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A Teologia da Democracia e a Religiosidade Marxista

O consenso legítimo dos tempos contemporâneos é a democracia. A consciência de que o poder centralizado não representa os interesses do povo, é uma conquista política e civilizatória. É muito gratificante observar que grande parte do nosso planeta pelo menos deseja governos mais democráticos. Nas últimas décadas, muitos regimes totalitários e ditatoriais caíram ou foram derrubados pelo clamor de liberdade. 

Todavia, ao refletir sobre a democracia de nosso tempo, a maioria dos estudiosos remete à Grécia antiga para esboçar a gênese da trajetória democrática. De fato, o fenômeno grego, onde o cidadão se tornava protagonista das decisões é importante e digno de nota. No entanto, grande parte de nossa herança democrática procede diretamente da Bíblia hebraica, sem que isso seja muito difundido.

A narrativa bíblica traz consigo o conceito de dignidade humana, essencial para a democracia, ao afirmar que o ser humano é imagem e semelhança de Deus (Gênesis 1:26):

Então disse Deus: ‘Façamos o homem (’adam – ser humano) à nossa imagem, conforme a nossa semelhança. Domine ele sobre os peixes do mar, sobre as aves do céu, sobre os animais grandes de toda a terra e sobre todos os pequenos animais que se movem rente ao chão.

Essa ideia bíblica define o valor inalienável da vida e todos os seres humanos. Cada pessoa é a imagem de Deus. Um crime contra outro ser humano é um crime contra Deus. Essa dignidade é ainda ampliada quando se vê a responsabilidade humana de cuidar (governar/dominar) sobre a criação. É a missão de reger o mundo, sob Deus. A falha da missão provoca o domínio perverso e subversivo de outros poderes.

Além disso, vale notar como as Escrituras esvaziam plenamente o poder dos deuses do politeísmo animista panteísta do mundo antigo. Ao declarar que o Eterno é o único Senhor (Deuteronômio 6:4), não só é subtraído o poder dos deuses das nações como também dos soberanos que os representam. Se Deus é o Senhor, ninguém mais é! A declaração tem decorrência política.

Não é sem razão que a identidade de Israel se dá na sua libertação da grande potência da antiguidade: o Egito. O poder do faraó, uma divindade, é legitimado teologicamente. Os deuses falsos, subversivamente, junto com seus representantes humanos, no Egito, na Mesopotâmia ou em Canaã, são oposição ao Eterno, mas são derrotados. As dez pragas do Egito são a vitória do Deus único, do Israel escravo, contra os deuses do opressor egípcio.

É curioso observar que num mundo de poderosos e escravos, os israelitas são pastores de rebanhos (Abel, Moisés, Davi, Amós), atividade de quem não oprime nem é oprimido por ninguém, uma abominação para os egípcios (Gênesis 46:34). Mas, o que é expressamente revolucionário no Israel antigo é a ideia de que o rei deve obedecer a leis. É o princípio de constituição (Deuteronômio 17:17-20):

O rei, porém, não deverá adquirir muitos cavalos, nem fazer o povo voltar ao Egito para conseguir mais cavalos, pois o SENHOR lhes disse: ‘Jamais voltem por este caminho’. Ele não deverá tomar para si muitas mulheres; se o fizer, desviará o seu coração. Também não deverá acumular muita prata e muito ouro. Quando subir ao trono do seu reino, mandará fazer num rolo, uma cópia da lei, que está aos cuidados dos sacerdotes levitas para o seu próprio uso. Trará sempre essa cópia consigo e terá que lê-la todos os dias da sua vida, para que aprenda a temer o SENHOR, o seu Deus, e a cumprir fielmente todas as palavras desta lei, e todos estes decretos. Isso fará que ele não se considere superior aos seus irmãos israelitas e a não se desvie da lei, nem para a direita, nem para a esquerda. Assim prolongará o seu reinado sobre Israel, bem como o dos seus descendentes.

O rei tinha que se submeter à lei escrita, que representava um poder maior e limitava o poder do monarca. Ele deveria considerar-se igual aos seus “irmãos israelitas”. Esse igualitarismo hebraico, aliado ao poder único de Deus e ao conceito de que a verdade não está nas mãos de um indivíduo, mas nas Escrituras Sagradas, que podem ser lidas e interpretadas causaram real “revolução democrática”.

