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Os cristãos frequentemente têm dificuldades para distinguir a obediência cristã de suas homólogas legalistas. O que torna a obediência piedosa diferente dos esforços moralistas dos não-cristãos? O apóstolo Tiago nos oferece uma importante janela para a natureza específica da obediência cristã. Isto vem no primeiro capítulo de sua carta:

Tornai-vos, pois, praticantes da palavra e não somente ouvintes, enganando-vos a vós mesmos. Porque, se alguém é ouvinte da palavra e não praticante, assemelha-se ao homem que contempla, num espelho, o seu rosto natural pois a si mesmo se contempla, e se retira, e para logo se esquece de como era a sua aparência. Mas aquele que considera, atentamente, na lei perfeita, lei da liberdade, e nela persevera, não sendo ouvinte negligente, mas operoso praticante, esse será bem-aventurado no que realizar. (Tg 1.22-25).

Tiago compara o praticar a Palavra com ser um mero ouvinte. Ouvir sem praticar, ele diz, é como olhar para o seu rosto em um espelho e depois ir embora e esquecer-se como você é. Em outras palavras, “ouvir” é igual a olhar no espelho, e “não praticar” é o mesmo que se afastar e esquecer. Simplesmente ouvir a Palavra não é o mesmo que obedecê-la. Se tudo que você faz é ouvir, sem praticar nada, isto é um engodo. Você está se enganando a si mesmo. Deve haver algo mais.

Agora a pergunta chave é: o que é o “algo mais”? São apenas novos esforços produzidos por nós? Ou há algo característico na obediência cristã? De acordo com Tiago, o “algo mais” é olhar no espelho certo e praticar aquilo que vê. O espelho certo é a lei da liberdade, o que Tiago também chama de Palavra da verdade pela qual nascemos de novo (1.18), a Palavra implantada que nos salva (1.21) e a lei régia da liberdade (2.8-12). Em outras palavras, o espelho para o qual devemos olhar cuidadosamente são as Sagradas Escrituras, tanto o Antigo como o Novo Testamentos, entendidas à luz das boas novas do Rei Jesus. Esta é a Palavra que devemos praticar — o que significa que a obediência cristã é uma espécie de “praticar o evangelho”.

Agora, o que isto significa?

A Prática do Evangelho como um Bom “Faz de Conta”

O praticante do evangelho olha para o espelho da lei régia da liberdade. Ele se vê refletido na Palavra viva e perene de Deus. Praticar a Palavra, ou “praticar o evangelho”, significa que você olha para Jesus e para si mesmo em Jesus para obter a força e provisão para todos os seus atos. Você foi ressuscitado com Cristo. Você está assentado com ele nos lugares celestiais (Ef 2.5-6). Sua vida está oculta com Cristo em Deus. Um dia, quando ele se manifestar, você também será manifestado com ele em glória. Seu verdadeiro eu, a plenitude de quem você é e o que Deus o fez para ser, será revelada e manifestada. Mas por enquanto está oculta (Cl 3.1–3).

Praticar o evangelho significa que você se vê na lei régia e então vive nessa visão. Você olha para esse espelho e faz o que vê. Isto é mais do que apenas um exemplo moral. Não é simplesmente “O que Jesus faria?” Isso é freqüentemente muito abstrato e distante para ser de grande utilidade. É: “O que eu faria se estivesse cheio de Jesus?”

C.S. Lewis chamou isso de “bom faz de conta”, e é uma das maneiras que usamos nossa imaginação para promover nossa santidade. O mau faz de conta é simplesmente hipocrisia. É quando fingimos ser algo que não somos. O bom faz de conta é quando praticamos ser quem já somos em Cristo, legitima e positivamente, e quem um dia seremos em Cristo moral e perfeitamente. O bom faz de conta não é hipocrisia; é uma tentativa de consistência conduzida pelo Espírito Santo. O mau faz de conta é um substituto da realidade. O bom faz de conta é quando a pretensão leva à realidade. É o que as crianças fazem quando fazem de conta que são crescidas para que possam crescer. E é o que os cristãos fazem, em nossa condição de peregrinos, quando nos dizem para praticar a Palavra.

Na prática, funciona assim: imagine como você seria se realmente vivenciasse uma profunda renovação do evangelho. Se você realmente cresse que o Deus vivo estivesse a seu favor e que ele satisfaria todas as suas necessidades. Que você não precisa usar as pessoas para conseguir o que quer, porque você sabe que Deus aceita, aprova e acolhe você; e portanto você transborda com este tipo de amor de Deus. Imagine essa versão de você mesmo, aquela que é livre, feliz, estável e cheia de amor. Agora pegue esse seu eu imaginário e coloque-o nas situações da sua vida. O que aquele eu imaginário, o você-no-evangelho faria? Se você realmente amasse a Deus profundamente de coração, e se você realmente amasse sinceramente o seu próximo, o que você faria?

