Quase não há dias em que questões sobre transexuais não surgem no noticiário. Pode ser uma história de interesse humano sobre alguém fazendo a transição de um sexo para outro, e como foram recebidos (ou não) por suas comunidades. Pode dizer respeito à política de direitos para homens e mulheres transexuais, quais banheiros devem estar disponíveis para eles. Pode ter a ver com complexas discussões sobre as causas e tratamentos disponíveis para transgêneros. Mas uma coisa é certa: esta questão não desaparecerá tão cedo, e nós cristãos não podemos nos dar ao luxo de evitá-la.
Muito de nós, no entanto, vão querer evitá-la. Sabemos que estamos a pisar em terreno extremamente sensível. Sabemos que estamos a lidar com áreas de profunda dor pessoal para muitos homens e mulheres, e queremos ser cuidadosos em dizer coisas que possam contribuir para essa dor.
Podemos não saber o que pensar sobre alguns dos debates políticos intensos à nossa volta. Podemos nos sentir como se simplesmente não sabemos o suficiente sobre o transgenerismo para dizer algo com confiança. Tente procurar “transgênero” em uma concordância; dificilmente irá chegar longe.
Mas o evangelho é sempre boas novas, e o é para todos. Parece-me que existem duas visões em particular que o evangelho pode oferecer, que podem formar o ponto inicial da nossa resposta.
1. Compreensão Singular
Disforia de gênero, o sentimento de profundo desconforto com o sexo do próprio corpo, é muitas vezes extremamente doloroso. Para alguns é crônico, originando mesmo na infância. Para muitos, o peso emocional pode ser insuportável. Não se pode negar esta dor. E os cristãos talvez possam explicar isto de maneira única.
Paulo nos dá uma visão chave do mundo em que vivemos:
Porquanto a criação ficou sujeita à vaidade, não por sua vontade, mas por causa daquele que a sujeitou, na esperança de que também a própria criação há de ser liberta do cativeiro da corrupção, para a liberdade da glória dos filhos de Deus. (Rom. 8.20-21).
A criação não está bem. O mundo físico foi “sujeito à vaidade,” à frustração. Não funciona corretamente. Está descontrolado. Foi submetido a esta frustração por Deus. A narrativa mais ampla da Bíblia explica isso. Deus amaldiçoou a terra como julgamento pelo pecado humano (Gn 3.17). Em outras palavras, o mundo não funciona corretamente tanto como uma consequência e como uma demonstração do fato de que nós não funcionamos bem.
O mundo não funciona bem tanto como uma consequência e como uma demonstração do fato de que nós não funcionamos bem.
O que é verdade sobre a criação em geral, é também verdade sobre nossos corpos. Eles fazem parte da ordem física que foi sujeitada a esta frustração. Observamos esta frustração de muitas maneiras. Alguns enfrentam problemas de saúde persistentes; outros lutam com toda uma série de confrontos sobre sua imagem corporal; outros mais, sentem disforia corporal, sentindo-se como se estivessem presos no tipo de corpo errado. O fato é que praticamente ninguém tem uma relação inteiramente clara com o seu próprio corpo. É como as coisas são neste mundo. E embora seja verdade que qualquer um pode observar este problema, os cristãos podem singularmente explicá-lo
A Bíblia nos mostra que o pecado causa alienação profunda, em primeiro lugar de Deus, e as outras alienações que advêm disto. Estamos alienados uns dos outros. E estamos alienados de nós mesmos. O que era para ser inteiro e integrado, nossas mentes, corpos e espíritos, estão agora profundamente fragmentados. Não nos sentimos alinhados conosco mesmos.
Nossas igrejas devem ser lugares onde as pessoas possam se sentir mais seguras para articularem seu próprio senso de não estarem funcionando direito.
Ter conhecimento destas coisas deve nos tornar compassivos. Embora grande parte dos pensamentos em torno das questões transexuais de hoje seja falho, a dor experimentada por aqueles com disforia de género é muito real. Nós, mais do que quaisquer outros, deveríamos entender o porquê, pois mais do que todas os outros, compreendemos a profundidade do que está errado com este mundo. Nossas igrejas devem ser lugares onde as pessoas possam se sentir mais seguras para articularem seu próprio senso de não estarem funcionando direito.
2. Esperança Singular
Mas a Bíblia nunca termina com o diagnóstico. Tal como podemos oferecer uma compreensão singular e excepcionalmente profunda, podemos também apontar as pessoas para uma esperança sólida e singular. Todos experimentamos a maldição da queda de forma corporal. Mas a resposta para os problemas do nosso corpo, juntamente com a resposta a qualquer um dos nossos problemas, nunca será encontrada em nós mesmos. Qualquer que seja o que façamos aos nossos corpos para superar os problemas percebidos, nunca seremos capazes de corrigir o que realmente se encontra por detrás da nossa auto-alienação. Podemos alterar nossa aparência; podemos corrigir muito daquilo que consideramos estar errado. Mas nunca encontraremos a verdadeira liberdade que tão profundamente desejamos. Nada do que possamos fazer aos nossos corpos nos ajudará a nos sentirmos que somos o nosso verdadeiro eu, pelo menos não de forma duradoura.
A resposta para os problemas do nosso corpo nunca será encontrada em nós mesmos.
Não, a única resposta para a nossa experiência de ruína em nossos corpos, é encontrada na ruína máxima do corpo de Cristo. Ele experimentou a aflição máxima. Seu, era o corpo mais odiado por outros. E a disforia máxima jamais experimentada foi quando ele “que não conheceu pecado, Deus o fez pecado por nós” (2 Cor. 5.21). Isto sim era estar no corpo errado. No entanto, ele passou por tudo isso por nós. Ele experimentou a ruína máxima para que nós não tivéssemos que experimentá-la.
O problema com os nossos corpos acaba por ser uma questão com qualquer de nossas partes. Elas manifestam a ruína de uma forma que aponta para o ruína dentro de cada um de nós. Nos afastamos de Deus, de modo que nada é como deveria ser. O ponto de partida para a fé cristã é reconhecer isto. “Bem-aventurados os pobres de espírito,” Jesus nos disse (Mat. 5.3), e não “Bem-aventurados os que se consideram bem acertados.”
Se tivermos olhos para ver, qualquer tipo de ruína corporal, poderá nos apontar para o corpo partido de Cristo e através desta ruína, à eventual restauração e cura que vem através dele. Aceitar a Cristo não garante resolução nesta vida para a ruína corporal que experimentamos. Mas nos dá uma esperança segura e confiante de que vamos ter um relacionamento perfeito com nossos corpos no mundo por vir.
Traduzido por Seumas Dóchas.