×
Procurar

São 10:30 da manhã, do dia 1º de janeiro de 2015, e meu ano novo já começou sem cafeína. Minha confusão interior é contrastada com 100 meninas animadas pulando ao meu redor, junto com seus pais, no shopping para o lançamento anual da boneca ‘American Girl’ do ano. A maioria das meninas trouxe, de casa, suas bonecas para este acontecimento; minha filha me trouxe aqui. Claramente, não sou o único pai que ama sua filhinha o suficiente para suportar a cidade de Minneapolis para curtir uma festinha.

Felizmente vejo uma cafeteria à distância, portanto minhas chances de sobrevivência são boas, mas por enquanto estou preso numa fila, com um monte de meninas gritando, com suas bonecas nas mãos.

Finalmente, somos chamados para entrar na área isolada e no santuário interno, minha filha vai brincar e explorar, e eu vou sentar-me em uma escassa cadeira dobrável, que visualizei junto a uma das duas enormes árvores de Natal cintilantes. O sistema de som toca hits pop contemporâneos que ecoam por todo o espaço de vidro e concreto. Não muito longe de mim está uma mulher de meia-idade, roliça e irrequieta, envolvida pela emoção do momento, movendo-se para lá e para cá, sentindo-se inspirada a cantar junto com Katy Perry. No momento em que ela atinge o ‘crescendo’ – “E você vai me ouvir rugir!” – me pego simplesmente olhando para ela, admirado por sua insensibilidade aos que a rodeiam.

Em meio a euforia confusa das bonecas, das brincadeiras e do pop rock, tento me concentrar em meus escritos por alguns minutos, mas percebo que estou mesmerizado por um telão enorme, acima da minha cabeça, com o logotipo vermelho e estático ‘American Girl’ e seu lema: “Siga sua estrela interior”.

“Siga sua estrela interior” – o lema é tão clichê que ninguém percebe, mas chama minha atenção porque representa um fenômeno cultural. Isso também me lembra um velho filósofo canadense e a longa e colorida história por trás do surgimento do moderno maníaco por controle.

Do Encanto ao Desencanto

Estou aqui com algumas centenas de estranhos. Não conheço ninguém. Chegamos todos de uma vez. Este encontro coreografado entre estranhos de pensamento parecido, cada um representando suas próprias vidas de horários e rotinas independentes, é um fenômeno que teria sido inconcebível aos nossos antepassados ​​na Europa medieval, 500 anos atrás. A vida, naquela época, não era tão auto-determinada.

Para começar, eles viviam num mundo profundamente encantado. Para eles e para seus feiticeiros, as florestas escuras eram assombradas por formas de vida transcendentais (como os duendes). A rebentação oceânica cortante era agitada por energias espirituais invisíveis e irritadas. Escuras nuvens de tempestade e ventos impetuosos eram a presença e a respiração de um grande ser. Eclipses lunares eram obra dos deuses. Não havia como escapar destas forças que acometiam a vida, para o bem ou para o mal.

Diante deles estava uma profusão da mitologia grega e da mitologia nórdica, um panteão de deuses nascidos – deuses que se apaixonavam, deuses que guerreavam, deuses reinando e governando. Os hindus tinham Brahma, Vishnu e Shiva. Os egípcios tinham Osíris, Ísis, e Hórus. Os gregos tinham Urano, Cronos e Zeus. Os vikings tinham Odin, Thor e Loki. As pessoas nasciam em meio a batalhas politeístas de proporções cósmicas, o que significava (gostassem disso ou não) que eles, bem como suas comunidades estavam presas em meio a atritos divinos.

Do resultado desta tensão das competições cósmicas, a vida dependia. As realidades espirituais tocavam o todo da vida: a cultura, a saúde, navios em alto mar, fortunas, o futuro, e todas as dimensões de segurança de sua aldeia. Foram culturas encantadas como estas que o evangelho confrontou primeiro, não rejeitando todas as tensões cósmicas, mas mostrando como Cristo triunfou sobre todos esses poderes, em Sua morte e ressurreição.

Em seguida, mais ou menos à época do Renascimento e até a revolução científica, as coisas começaram a girar para o extremo oposto. As realidades espirituais começaram a ser emudecidas da vida social, empurrando a religião para fora da comunidade, como uma preferência subjetiva do indivíduo, algo como um pé de coelho da sorte para levar no bolso. À medida que as forças do universo passaram a ser explicadas pela ciência, o mundo tornou-se desencantado.

Em apenas algumas centenas de anos, estas mudanças provocaram uma variação sísmica no modo como entendemos o universo e nosso lugar nele.

