Federer fosse um jogador menos completo, ele teria perdido menos jogos para o Nadal. Faz sentido, mas não vou explicar aqui. O argumento começa assim e tem mais seis ou sete passos que provam que Federer é o GOAT. Game, set, match.

Tênis, assim como outros inúmeros esportes, envolve é claro o objetivo de derrotar o adversário. O que o torna inerentemente especial é que, diferente de outros esporte com bola como basquete, futebol, e voleibol você deve fazer isso sozinho. É claro, esportes como natação e corridas envolvem você competir sozinho, mas a competição é contra um grupo de outro atletas. Sim, esgrima e lutas diversas envolvem dois oponentes, mas sem bola e com contato entre os oponentes. O tênis não; fica cada um de seu lado, lançando gentilezas por meio de raquetes e bola. Trocando insultos e desafios, poemas e gritaria, por meio de passadas, lobs, voleios e provocações sutis (ou não). E você precisa fazer isso sozinho. Sem nenhuma ajuda. Andre Agassi, um dos melhores tenistas da história, certa vez disse que apenas os boxeadores conhecem algo da solidão do tenista; mas os boxeadores ao menos tem o contato com seus treinadores nos intervalos entre os rounds.

Claro, um esporte que envolve disputas um a um (sim, eu sei que existe tênis de duplas) se presta naturalmente a toda sorte de comparação com as disputas individuais que travamos. E são muitas as contendas que as pessoas se envolvem. Muitas as batalhas em que nos enfrentamos. Brigamos pelo amor e atenção de alguém, e nos ferimos quando a pontuação do algoz parece inalcançável. Batalhamos por uma promoção, e nos animamos quando parece que o outro teve uma lesão (metafórica) e está ficando fora de combate… mas logo ele se volta com animo revigorado em direção ao troféu. Trocamos raquetadas com nossas palavras e o calor dos pontos se intensifica se não baixamos a raquete de vez em quando. Nossas batalhas pessoais se prestam a análises e analogias esportivas. É irresistível. Nossas contendas, entretanto, são menos contra os adversários e mais contra nós mesmos. Somos nosso pior oponente.

Tênis é um esporte que inspira grandes artigos, belos perfis jornalísticos, frases marcantes. Procure por aí e não faltam boas referências. É claro, o melhor dos escritores sobre o esporte foi David Foster Wallace (DFW), exímio autor, voz de uma geração, gênio trágico e muito mais. Ele mesmo foi tenista e o esporte assombra suas histórias e ensaios. O título de uma de suas biografias é “Toda história de amor é uma história de fantasma.” E, olha só, é de fato um título apto. Histórias de esporte são histórias de amor que por sua vez são histórias das coisas que nos assombram e assustam. Tênis é amor e tênis é assombração.

O artigo de Wallace chamado “Federer como experiência religiosa” é um desses textos que procuro ler todos os anos. Ele foi lançado em português em uma coletânea de ensaios do autor. Releio não somente porque o assunto me fascina, mas pelo fato de que a própria escrita é o ápice da qualidade a que aspiro como autor. Sim, a minha chance de fazer parágrafos como os de Wallace é quase a mesma chance de eu ter o retorno de serviço de Novak Djokovic. Mas, enfim. A inspiração já vale. Esse tal artigo inspirou muitos escritores e se tornou uma espécie de paradigma do que um artigo esportivo pode fazer, gerando deleite, nostalgia e, bem, algo parecido com uma experiência religiosa.

