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Nota do editor: Este sermão faz parte de uma série intitulada Contentamento & Graça, disponível aqui no site da Igreja Batista da Graça.

Texto:Tomou, pois, o SENHOR Deus ao homem e o colocou no jardim do Éden para o cultivar e o guardar. E o SENHOR Deus lhe deu esta ordem: De toda árvore do jardim comerás livremente, mas da árvore do conhecimento do bem e do mal não comerás; porque, no dia em que dela comeres, certamente morrerás”. Gênesis 2:15-17.

Não sei se todos observam, mas há um crescimento do número de pessoas descontentes. Há, hoje, um grande número de esferas de não contentamento. As pessoas estão descontentes por causa de coisas, estão descontentes na família, no casamento e na relação com os filhos. Há pessoas descontentes na vida profissional, no trabalho, na vida pessoal, e óbvio, também é grande o número de pessoas descontentes nas igrejas. Se as pessoas estão descontentes, significa que não estão satisfeitas, que sentem que algo lhes está faltando e elas não estão bem com essa experiência de falta.

No Gênesis nós temos a narrativa bíblica da criação do ser humano. O livro diz que após Deus haver criado tudo, em Gênesis 1:31, viu tudo quanto fizera e eis que era muito bom. Deus criou tudo em detalhes, uma riqueza de cuidados, de providências e de sabedoria. Antes de criar o ser humano, Deus criou o ambiente no qual este ser humano haveria de viver. Ele fez brotar, providenciou abundância e variedade. O texto diz que na terra havia rios: um rio chamado Giom, um outro rio que circunda a terra de Kush, o nome do terceiro é Tigre e o quarto é o Eufrates. Havia água em abundância.

Havia também abundância de alimento. Do solo, fez Deus brotar toda a sorte de árvores agradáveis à vista e boas para alimento, e também a árvore da vida, no meio do jardim, e a árvore do conhecimento do bem e do mal. E o Senhor diz: “Faço todas as ervas que dão sementes e se acham na superfície e todas as árvores em que há fruto, os animais da terra, todas as aves dos céus, toda erva verde lhes será para mantimento”. Então, o Senhor fez abundância de variedade, de provisão, não apenas de tipos e espécies, mas dentro de uma mesma espécie, uma variedade imensa. Não fez apenas um tipo de laranja, um tipo de banana, fez uma infinidade de tipos. O ambiente não estava debaixo da maldição e da queda.

Preparado o ambiente em detalhes, Deus criou o ser humano à sua imagem e semelhança, dotado de espiritualidade, moralidade, relacionalidade, capacidade de criatividade, domínio, gestão. Deus concedeu ao ser humano o propósito, a utilidade, a missão, e disse: “Agora você vai cuidar do jardim, dominar a terra, dar nome, classificar os animais, fazer um trabalho de criatividade, um mandato cultural, vai fazer cultura, multiplicar conhecimento, vai ter missão, vai sentir-se útil”.

Deus proveu para o ser humano comunhão, relacionalidade, companhia, afeto e deleite no seu cônjuge. Disse o Senhor: “Não é bom que o homem esteja só. Eu vou lhe fazer uma auxiliadora que lhe seja idônea, à altura dele, para que ele possa se relacionar”. Quando Adão recebeu sua esposa, ele ficou alegre, ficou poeta, cantou e disse: “Essa, afinal, é osso dos meus ossos, e carne da minha carne. Chamar-se-á varoa, porquanto do varão foi tomada”, versos importantes, palavras ricas na língua hebraica original. Então o ser humano originalmente criado não experimentava mais solidão, ele tinha comunhão.

Deus criou o ser humano com a possibilidade de perpetuar-se, criando filhos, e disse: “Agora vocês cresçam e se multipliquem”. Talvez o grande mandamento que o homem não teve dificuldade de cumprir: criar e ter filhos.

O ser humano, antes da queda, não sentia dor, não tinha sofrimento, pranto, morte ou luto. E o mais importante de tudo: o ser humano, originalmente, tinha comunhão perfeita e constante com Deus. O Senhor vinha pelo jardim na viração do dia, o homem tinha contato com o Senhor, desfrutava do sentimento de ser amorosamente cuidado por Deus, não experimentava o abismo, a separação, a alienação do seu espírito do Espírito de Deus, da pessoa de Deus.

O ser humano, onde quer que esteja, não dá para viver sem oxigênio. Aliás, essa é uma das grandes lições que a Covid-19 nos ensina, isso é uma síndrome aguda respiratória severa: nós não podemos viver sem oxigênio. E Adão tinha do melhor. Ele não tinha poluição, podia respirar, tinha água em abundância. O ser humano não pode viver sem alimento, e eles tinham alimento em fartura. O ser humano não pode viver sem abrigo do calor e da chuva, ele precisa abrigar-se, vestir-se e cuidar-se, e ele tinha abrigo. O ser humano precisa se relacionar com o outro ser humano, não pode viver só, e Adão tinha o outro ser humano para se relacionar. E o ser humano não pode viver sem ter comunhão com Deus, por meio de Cristo, e eles experimentavam comunhão com Deus. O Senhor aparecia e lhes falava na viração do dia.

