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“Não há nada tão errado com a igreja evangélica que uma boa dose de teologia trinitária absorvida pela corrente sanguínea do corpo de Cristo, não possa curar.” É o que escreve Kevin Vanhoozer em sua sinopse de “The Deep Things of God: How the Trinity Changes Everything” [As Profundezas de Deus: Como a Trindade Muda Tudo], de Fred Sanders Será verdade? Se assim for, como realmente acontece?

Para explorar as implicações práticas da Trindade, me correspondi com Sanders, professor da Torrey Honors Institute, da Universidade Biola. Um teólogo trinitariano prolífico, Sanders escreveu além de “The Deep Things of God”, “The Image of the Immanent Trinity: Rahner’s Rule and Theological Interpretation of Scripture” [A Imagem da Trindade Imanente: A Regra de Rahner e a Interpretação Teológica das Escrituras], e é co-editor de “Jesus in Trinitarian Perspective: An Introductory Christology” [Jesus na Perspectiva Trinitária: Uma Cristologia Introdutória].


Em “The Deep Things of God”, você escreve que entre os evangélicos, a Trindade tende a ser tratada como “um dado adquirido, ao invés de ser comemorada e ensinada.” Por quê?

Os evangélicos tendem a ser pessoas da Bíblia, que preferem ficar próximos da linguagem das próprias Escrituras, quando possível. Embora a doutrina da Trindade seja bíblica, não é uma doutrina que Deus escolheu nos entregar já pronta nas palavras das Escrituras. Não encontramos nas Escrituras os termos-chave (Trindade, pessoa, essência, relação, e até mesmo a palavra três, se formos literais). Não temos um argumento que abranja todo um capítulo de Paulo dizendo algo como: “Ora, a respeito da natureza divina e das três pessoas, irmãos, não quero que sejais ignorantes.” Podemos ficar muito tempo ouvindo pregação sólida e bíblica, e não ouvirmos a palavra Trindade. Mas ouviremos todo o conteúdo real da doutrina: a unidade de Deus, a divindade de Cristo, as distinções pessoais entre o Pai, o Filho, e o Espírito Santo, e assim por diante.

Mas, mesmo quando todas as peças estão presentes, pode estar faltando alguma coisa. E frequentemente, este algo é uma compreensão global da imagem toda, uma capacidade de ver como as partes da revelação bíblica se encaixam, para transmitirem esta auto-revelação de Deus como Pai, Filho e Espírito Santo. Sempre que pensarmos grande sobre a mensagem da Bíblia, ou formos mais a fundo na mensagem do Evangelho, inevitavelmente chegaremos até o sólido fundamento trinitário.

Como uma compreensão mais profunda da Trindade poderá enriquecer nossa adoração e espiritualidade?

Muito em todos os sentidos! Compreender a doutrina da Trindade pode ter um efeito catalisador em cada área do pensamento e da vida cristã. O que muitas vezes vivenciamos como uma desvantagem da doutrina (o fato de que que é tão densa de informações e tão assustadoramente grande), rapidamente se converte em uma vantagem, quando se está do lado de dentro dela: é uma doutrina com implicações para toda a estrutura do pensamento e da vida cristã.

Uma maior compreensão da Trindade afetará em primeiro lugar, a profundidade de nosso entendimento das Escrituras. Levar esta doutrina a sério melhorará quase que imediatamente nossa leitura da Bíblia, ao iluminar cada passagem das Escrituras.

Um exemplo disso está no ensino da Bíblia a respeito de Jesus. O Novo Testamento constantemente enfatiza não só a divindade de Cristo, mas também a sua filiação. Se estivermos lendo com um trinitarianismo vago e aleatório no fundo de nossas mentes, facilmente nos contentaremos com o pensamento de que Jesus é meramente Deus. Mas com uma compreensão trinitariana mais aguda, captaremos o fato de que Jesus não é apenas Deus, mas Deus o Filho. A relação dele com o Pai, sobre quem ele raramente silenciava, começa a nos causar forte impressão.

Sem uma teologia trinitária articulada, os evangélicos podem desenvolver o mau hábito de atribuir toda a obra de Deus a Jesus: pensar nele como o criador, o salvador, aquele que habita em nós e nos santifica, o comunicador dos oráculos do Antigo Testamento, e assim por diante. Visto que as obras exteriores da Trindade não são divisíveis, podemos sempre encontrar um sentido em que estas afirmações são verdadeiras. Mas ao invés de serem indicadores de uma saudável centralidade de Cristo, muitas vezes sāo sintomas de que esquecemos o Pai e negligenciamos o Espírito, . Se estas afirmações não estiverem baseados em uma compreensão robusta da Trindade, podem conduzir a erros reais: a ideia desordenada de que Jesus é nosso Pai celeste, que ele nos adota como seus filhos, e assim por diante. Com a Trindade no lugar correto, todos os cacos e pedaços da compreensão se alinham e começam a fazer sentido.

Devem os cristãos orar às três pessoas da Divindade separadamente, a um só Deus, ou fazer as duas coisas?

Ambas são permitidos, mas devemos orar principalmente a Deus, o Pai, em nome do Filho, e no poder do Espírito Santo. Aprender a orar com mais especificidade trinitária, deve ser um convite a um aprofundamento no padrão bíblico de vida e pensamento e não uma conversão a alguma coisa nova.