Se não bastasse David Foster Wallace ter escrito o melhor artigo de todos os tempo sobre tênis, o miserável ainda por cima escreveu o melhor romance passado no mundo do tênis. Graça Infinita lida, mais ou menos, com revolucionários que utilizam o entretenimento como arma terrorista, uma casa de recuperação de viciados em entorpecentes e uma academia de tênis. E a intersecção entre essas coisas. O livro é cheio de pérolas sobre o esporte, e escolhi uma citação que ajuda a tentar exprimir o que estou tentando explicar. DFW diz:

“O verdadeiro oponente…é o próprio jogador. Sempre e somente o eu lá fora, na quadra, para ser encontrado, lutado, trazido à mesa para definir os termos. O rapaz do outro lado da rede… Ele não é o inimigo: ele é mais o parceiro na dança. Ele é a desculpa ou ocasião para conhecer o eu. Como você é a ocasião dele. As raízes infinitas da beleza do tênis são auto-competitivas. Você compete com seus próprios limites para transcender o ego na imaginação e na execução. Desaparecer dentro do jogo; romper limites; transcender; melhorar; vencer. É por isso que o tênis é um empreendimento essencialmente trágico … Você busca conquistar e transcender o eu limitado cujos limites fazem com que o próprio jogo seja possível pra começar. É trágico e triste e caótico e amável.”

Viu? É, no final das contas, uma luta contra você mesmo. Aliás, será que toda luta é assim? Fico pensando na época em que as pessoas disputavam a mulher amada por meio de um duelo. Isso acontecia mesmo? Se sim, isso era mais ou menos romântico do que as disputas por impressionar a moça pelas redes sociais? Os dois tenistas disputam o jogo como dois homens apaixonados disputam a mesma mulher amada. Há uma competição para ver quem consegue hipnotizar, convencer, impressionar mais aquela que é o alvo de seus olhos, o objeto de seus esforços, a meta de seu suor.Talvez ao disputar uma bola, assim como disputar um amor, você venha a se conhecer melhor do que imaginava ser possível. Talvez ao ver o que está disposto a fazer pela promoção de cargo, você entenda melhor as trevas que há em ti. Nisso está a beleza, bem como a tragédia do esporte. Não dá para confiar que o colega de equipe vai te carregar nas costas. Quando não há nada a não ser você mesmo para culpar, quando o triunfo depende de suas ações, não é fácil voltar ao vestiário vendo outro levar o troféu. É a vida. Trágica, triste, caótica e amável.

Falando nisso, de triunfo e fracasso, no acesso à quadra central do mais importante torneio do mundo, Wimbledon, há um trecho do famoso poema de Rudyard Kipling, If:

“If you can meet with Triumph and Disaster, And treat those two impostors just the same;” (Se puderes se encontrar com triunfo e desastre, e tratar esses dois impostores da mesma forma).

A ideia é bela. No final das contas precisamos estar preparados para saber que muitas serão as partidas que perderemos. Muitos os triunfos que iremos saborear. Se acharmos, entretanto, que a vida está nessas coisas, seremos enganados por impostores. É muito fácil fazermos dos tesouros deste mundo o alvo dos nossos corações. Salomão, que se vivo hoje apreciaria tênis, dizia que esse mundo e seus tesouros é feito de vapor. De fato, temos de lembrar disso; embora seja bem difícil tantas vezes.

Aliás, já que estamos falando de a cabeça estar no lugar certo, vale lembrar que o aspecto mental é fortíssimo no tênis. A perda de confiança ou desânimo já causaram inúmeras derrotas. O torcedor que acompanha fielmente algum jogador aprende a ler seus sinais físicos. É comum a sensação de que a postura corporal de um atleta vai se transformar em derrota, mesmo com ele à frente no placar. Eu, como torcedor do Federer, experimentei várias vezes a espinha gelar por notar algo ruim na linguagem corporal dele após errar um ponto. O grande Boris Becker certa vez explicou que “O quinto set não é a respeito de tênis, mas de nervos.” Verdade. A vida é assim. Lutas e duelos em que somos nossos grandes adversários. Fico pensando, entretanto, se não estou sendo demasiadamente ousado a comparar a mim e a você a tenistas profissionais. Talvez melhor mesmo seja nos compararmos a meros acessórios no grande esquema das coisas.