Do Poroso ao Protegido

Em outras palavras, o nascimento do maníaco por controle moderno está enraizado no movimento da humanidade, de um cosmo encantado centrado na comunidade, para um universo mecanicista centrado no indivíduo. É uma história importante, a qual o filósofo canadense Charles Taylor explica. Taylor cunhou o termo ‘desencanto’ para explicar a causa básica, que tem um pano de fundo dividido e muito complexo. Taylor detalha isso em seu livro de referência, Uma Era Secular [em português, editora Unisinos, 2010].

Num dos resultados mais interessantes do seu estudo, Taylor identificou duas filosofias concorrentes sobre quem somos, como indivíduos, neste mundo: o ‘self’ (self significa “si” ou “eu” em inglês) poroso e o ‘self’ protegido.

Como vimos, antes do Renascimento e da revolução científica, nossos antepassados ​​nunca poderiam ter imaginado definir a pessoalidade independente da comunidade, dos deuses e das forças espirituais operantes. O cosmo era encantado, e o ‘self’ era poroso às inúmeras influências fora de si mesmo. Sua mente interior e as forças cósmicas exteriores estavam totalmente misturadas.

Depois do Renascimento e da revolução científica, no entanto, isto tornou-se menos importante. Um universo que opera por leis naturais e regras mecânicas previsíveis substituiu o cosmo das forças espirituais. A ciência e a tecnologia criaram uma nova proteção para o ‘self’: o isolamento das forças da natureza, que antes eram incontroláveis​, tornando possível para nós imaginar uma nova defesa contra as forças externas. O universo tornou-se mais domesticado, mais desencantado, mais como uma máquina.

E isso deu à luz ao moderno maníaco por controle.

Sob a Dupla Ilusão

Hoje, com um relógio, um calendário e um cronograma detalhado de atividades sincronizadas em nossos celulares, vivemos sob a dupla ilusão de uma individualidade controlada. Dominamos os resultados e poucas influências externas podem nos impedir. Agora nos parece possível não depender de ninguém, não precisar de ninguém, não ser vulnerável a ninguém. Tomamos as rédeas de nosso destino completamente. Assim, o “’self’ protegido” pode voluntariamente optar por sair: sair de um casamento, sair de uma gravidez, de uma comunidade, das tradições, sair, até mesmo, do divino, de uma maneira inimaginável em séculos anteriores. E para o ‘self’ protegido, as forças físicas operantes fora de nós não têm muita influência sobre o nosso pensamento. Podemos nos anestesiar dos horrores do mundo, simplesmente ignorando a fome, os crimes, os massacres e os desastres naturais que o assolam.

Este novo ‘self’ protegido é marcado por mudanças internas importantes. Pois, embora, certamente, não seja errado concentrar a atenção em si [o ‘self’] (uma tendência enraizada na nova aliança, ver Jeremias 31:29–34), os profetas bíblicos tiveram sempre o cuidado de proteger o “eu” do desencanto, algo que não é real para o ‘self’ protegido, pois ele vem do secularismo. Taylor explica:

[O “lado interior” do desencanto significa] a substituição do ‘self’ poroso pelo ‘self’ protegido, para os quais trata-se de dar a impressão axiomática de que todo pensamento, sentimento e propósito – todas as características que normalmente se podem atribuir aos agentes – devem estar na mente, o qual está distinto do mundo “exterior”. O ‘self’ protegido começa a achar a ideia de espíritos, forças morais, [e] poderes causais com uma inclinação intencional, próxima ao incompreensível. O avanço da identidade protegida foi acompanhado por uma interiorização… nós agora nos imaginamos como tendo profundezas secretas. Podemos até dizer que as profundezas anteriormente localizadas no cosmo, o mundo encantado, agora são mais facilmente substituídas interiormente. O que as pessoas do passado chamavam de possessão por espíritos malignos, nós chamamos de doença mental. Ou ainda, o rico simbolismo do mundo encantado foi encontrado por Freud nas profundezas da psique; e todos nós achamos este movimento muito natural e convincente, seja lá o que for que pensemos de suas teorias detalhadas.

Ou, “siga sua estrela interior”. O cosmo, e meu sentido real, agora são encontrados internamente.

Poder de Isolamento

Junto com esse movimento para definir a complexidade e a profundidade da vida dentro de si mesmo, o ‘self’ protegido traz mudanças externas significativas para nossa percepção do mundo. Um exemplo notável é encontrado na comparação de como nós agora reagimos a desastres naturais catastróficos. Interpretar as catástrofes naturais como um aviso de Deus (ou dos deuses) é uma experiência perfeitamente comum num cosmo encantado, e era exatamente assim também na igreja, de João Calvino aos puritanos e até em muitos púlpitos do século 19. Duzentos anos atrás, um furacão devastador provavelmente incitaria o clero da igreja a conclamar a nação a um tempo de arrependimento.