Quando tiver a resposta, peça a ajuda de Deus e depois pratique aquilo (mesmo que suspeite que seus motivos sejam confusos). Em outras palavras, pratique as ações de amor mesmo que ainda haja (alguma) falta de substância. Não espere até que seus motivos sejam totalmente puros. Arrependa-se de seus motivos impuros, preferências pecaminosas e apatia espiritual. Olhe-se no espelho do evangelho, a lei libertadora do rei Jesus. Veja o que você é à luz das boas novas. Então, não vá embora e se esqueça. Lembre-se. Persevere nessa visão de si mesmo em Cristo. Vá embora e pratique o que você viu, mesmo que você não sinta completamente o que viu. E, diz Tiago, você será bem-aventurado no que realizar.

Isto é o que significa “praticar a Palavra”. Pelo resto de sua vida, seja um praticante — um praticante do evangelho — da Palavra.

Dois Estudos de Caso na Prática do Evangelho

O conceito ainda pode estar um pouco abstrato e, como qualquer pedreiro lhe dirá, o concreto garante um alicerce seguro. Para realmente entender o “praticar da Palavra”, devemos ver isto em situações concretas que enfrentaremos ao longo de nossas vidas. Eu escolhi duas para criar o alicerce.

O Sucesso

Como enfrentamos o sucesso como um praticante do evangelho da Palavra? Quando tudo aquilo que tocamos se transforma em ouro? A família floresce, o ministério é frutífero, o trabalho é gratificante e nosso lar é feliz. Quando isto acontece, somos tentados a nos orgulharmos — a dominar os outros, ou ostentando abertamente, ou encontrando formas cristãs sutis para relembrar a todos do nosso sucesso. Em vez de olhar para o espelho da lei régia, colecionamos espelhos. De fato, transformamos as outras pessoas em espelhos para nossa glória. Construímos reinos para nós mesmos, levantados sobre o louvor dos outros, a inveja dos outros ou a admiração dos outros. Sentimos uma sensação distorcida de prazer em incitar as pessoas a quererem a vida que temos (e uma sensação adicional de satisfação de que elas não podem ter o que temos).

Então, quando Deus nos força a enfrentar a prosperidade e o sucesso, o que devemos fazer? Devemos praticar a Palavra. Devemos olhar para a lei régia da liberdade e nos perguntar: “O que temos que não tenhamos recebido? E se nós o recebemos, por que nos vangloriamos como se nós mesmos o tivéssemos feito? (1Co 4.7). Devemos lembrar que a vida não consiste da abundância de nossos bens ou da quantidade de nossas realizações (Lucas 12.15). Que é difícil para um homem rico entrar no reino (e que há outros tipos de riqueza além do dinheiro) (Mt 19.23; 2Tm 6.6) Devemos nos lembrar que Paulo considera o enfrentar o muito e a abundância como um desafio (Fp 4.12).

Em nosso sucesso, é muito fácil dizer: “Tudo posso na riqueza que me fortalece”. É difícil ser produtivo e bem-sucedido de tal maneira que isto demonstre que nossa força vem somente de Cristo e não de nossa riqueza. Devemos sempre lembrar o que nos define: “Pela graça de Deus sou o que sou” (1Co 15.10). E nessa compreensão de nós mesmos, praticamos a Palavra.

Sucesso de Outras Pessoas

Por outro lado, às vezes não somos bem sucedidos. Nossos sonhos não se realizam. Vemos as outras pessoas alcançarem mais daquilo que são nossas esperanças e sonhos. Nosso amigo consegue o emprego. Nosso concorrente recebe a promoção. Alguém tem aquela oportunidade de ouro. Vemos nossos amigos se casarem e sentimos a dor de sermos deixados de fora. Ou nos casamos e vemos nossos amigos terem filhos, e sentimos a dor de ficar de fora. Ou entramos no ministério e vemos uma igreja vizinha florescer enquanto a nossa definha. A plataforma de outra pessoa sobe e ficamos com dor no pescoço de tanto olhar para cima.

Quando isso acontece, o que devemos fazer? Nós devemos praticar a Palavra. Não devemos permitir que o sucesso alheio seja nossa pedra de tropeço. Não podemos tomar suas bênçãos como uma ferida pessoal. Necessitamos resistir ao veneno da inveja e da rivalidade (Mt 20.15). Necessitamos matar a malícia e a amargura. Ao olharmos para a lei da liberdade, lembramos que a bondade de Deus não conhece limites. Levará uma eternidade para ele derramar todas as suas bênçãos sobre nós. E portanto, podemos louvar a Deus pelas bênçãos alheias.

O você-no-evangelho imaginário, no espelho da Palavra de Deus — é uma pessoa que se alegra na prosperidade, no sucesso e na bênção dos outros. O você-no-evangelho se regozija na graça de Deus sobre outras pessoas, especialmente aquelas que têm sucesso nas coisas com as quais você se importa. O você-no-evangelho transborda de gratidão pelos dons alheios. Assim, nos vemos à luz do nosso acolhimento no coração satisfeito de Deus em Cristo, e praticamos a Palavra quando os outros são bem-sucedidos.

Portanto, em nossos sucessos e em nossos fracassos (temporários), que todos nós tenhamos a graça de examinar profundamente a lei régia da liberdade; de nos vermos em Cristo e, com sua ajuda, praticar a Palavra.

Traduzido por Vittor Rocha

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