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Uma ente querida, vagando pela escuridão da demência, agarra seu punho e implora que você encontre o marido dela. Ela não mais a reconhece, nem se lembra das risadas e carinho que anteriormente vocês compartilharam. Ela não consegue compreender a deterioração contínua de suas lembranças — aquelas partes de si mesma que se desintegraram.

E ela não se lembra que o marido a quem tanto ama, morreu há décadas.

O que você deve fazer? A última vez em que ela ouviu a verdade, ela ficou gritando e chorando, revivendo sua dor como se pela primeira vez. Depois, após uma hora de prantos, ela se esqueceu de toda a conversa e perguntou pelo marido novamente.

À medida em que ela escrutina seu rosto, deveria você dizer a ela a verdade e deixar que a agonia tome conta dela? Ou deveria você poupá-la da dor e contar uma lorota, dizendo que ele saiu para ir a uma loja?

A Dignidade ou A Felicidade?

Dilemas tão comoventes inspiraram um recente artigo no The New Yorker, da premiada escritora Larissa MacFarquhar. Em seu artigo desafiador, MacFarquhar explora a prática da “mentira terapêutica”, uma abordagem controversa no tratamento da demência, que favorece o engano ao invés de arrastar as pessoas desconcertadas e amedrontadas para uma realidade que não conseguem entender.

MacFarquhar nos guia através de centros de saúde direcionados a pessoas com problemas de memória, que contêm decorações da década de 1930, pontos de ônibus falsos e simulações artificiais da praia, todas destinadas a espelhar a realidade das pessoas presas em suas memórias distantes. Os defensores de tais ambientes simulados argumentam que detalhes familiares, mesmo que fabricados, confortam os que sofrem de demência, e acalmam a confusão e a agitação que surgem quando suas memórias mais recentes não se alinham com seu ambiente. Os críticos questionam o impacto do engano sistemático nos corações e mentes tanto dos cuidadores quanto dos que sofrem de demência.

Ao longo de sua delicada investigação, MacFarquhar postula um dilema: deveríamos ser incrivelmente honestos com os que sofrem de demência em nome da dignidade e da verdade, mesmo que os fatos os arrasem? Ou deveríamos mentir e conspirar com suas ilusões, diminuindo sua individualidade como seres humanos, mas mantendo-os alegremente inconscientes? “O que é mais importante”, pergunta ela, “a dignidade ou a felicidade?”

A pergunta de MacFarquhar reflete uma profunda empatia por pessoas com demência e captura a agitação, o medo e a confusão que tantas vezes os afligem. Mas também pressupõe uma dicotomia rígida entre a dignidade e a felicidade, entre a verdade e a compaixão. A questão coloca os cuidadores entre duas opções enervantes e contraditórias, nenhuma das quais parece manifestar totalmente o amor pelo próximo (Mt 22.39)

O Evangelho oferece uma abordagem alternativa.

Amando a Pessoa

Nossa individualidade como seres humanos não se degrada conjuntamente com nossas habilidades cognitivas, mas reside em nosso valor imutável como portadores de imagem de Deus (Gn 1.26), um valor que nenhuma doença ou calamidade pode degradar. E o princípio central no cuidado de qualquer pessoa, seja ela acometida de demência ou não, deve ser o amor, tal como Deus nos ama em Cristo (Mc 12.30-31; Jo 3.16; 13.34-35). Em Cristo, a dignidade e a compaixão se estendem tal como ramos da mesma videira, cada qual um ramo vital.

O amor cristão não adere a políticas generalizadas de “fatos duros ou falsidade desenfreada”, mas busca edificar “conforme a necessidade”. (Ef 4.29). Vê cada pessoa como Cristo a vê: querida, única no mundo, digna de nosso tempo e sacrifícios, com um papel específico na história de Deus.

Ambientes artificiais com pontos de ônibus falsos nem de perto incorporam esse amor. Tais realidades artificiais e impostas ignoram as histórias, lembranças e experiências únicas que enriquecem a vida e ignoram as necessidades variadas que cada pessoa abriga em um dado momento. A decepção sistemática não leva em conta o percurso variável da demência, quando momentos de lucidez podem dissipar o nevoeiro, e quando as táticas que acalmam em um momento podem causar agitação no próximo.

De acordo com a Mental Health Foundation do Reino Unido, o descuido com as experiências individuais pode, na verdade, piorar a angústia e a confusão entre os que sofrem de demência. A Fundação argumenta que ambientes inventados impulsionam as pessoas para cenários fora de contexto, que nem sempre se alinham com suas próprias lembranças e realidades.

A desconexão resultante pode aprofundar a ansiedade entre os que sofrem de demência e, ainda mais preocupante, desgastar relacionamentos cruciais. A fundação relata que, “uma pessoa que vive com demência pode começar a se sentir desconfiada e perder a confiança em um ou mais de seus cuidadores se as respostas/interações forem inconsistentes de um cuidador para outro, ou a linguagem corporal do cuidador sugerir que algo não ‘está muito certo’.”

Mesmo pessoas com demência refletem tais preocupações. Em um estudo, pessoas com demência leve descreveram que mentiras, mesmo que bem intencionadas, são condescendentes e humilhantes e previram que as incomodaria muito saber que mentiram para elas.

Elas descreveram sua angústia como sendo particularmente profunda, caso a mentira ocorresse em um relacionamento próximo e de confiança. Tais comentários nos advertem que, se mentimos rotineiramente para pessoas com demência, mesmo que por compaixão, corremos o risco de fissurar os frágeis vínculos que os ligam a outros.