Mas todos nós sabemos o restante da história. O coração e os olhos do ser humano foram inquietados. O Senhor Deus disse: “De toda árvore do jardim comerás livremente”. Isso é um sim muito grande. “Até a árvore da vida vocês podem comer livremente”. Esse sim de Deus é de uma extensão, talvez, imensurável. “Vocês podem comer de tudo, toda árvore do jardim”. Mas Deus disse: “Não se pode ter tudo”. Nunca se pode ter tudo. Essa é uma das primeiras lições de Deus ao ser humano: não é possível ter tudo. Não é possível dar vazão absoluta e indiscriminada ao seu desejo de ter, é preciso refrear-se, é preciso limite. Deus disse: “Aqui, não. Esse ponto só, esse fruto só, essa árvore só”. Não é possível ter tudo. Uma lição que já se manifestou antes da queda, que pais deveriam ensinar aos filhos e que hoje nós precisamos aprender ou reaprender.

E aí vem a palavra contentamento, que vem de conter, contém, de estar contente, que tem a experiência de estar contido, de ter. Descontentamento, ou não contentamento, relaciona-se com a ideia de falta. O ser humano está descontente quando ele sente a falta de algo e não lida bem com essa condição, ou seja, não é apenas o reconhecimento de que ele não tem algo. Até aí não tem problema, não é pecado. Mas quando não tendo algo ele então não lida bem com esta condição, ele está definitivamente na esfera do não contentamento.

Todos nós conhecemos o restante da história relatada em Gênesis. O Maligno é e continua sendo o primeiro e maior fabricante de ilusões. O Maligno, bom publicitário e experiente vendedor, vendeu uma ilusão, foi habilidoso em vender o seu peixe, seduziu o coração humano. Ele disse: “Se Deus não deixou vocês comerem aquilo, Ele não é bom”. Ele fez o ser humano, o primeiro casal, duvidar da bondade de Deus: “Ele não é bom. E mais, Ele está restringindo vocês, porque no dia em que vocês comerem essa árvore os seus olhos se abrirão e vocês se tornarão amplos e mais completos. Vocês serão iguais a Deus, conhecendo tudo, o bem e o mal”.

A partir daquele momento, o ser humano não conseguia mais estar bem, sentir-se bem, pleno, onde estava, passou a estar mal no seu tempo e no seu espaço, porque o não contentamento furta o deleite no contexto, no momento e no espaço que vivemos, ou seja, tira-nos o sabor das realidades que desfrutamos. O ser humano achou que obtendo o que não tinha seria completo, pleno, estaria satisfeito e inteiramente contente. Mas na realidade, ele tornou-se mais miserável, absurdamente incompleto, insuficiente, descontente, deplorável e patético. O seu jardim interior transformou-se em uma desolação, passou do jardim para o deserto árido e seco. É o que nós vivemos.

Conquanto o maligno tenha sido o primeiro fabricante de ilusões, em rigor foi o ser humano quem comprou, o ser humano que me representa, que representa você lá no jardim. Diz o apóstolo Paulo, em Romanos, que todos nós estávamos em Adão, que Adão é nosso representante ali, que ele está agindo conosco, está agindo em nós, com ele. Foi seu próprio coração que o iludiu, o enganou e o traiu. O ser humano levou uma imensa rasteira, antes de tudo, de si mesmo, ele se auto sabotou. O Maligno jogou a casca de banana, mas quem levou o tombo foi o ser humano.

Esse mundo que nós vivemos é pródigo e especialista em fabricar ilusões e necessidades. Essa é uma era de ilusões e de necessidades fabricadas. Nós vivemos em um mundo de muitas necessidades, ambições, ilusões, fantasias e expectativas. Se é assim, é óbvio que será também um mundo de crescente descontentamento, porque quanto mais coisas eu sinto que me faltam, maior é o meu descontentamento, porque só há desilusões, desencantos e decepções se houver expectativas.

Esses dias alguém me recomendou ler sobre o fenômeno que está crescente em nosso mundo, chamado pela sigla FOMO, que em inglês seria Fear Of Missing Out, ou seja, o medo de ficar de fora, de perder o que se passa, de não saber a última novidade, o que caracteriza uma necessidade constante de saber o que as outras pessoas estão fazendo, associado a esse sentimento de ansiedade que impacta fortemente a vida diária das pessoas, inclusive a produtividade no trabalho.