As ideias bíblicas desdobram-se na importância da escrita e da literatura (alfabetização de todos), na importância da justiça e da lei, já que o Deus que se revela o faz mediante seus mandamentos (Decálogo), no valor da liberdade de pensamento, uma vez que a Palavra divina precisa ser lida e interpretada (onde há dois judeus reunidos, há pelo menos sete opiniões diferentes …)

Além disso, o valor intrínseco da vida humana traz uma preocupação única com a justiça social, com a proteção da viúva, do órfão, do necessitado e do estrangeiro, que vai ter expressão plena na profecia literária do antigo Israel. Essa semente poderosa que se desdobra numa concepção de história, a partir de uma percepção profético-escatológica, é marcada por um otimismo cheio de esperança que se torna o vetor de construção de uma realidade sociopolítico em sintonia com o “governo segundo Deus”.

É importante observar que o cristianismo primitivo, irmão mais novo (ou filho) da tradição hebraica, vai elaborar sua construção teológica sobre essas referências. A construção da civilização ocidental, de perfil judaico-cristão, descansa sobre essas colunas democráticas e civilizatórias.

Todavia, o impacto mais poderoso dessa concepção que espera “fazer do mundo um lugar melhor” ou “implantar o Reino de Deus” é a expectativa de que o indivíduo comum é capaz de construir isso. O valor da liberdade pessoal, da responsabilidade moral, da relação particular com Deus, define um “santo caldo cultural espiritual” e provoca a multiplicação do “loucos sonhadores” que transformam o mundo com seus projetos culturais, sociais, científicos, missionários e políticos. É impressionante. Não é sem razão que o grande progresso científico, tecnológico e cultural dos últimos dois séculos tenha surgido principalmente em ambientes judaicos e protestantes (ambos influenciados pela raiz bíblica).

Na história presente, um enfoque sociopolítico que tem marcado os tempos recentes é o marxismo. Absorvido em maior ou menor grau por uma série de movimentos e perspectivas políticas e culturais, Marx e sua herança merecem ser analisados. Sob uma herança historicista hegeliana, Marx constrói uma leitura dialética materialista da sociedade, propondo um desfecho da luta de classes favorável ao proletariado, com uma sociedade plenamente igualitária no final. Ainda que muitos não percebam de imediato, a formação e a base do pensamento de Marx, permitiram que sua leitura da realidade carregasse em si uma espécie de perfil propriamente religioso. Parece estranho, mas não é difícil de constatar.

Minha experiência pessoal com as ideias de Marx começou na universidade. Cursando Linguística na Universidade de São Paulo, logo percebi o posicionamento político e filosófico de muitos professores e alunos. Para minha surpresa, cheguei até mesmo a ser abordado por militantes que exigiam um “sim” imediato ao recrutamento ideológico que praticavam. Não esperava isso na Universidade. A postura de alguns parecia a de religiosos que batem de casa em casa tentando convencer outras pessoas. Certa vez, tive que discutir com um deles que quase me obrigou a assinar um documento contra os EUA. Eu sugeri que ele apoiasse uma manifestação contra o aborto, e a conversa acabou.

Mas, num dia, numa aula do curso de hebraico, o filósofo, Dr. Walter Israel Rehfeld, começou a falar sobre perspectivas contemporâneas e mencionou sua reflexão sobre as “estruturas de pensamento religioso” no pensamento ateísta. Foi interessante e surpreendente. Calmamente, explicou como o historicismo messiânico era o fundamento de Marx e como o Capital funcionava como “Bíblia”, sendo Marx e Engels, profetas. A reflexão foi reveladora. Ficou claro, depois de outras leituras e pesquisas, como a dinâmica marxista é convidativa na construção de uma utopia com os mesmos mecanismos condutores de uma estrutura religiosa. O perfil psicoteórico é o mesmo.

A partir daí comecei a entender o porquê da proposta ideológica inspirada em Marx produzir adeptos tão visceralmente envolvidos “na causa”. Por incrível que pudesse parecer, do ponto de vista psicológico e filosófico, eu estava diante de uma “religião secular”. O envolvimento dos adeptos ultrapassa a concordância racional. Mexe com paixões e elementos pessoais profundos. Mas, sinceramente, até aí, isso não parecia um grande problema. Há tantos fenômenos religiosos distintos no mundo. Esse é apenas mais um.