Talvez seja por eu andar meio melancólico. Talvez seja por eu estar mais realista. O fato simples é que hoje se há alguém com quem pareço ao ver a partida, é com a bola (sim, hilário isso aí que você pensou. Estou emagrecendo, viu?). Deixe-me elaborar. Tem horas em que parece que a vida está acontecendo e temos pouquíssimo controle sobre o que se passa. E parece que a gente está mais é para a bolinha amarela quicando e se preparando para levar uma pancada, seja em um serviço de potencial vulcânico, seja uma pancada chapada, ou um tapa envenenado com topspin nadalesco, ou uma bela recortada no slice federiano.

Talvez o que nos caiba seja isso mesmo. Quando colocados no saibro, nos sujamos para que os outros escorreguem plasticamente e acertem seus belos voleios. Na grama, ficamos manchados ao deslizarmos em altíssima velocidade gritando em resposta a um saque meteórico. Somos parte do show, parte do evento. Sem nós nada acontece. Mas olha, é cada pancada.

Seja como for, sejamos jogadores, torcedores ou bolinhas estamos na partida e não dá para fingir que não. O tênis tem suas peculiaridades, e uma delas é o placar com sua progressão de pontos de 0 para 15, então, 30, 40 e fecha-se o game. Em inglês, a contagem do placar se dá de uma forma ainda mais curiosa para nós brasileiros. Costuma-se dizer, sobre quem está com zero, que ele está com love. Exemplo: se o game está 30-0 para Federer, se diz thirty-love. Zero é chamado de love. Não se diz zero. Se diz love. Claro, há uma explicação; que não é unânime, procure por aí, envolve ovos e a língua francesa. Entretanto eu prefiro a minha teoria. Gosto de pensar que, quando você está ali sendo destroçado pelo seu oponente, quando você está atrás no placar, você se sente sozinho e sem recursos, mas ao menos, no mínimo… te resta o amor. Veja, não estou tão sozinho assim em minha interpretação. Por aí você encontra, além da teoria do ovo, a ideia de que a origem da expressão seja algo assim, pois é apenas o amor pelo jogo que você ainda tem que te mantém ali. Gostou? Eu sei que gostou.

No final das contas, a vida talvez seja como uma troca de lado pra mudar o serviço. Agora eu sirvo, depois você. Se conseguirmos extrair no processo o melhor um do outro, muito bom. Nos conheceremos melhor. Talvez isso seja mais importante do que saber quem fechou os cinco sets. O mundo agradece quando nos vê brilhar. Talvez seja, entretanto, uma visão muito otimista. Não somos em geral protagonistas de quase nada, a não ser de nossas próprias histórias. Imagino que seja isso mesmo. Toda história de tênis é uma história que começa em amor e termina com fantasmas.

Sabe, mesmo que seja somente isso que Deus tem para nós, tudo bem. Se, no final do dia, o que nos couber é ter sido meramente a bolinha, simplesmente termos sido a parte que tornou possível que outros brilhassem, penso que isso deva nos bastar. Ainda que isso signifique que os outros seguirão enquanto ficaremos meio esquecidos e gastos pelo serviço que prestamos. Aliás, não é isso parte de ser adulto? Servir e fazer o bem e tentar não ficar muito ressentido quando for hora de sair de cena e outro desfrutar dos frutos de seus esforços?

Ainda que no final das contas, não sejamos nós a levar o troféu para casa, ainda que no fim do dia só nos caiba a lembrança da glória que presenciamos enquanto estivemos em jogo, creio que vale a pena. E não por a alma ser grande ou pequena. Mas, por sermos corpo e alma, imagem de quem somos. Talvez, como David Foster Wallace disse tão bem, o tênis seja como a vida. Afinal, ela é trágica, triste, caótica e amável. Tudo isso no mesmo game. Sirva bem. Gaste seus pelinhos, sejam eles amarelos ou não. Ainda que não termines com o troféu, com a vaga de emprego ou com a mulher amada. Ainda que da história só te reste o fantasma da lembrança do que você poderia ter sido ou tido. Afinal, no tênis, como na vida de quem conhece a Deus, ainda que não tenhamos mais nada, nos resta o amor.


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