Seguindo a Verdade em Amor

Nenhum destes perigos deve nos surpreender, dado o alto padrão que a Bíblia mantém para a verdade (Lv 19.11; Mc 12.14). Mas quando uma mulher com demência severa, em quem os últimos fragmentos de memória desapareceram, chora por seu finado marido, devemos responder sem pestanejar que seu amado morreu?

Quando a forçamos a uma realidade dolorosa que ela não consegue mais decodificar, estamos realmente tratando-a como uma filha única de Deus? Em tais momentos, estamos seguindo a verdade em amor e edificando-a de acordo com suas necessidades? (Ef 4.15).

Tal como Sinclair Ferguson colocou tão eloquentemente: “A verdade é sempre definida no contexto do amor, porque nunca é apenas uma questão de linguagem e palavras, mas de espírito e motivo”. Orientar nossos entes queridos de acordo com uma ética cristã exige que olhemos para além das palavras, que levemos em conta as imprecisões factuais e que discernamos as emoções e necessidades profundas que os impulsionam.

Para pessoas com demência leve, que compreendem seu declínio cognitivo e cujas falsas realidades os incomodam, a reorientação gentil pode levá-los de volta à consciência. Tal redirecionamento não precisa se desdobrar em termos frios e cruéis, mas pode tomar a forma de se aproximar dele ou dela: segurar sua mão, referir-se a momentos no tempo ou rever um álbum de fotos até que as lembranças cada vez menores, se tornem mais claras. Relembrar juntos, pode levar o encontro em direção a uma parceria, ao invés de ser uma medida corretiva.

Na demência avançada, no entanto, as pessoas não conseguem mais compreender a realidade e, ao exigir que elas o façam, corre-se o risco de esmagá-las com a angústia. Responder com compaixão e reconhecer sua dignidade em Cristo exige que entremos em seu mundo e vejamos o que elas veem. Suas tentativas de compreender e se comunicar devem ser respeitadas e levadas a sério, assim como qualquer outra pessoa.

Discernindo Necessidades

“Compreender o mundo no qual eles estão vivendo não significa que tenhamos que mentir sobre isso”, escreveu o Dr. John Dunlop, geriatra de longa data e autor do livro comovente e informativo “Finding Grace in the Face of Dementia” [Encontrando a Graça Face à Demência]. “Quando um paciente está entristecido e pergunta sobre um pai ou mãe que morreu, necessitamos nos perguntar: ‘O que é que ele está buscando?’ Pode muito bem ser amor e segurança. Podemos responder abraçando-os e dizendo: ‘Eu o amo e cuidarei de você, e sei que você ama sua mãe e seu pai’ ”.

Kathy Lind, uma enfermeira com 25 anos de experiência em geriatria, concorda que a principal preocupação no tratamento da demência não é nem fato nem ficção, mas encarar cada pessoa individualmente, amadas por Deus, com necessidades únicas neste momento.

“Deus está presente o tempo todo”, diz ela. “Ele está presente para o paciente com demência que pensa no passado e para mim que estou no presente, ambos em diferentes linhas de tempo (…). Normalmente, interagir com [pessoas que sofrem de demência] no nível em que estão e demonstrar empatia à emoção do seu sofrimento é suficiente para dissipar a ansiedade — creio que nisso há efetivamente uma comunicação.”.

Dunlop vivenciou este princípio quando sua mãe, com a mente obscurecida pela demência, repetidamente o confundia com seu pai. Em vez de responder com “não sou o pai” ou fingir ser seu pai, Dunlop aprendeu a responder: “Lois, eu te amo”.

Sua resposta não enfatizava nem a verdade nem a ficção, mas reconhecia a necessidade mais profunda de sua mãe naquele momento — receber carinho e afeição de alguém que amava.

Embora os estragos da demência possam destruir lembranças, as histórias de quem somos permanecem. As emoções permanecem. E estas alegrias persistentes podem ancorar as perdidas no passado. “Apesar de sua confusão sobre o presente“, escreve o psicólogo geriátrico Benjamin Mast, “as pessoas podem continuar a se encontrar e a se reconectar à sua fé, relembrando sua história junto com pessoas que as amam e cuidam delas (…). Devemos tentar interagir de forma a envolver sua história de vida, seus padrões comportamentais deveras estabelecidos e aqueles aspectos da vida que envolvem a emoção ”.

A Dignidade e A Compaixão

Sabemos que quando Cristo voltar, as sinapses da mente atingida pela demência serão refeitas. O cérebro será curado, o presente voltará a estar em foco e as lembranças estarão no lugar certo. Nesse interim, aqueles que lutam contra a demência necessitam que tratemos suas identidades como seres humanos como eterna, não dependendo de memória ou de esquecimento, do que é fato ou do que é engano.

Necessitam de nosso respeito e amor, por meio de cuidados que não pressupõem uma dicotomia entre a dignidade e a compaixão, mas consideram cada indivíduo como digno de ambos.

Quando nos apegamos aos outros com tal amor, apontamos para a maior verdade de todas, para Aquele cujo poder e misericórdia ultrapassam em muito o mecanismo confuso de nossas mentes fracas. Apontamos para Aquele que deu sua vida por nós e que torna todas as coisas novas: os corpos danificados, os corações pecaminosos, mas também os nomes esquecidos e as memórias distorcidas e os vislumbres do passado emaranhados com o presente.

Traduzido por Giovanna Braz dos S. Garotti

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