Pessoas que têm FOMO acabam, por isso, tendo uma necessidade inconstante de uma conectividade 100% do tempo, atualizar as redes sociais, como Facebook, Instagram, Twitter, YouTube, a todo instante, mesmo durante a noite, no trabalho, durante as refeições, durante o encontro de família, ao dirigir, o que por vezes pode representar um perigo para a segurança.

Todos esses comportamentos são resultantes da angústia causada pela insegurança de viver off-line, saber que algo está me faltando, que eu preciso ir ali suprir a minha necessidade de estar atualizado, esse Fear Of Missing Out, de estar por fora, que gera ansiedade. E se gera ansiedade, gera descontentamento, que gera estresses, mau humor, desconforto, depressão, porque, obviamente, tenciona. Eu preciso estar atualizado e se eu não ver essa atualização que o fulano compartilhou comigo, minha atendida, meu colega pastor, minha turma do seminário, eu estarei perdendo. Por outro lado, envio recado no WhatsApp para o Pastor Gilson às 23 horas e o celular dele me deu uma resposta: “Quando possível, responderei ao seu recado”, e eu fico zangado, fico angustiado. Se o outro não visualizar na hora, não der a listrinha azul, não responder na hora, isso me incomoda, eu não consigo. De certa maneira, estou dizendo: “Você tem que estar ao meu dispor, tem que estar à minha disponibilidade”. FOMO. É um exemplo mínimo para mostrar que nós estamos sentindo falta das coisas, o tempo todo, até no culto. A gente não sossega.

Um dia o Maligno veio a Jesus, e era o dia certo, porque o maligno sabe o dia certo, porque não é bobo, é inteligente. Ele pode ser muito mal, mas burro ele não é. Ele veio no momento certo, porque Jesus tinha jejuado 40 dias e 40 noites e teve fome. E ele disse: “Se és filho de Deus, manda que essas pedras se transformem em pães”. Aquele pão francês quentinho da padaria, você pode passar manteiga e geleia, comer com queijo, com leite quentinho e chocolate, aparentemente nenhum problema. Só que era o Maligno que estava dizendo para Jesus fazer. E Jesus disse: “Nem só de pão viverá o homem, mas de toda a palavra que procede da boca de Deus”.

O Maligno levou lá em Jerusalém, no alto do templo, na parte mais alta e disse: “Se você é filho de Deus, atira-te abaixo”, porque está escrito lá no Salmo 91. O maligno também sabe Bíblia, aliás, sabe melhor do que você, talvez saiba até melhor do que eu. Essa é a grande realidade: ele conhece a Bíblia, ele é um conhecedor antigo, um teólogo liberal, famoso e conhecido. Se bem que os teólogos liberais também não conhecem mais a bíblia. O maligno conhece. E aí ele disse: “Está escrito lá no Salmo 91: aos seus anjos ordenará ao respeito que te guardem, e eles te sustentarão nas mãos, para que não tropeces em alguma pedra. Isso é uma promessa. Pula”. Eles vão bater palmas, os anjos virão, será um espetáculo, será uma coisa hollywoodiana, algo extraordinário, como os grandes cineastas de Hollywood querem, uma tomada dessa. E respondeu Jesus: “Também está escrito, não tentarás o Senhor Teu Deus”.

E aí o diabo dá a sua última cartada e o levou a um monte muito alto. É interessante isso, não é? As vezes a gente precisa ver certas coisas, e o diabo sabe disto. Como a concupiscência dos olhos é algo forte. O diabo o levou a um monte alto, e disse: “Olha, vê tudo isso”, mostrou todos os reinos do mundo e a glória deles e disse: “Tudo isso te darei, se prostrado me adorares, se me prestares o culto. Ajoelha, adora e eu vou te dar tudo”. Muita gente faz o pacto com o diabo por muito menos. Um casamento, um dinheiro, uma posição, um interesse. Então Jesus lhe ordenou: “Retira-te, Satanás, porque está escrito: ao Senhor Teu Deus adorarás, e só a Ele darás culto”, e com isso, o diabo o deixou, e eis que vieram anjos e o serviram.

O fabricante de ilusões, o vendedor de necessidades, disse a Jesus: “Você precisa ter tudo, o que você tem é pouco. Te falta pão, te falta essa experiência gloriosa de pular do alto, te falta todos os reinos deste mundo, toda riqueza e poder. Você precisa ter tudo!”. E o Senhor Jesus respondeu: “Não. Eu posso estar contente sem isso”.

Não é possível ter tudo. É preciso graça para saber o que realmente é mais importante, o que realmente precisamos ter, o que basta, o que é suficiente, e é preciso saber o que é graça sobre graça, lucro, sobejo. E nós vamos estar aqui, nos domingos de manhã, pensando nessas coisas. Nós, que somos uma geração com FOMO, que não estamos contentes, que não estamos bastantes e satisfeitos. Que Deus nos ajude, que Ele nos abençoe.

Transcrição editada por Daniel Farias

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