Em toda igreja, haverá pessoas em diferentes fases de compreensão da oração trinitária, o que leva a alguma estranheza. Todos já ouvimos orações que começam com, “Pai Celestial”, e, em seguida, dentro de um par de frases estão dizendo: “Obrigado por ter morrido na cruz por nós.” Ou orações que começam: “Querido Jesus” e passam para “obrigado por enviar seu Filho para nos salvar.” O que esta acontecendo aqui? Provavelmente não heresias definitivas (patripassianismo no primeiro caso, algum tipo de modalismo no segundo). Provavelmente a pessoa que ora estava mentalmente focada em uma pessoa da Trindade inicialmente, e mudou sua atenção para outra pessoa alguns segundos depois, sem se preocupar em ajustar todas as outras partes da oração ou vocalizar uma transição. Qualquer pessoa na congregação que seja mais fluente com a teologia trinitária ouvirá algo que soa alarmante. Mas duvido que a pessoa que ora seria reprovada em um simples teste de teologia se a parássemos e administrássemos um teste (que, a propósito, por favor, não façam isto).

Quanto a orar ao Filho e ao Espírito Santo, isto também é bom, mas é melhor seguir as proporções bíblicas: orar, principalmente, ao Pai em nome do Filho e no poder do Espírito Santo. A regra é que podemos orar para qualquer pessoa que é Deus, portanto temos três opções, ou quatro se nos permitirmos pensar vagamente sobre “Deus” e empregá-lo sem fazer quaisquer distinções trinitárias mentais.

Imagine que você esteja compartilhando o Evangelho com uma pessoa pós-moderna que não crê em qualquer coisa absoluta ou transcendente. Como a Trindade pode ser um recurso para a sua apresentação do Evangelho?

Às vezes os compromissos pós-modernos podem trazer consigo uma virtude compensadora: as pessoas que não crêem em absolutos, são muitas vezes atentas e atraídas pela particularidade, pela estranheza, pela peculiaridade nos detalhes. Para uma tal mente, a doutrina da Trindade tem o mérito de soar como estranha (o que, lembre-se, é bom). Não soa como Deus em geral, ou algum tipo de teísmo auto-evidente. Mas também não soa tão aleatório o suficiente, para ser um dos politeísmos exuberantes que podem encontrar espaço mitológico para qualquer coisa que queiramos adorar. Em diálogo com uma pessoa pós-moderna, eu me inclinaria para a pura estranheza do monoteísmo trinitário.

Há uma chance de que eles pensarem que é estranho, mas é estranho tal como a vida real é estranha. Talvez seja isso mesmo. Antes de se tornar um cristão, C. S. Lewis foi atraído para este aspecto. Em Cristianismo Puro e Simples, ele escreveu,

Esta é uma das razões pelas quais eu creio no Cristianismo. É uma religião que não se poderia imaginar. Se nos oferecesse exatamente o tipo de universo que sempre esperamos, eu me sentiria como se o estivéssemos inventando. Mas, na verdade, não é o tipo de coisa que alguém teria inventado. Tem aquela peculiaridade estranha a seu respeito que as coisas reais também têm.

Portanto, esta poderia ser uma terra fértil para experimentar formar conexões. É claro que, eventualmente, qualquer um que nega absolutos ou verdades transcendentes, e ainda assim confessa a Cristo, terá que descobrir como confessar o senhorio de Cristo sobre todas as coisas.

O que os evangélicos podem aprender com nossos amigos da Igreja Ortodoxa sobre a Trindade? Onde devemos ser cautelosos acerca da doutrina da Igreja Ortodoxa sobre a Trindade?

Se os evangélicos estiverem sofrendo de uma espécie de timidez em serem explicitamente trinitários, poderão ter uma rajada corretiva através da leitura dos escritos da Igreja Ortodoxa ou de uma visita a um culto de uma Igreja Ortodoxa. O que lá leremos ou lá ouviremos é praticamente o oposto de constrangimento sobre a doutrina. Na verdade, trata-se de um suntuoso desfile da terminologia técnica extra-bíblica da doutrina totalmente desenvolvida, ao máximo que poderíamos imaginar. Pode-se ouvir orações que dizem “Glória à santa, consubstancial, criadora da vida, e indivisível Trindade”, ou “à Santíssima e bendita Trindade, um em três e três em um, indivisa e indivisível” e assim por diante. Acrescente os aromas e sinos do incenso e a música e temos definitivamente a impressão de uma imersão litúrgica intencional nesta doutrina. Eu não gostaria de me estabelecer lá, mas como um antídoto para a timidez trinitária pode ser um verdadeiro tônico.

As diferenças importantes entre Protestantes e a Igreja Ortodoxia estão em outras áreas, em áreas bastante óbvias: nas doutrinas da autoridade bíblica e da salvação pela graça somente, através da fé. Estes “solas” não mudam. Mas em relação à Trindade, há essa maravilhosa e substancial conformidade, de modo que eu seria totalmente a favor de promover uma festa ecumênica em torno dessa doutrina.

Quais são alguns dos recursos que poderíamos usar para aprender mais sobre a Trindade?

Michael Reeves, “Delighting in the Trinity” [Deleitando-se na Trindade]
Fred Sanders, “The Deep Things of God” [As Profundezas de Deus]
Robert Letham, “The Holy Trinity” [A Santa Trindade]
Atanásio, “On the Incarnation” [A Encarnação do Verbo]
Atanásio, “Letters on the Holy Spirit” [Cartas sobre o Espírito Santo]
Gregório de Nazianzo, “Five Theological Orations” [Cinco Discursos Teológicos]

Traduzido por Victor San.

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