Mas num mundo onde computadores dão movimento a grandes tempestades a partir de fotos estáticas, feitas por imagens de satélite, sugerir que um furacão destrutivo, deva ser talvez interpretado como (a) a tentativa de Deus de expor nossa arrogância e nossa fragilidade, ou (b) a ira de Deus pela frouxidão moral de uma cidade ou nação, não somente não seria compreendido em nossa cultura; mas seria escarnecido por muitos cristãos como algo puramente insensível. Estas tempestades são agora o resultado de uma colisão de circunstâncias meteorológicas. Se houver qualquer culpa, devemos culpar o abuso do homem ao planeta, que, segundo dizem, é um fator no predomínio de mega-tempestades hoje. Acaba que “os atos de Deus” são menos propensos a ser obra do divino e mais provável que seja o resultado do ‘eu’ irresponsável.

Dentro da igreja, podemos debater se as mensagens divinas devem ser decodificadas por uma cidade ou nação (e qual é esta mensagem). Essa distinção gritante mostra o quanto nossas vidas se tornaram isoladas – da natureza e de uma percepção consciente da providência de Deus na criação. No final, esta maneira de pensar leva ao secularismo. Ser um secular (o ‘self’ protegido) significa simplesmente que Deus se torna opcional à minha existência diária. Ele não pode invadir minha vida. E ser religioso numa cultura tão secular significa engrandecer sua riqueza interior. Essa mentalidade de repudiar o divino confundiria completamente o ‘self’ poroso dos nossos antepassados.

Indo Direto Para o Faça-Você-Mesmo

Aqui está o problema. Como podemos ver, os crentes não estão imunes aos ventos e às ondas do secularismo. Muitos de nós escorregamos facilmente para uma forma de vida cristã que concebe esta vida de fé como um processo mecânico. Há pouca necessidade de que o cosmo seja encantado, desde que eu tenha uma lista razoável de cinco dicas de como melhorar meu desenvolvimento pessoal hoje. Começamos perguntando:

Por que eu deveria me importar sobre se o cosmo é ou não encantado? Será que este fato teria qualquer impacto em minha vida hoje? O que eu mais preciso hoje é de ajuda prática: preciso de dicas de como ler minha Bíblia, de truques para criar bem meus filhos, para cultivar o meu casamento e para tornar-me internamente feliz.

Estes desejos por truques práticos para dominar a vida podem, ao longo do tempo, começar a soar um pouco como a manifestação do ‘self’ protegido numa cultura secular – o ‘eu’ inclinado a controlar mecanicamente os processos da vida para chegar ao seu próprio resultado desejado.

Na realidade, a vida cristã pujante adota a forma mais completa de catecismo. Em primeiro lugar, aprendemos a compreender a essência das realidades espirituais cósmicas fora de nós mesmos. Em segundo lugar, unimo-nos a Deus, à medida em que Ele e as promessas de Sua aliança se revelam a nós, coletivamente. Somente neste contexto estaremos, então, preparados para prosperar na aplicação pessoal da verdade bíblica dentro de nós. Devemos, primeiramente, ser cativados pelos indícios de Deus na essência das coisas, e reservar tempo para estudar e meditar sobre aquilo que é realidade pura e externa a nós, e não diretamente aplicável ao meu comportamento, de modo que os Seus imperativos (quando chegar a hora) sejam adequadamente fundamentados. O ‘self’ protegido quer, simplesmente, pular adiante e sublinhar todas as partes faça-você-mesmo da Bíblia.

Todos nós vivemos, em algum grau, num ‘self’ protegido, provavelmente mais do que podemos perceber ou admitir. Nossa tendência é preferir mais o concreto do que o cósmico; preferimos mais o que é prático do que o espetáculo; preferimos focar no que podemos controlar, e não nas forças fora de nós; preferimos permanecer mais nas sugestões de Provérbios do que na majestade cósmica do Apocalipse. Todos temos um maníaco por controle dentro de nós.

Re-Encantado?

Tanto o ‘self’ poroso (buscando validar milagres) quanto o ‘self’ protegido (buscando explicações ordenadas para a vida) encontrarão formas específicas para tentar domesticar a Deus, mas o Salvador crucificado já comprovou que ambas as tentativas são inúteis (1Co 1:22–25). Mas há uma verdade inerente que o ‘self’ poroso conhecia e que agora devemos aprender, contrariamente às forças de nossa cultura.