No entanto, não é assim. Há religiões menos polarizadas, mais complexas, mais profundas em sua antropologia e sensibilidade. No caso do marxismo, não parece ser o caso. Refletindo sobre a questão, cheguei a algumas conclusões. Espero que sejam úteis e valiosas para muitos. Muito do que há de elogiável no pensamento de Marx tem origem na Bíblia. O sonho de uma sociedade sem opressão, de proteção dos mais fracos, a crítica da injustiça e de condenação dos opressores procede diretamente dos profetas bíblicos como Amós e Miqueias. Não há muita originalidade em Marx. De certa forma, sua proposta é a chegada do milênio sem Deus e sem Messias.

Todavia, sendo um pensamento confessamente ateu, Marx alinha-se com os que praticam a repressão do inconsciente transcendental. É a rejeição da coluna maior de sustentação da ética e da justiça no pensamento bíblico. O reducionismo limitador já está presente. Consequentemente, a antropologia marxista se torna simplista e dualista na construção de sua dialética: há o “bandido” e o “mocinho”. O oprimido e pobre entra numa categoria de virtuoso e parece irremediavelmente ligado à bem-aventurança. Como não há pecado original, ele aparece como ser “acima da lei”. Já os perversos e opressores precisam ser combatidos e são irremediavelmente condenados. Não há remissão. Pertencem à categoria do mal. O cenário quase cunrânico da luta dos “filhos da luz” contra os “filhos das trevas” está definido. Os “bons” não têm do que se arrepender, a “causa/missão” justifica suas ações, os “maus” não podem ser convertidos. O cenário da “batalha/revolução” está arquitetado. Não há alternativa.

Além de seus resultados desastrosos no campo da economia, os regimes de inspiração marxista pecaram principalmente pela repressão da liberdade de pensamento e de ação. Aqui talvez esteja o problema teórico maior. Uma vez que “a solução” da realidade social é abstrata e “quase-metafísica”, uma dimensão maior adquire o poder e valor total: o Estado (a abstração do proletariado). Isso faz com que o indivíduo desapareça no cenário. O contraste com o pensamento bíblico é gigantesco.

Na Bíblia, a dimensão de transformação da realidade passa pelo indivíduo. O Reino começa no coração, conforme Jesus (Mateus 5-7). Quem salva uma pessoa, salva o mundo inteiro (Talmude – mencionado na Lista de Schindler). Onésimo e Filemom lidam com a escravidão implodindo sua lógica a partir da conduta pessoal (Filemom). A ética pessoal e individual é muito valiosa e reveladora. O sonho do indivíduo é que muda o mundo.

Na visão marxista, os temores de um indivíduo que, com covardia, abre mão de ser sujeito responsável, faz com que todas as esperanças estejam lançadas no “super Estado”, protetor e salvador de todos. Como este Estado, na prática, estará sob o controle de poucos, o totalitarismo do sistema logo se manifesta e a crise do modelo se concretiza.

Talvez esse processo filosófico, psicológico e religioso explique porque tanta gente que se deixa dominar pela ideologia marxista, como um religioso radical, não consegue praticar a autocrítica, não pode denunciar os crimes e erros de regimes comunistas e socialistas, atenua dificuldades éticas de suas referências e combate tão rudemente os que questionam seu paradigma. Outros valores como relação pessoal, familiar, comunitária, religiosa, são dispensados em favor da “causa/missão” maior.

Admiro e tenho simpatia de tanta gente sincera que se envereda por esse caminho, porque sentem a dor do mundo e querem dar uma resposta. Mas, sinto dor imensa quando “dominados pela força religiosa do sistema” não conseguem mais reagir e perdem o caminho. Que Deus os trate com misericórdia, bondade e redirecionamento. Não posso descrever a tristeza e a dor de ver de perto lugares do mundo na Ásia, Europa Oriental e nas Américas, onde a religião marxista dominou (ou domina), perseguindo as concorrentes. O que mais me machucou não foi a falta dos “objetos do consumismo doentio” do nosso lado do mundo, nem a foi a vida simples daquelas pessoas, mas foi o olhar de muitos que “suplicavam ajuda” e de outros tantos, de olhar completamente vazio, de gente, que oprimida e sufocada, e sem liberdade, simplesmente “parou de sonhar”! Isso doeu demais!

Foi com razão, que o Consenso Evangélico de Lausanne, em sua publicação O Evangelho e o Marxista (ABU, 1984), conclui corretamente que “as falhas do sistema marxista precisam ser expostas; silenciar sobre isso seria um erro”. Que Deus nos ajude nessa tarefa!

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