O que acontece é que o encantamento é fundamental para o discipulado cristão. Este encantamento pode coexistir com nossa tecnologia e com nossa consciência científica, mas apenas através de uma fé profundamente enraizada, que nos lembra que nossa vida diária é vulnerável até mesmo às forças invisíveis (e não cientificamente explicáveis) fora de mim, como as do hino profundamente encantado de Colossenses 1:15–20:

Ele é imagem do Deus invisível, o primogênito de toda a criação; porque nele foram criadas todas as coisas nos céus e na terra, as visíveis e as invisíveis, sejam tronos, sejam dominações, sejam principados, sejam potestades; tudo foi criado por ele e para ele. Ele é antes de todas as coisas, e nele subsistem todas as coisas; também ele é a cabeça do corpo, da igreja; é o princípio, o primogênito dentre os mortos, para que em tudo tenha a preeminência, porque aprouve a Deus que nele habitasse toda a plenitude, e que, havendo por ele feito a paz pelo sangue da sua cruz, por meio dele reconciliasse consigo mesmo todas as coisas, tanto as que estão na terra como as que estão nos céus.

A vida cristã trata-se de nos abrirmos a Cristo, para nos tornarmos conscientemente porosos ao Seu reinado cósmico.

Está na hora dos maníacos por controle serem lembrados de nossa porosidade, ou seja, lembrar de nossa vulnerabilidade, com três finalidades.

Três Implicações

Em primeiro lugar, somos chamados a tornarmo-nos vulneráveis aos outros e vermos que nossas liberdades individuais em Cristo não nos separam da comunidade, mas na verdade nos obrigam a uma participação mais profunda com outros crentes (Gl 5:13).

Em segundo lugar, temos de nos tornar vulneráveis ​​às forças cósmicas fora de nós. Precisamos reabrir nossos olhos ao que aquele antigo poeta pagão entendeu corretamente: “porque nele vivemos, e nos movemos, e existimos” (Atos 17:28). Isto significa que nossas vidas diárias não poderiam ser mais encantadas.

Finalmente, e mais importante de tudo: à medida em que despertamos para as realidades cósmicas invisíveis de Colossenses 1:15–20 (e outras passagens), nos tornamos porosos à glória de Cristo, e nada na vida cristã é mais vital. A glória que atinge profundidades cósmicas requer uma profundidade que não se encontra em nós, mas em Cristo.

Isso não é panteísmo. É a vida criada por Cristo em nós se opondo ao secularismo. Devemos viver no certeza de que nenhuma parte de Sua obra tem vida independente dEle. Nenhuma parte da Sua criação se coloca sobre Ele. E nenhuma parte da criação existe fora de Seu poder soberano e objetivos finais.

Infelizmente eu resisto em aceitar toda essa gloriosa verdade, mesmo em meus melhores dias, o que explica o porquê de eu escrever sobre isto. Quero colocar esta realidade em palavras para que me lembre de toda esta verdade continuamente.

Tornando-se Real

Acabei ficando perdido em meus pensamentos e me esqueci do café, e já é hora de ir embora. Percebo que a sonolência começa a desaparecer bem a tempo de nossa viagem ao shopping center terminar, numa nota mais alegre e reconfortante. Um representante do American Girl anuncia que a boneca do ano se chama Grace.

Grace [Graça]. Favor imerecido. Um presente que vem de fora. Uma contradição ao lema corporativo. Nossas vidas, inevitavelmente, estão entretecidas com lembretes da graça que nos é dada em Cristo. E quanto mais conscientes estamos de Sua vitória, mais descobrimos que Seu reinado, comprado por Seu sangue e que está acima de todas as coisas no céu e na terra, mistura-se com as nossas rotinas e experiências diárias de forma profundamente prática.

Não é por acaso que duas das epístolas de Paulo mais cristocêntricas e encantadas (Colossenses e Efésios) são também as duas epístolas mais produtivas para o desenvolvimento de nossos casamentos, nossa criação de filhos, nossas vocações e nossas igrejas. Sua intenção é de que Jesus seja o centro de todas as nossas práticas e rotinas.

E tudo começa no contexto cósmico, onde vemos a nós mesmos como criaturas confusas, caídas e falhas, que rolam para fora da cama continuamente ao som de joelhos estalando, e que precisam ser re-catequizadas todas as manhãs, sempre lembradas de que vivemos diante de um Cristo cósmico, que não permite que nenhuma onda ou tempestade escapem a Seu domínio soberano (Mt 8:26-27).

Nele, vivemos nossas rotinas com uma porosidade renovada, uma nova vulnerabilidade e uma consciência mais clara de que vivemos numa história muito mais encantada do que qualquer um de nós ousaria imaginar.

Traduzido por Alessa Mesquita do Couto.

CARREGAR MAIS
Loading