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Vivemos em um mundo globalizado e conectado, no qual “todo mundo” encontra algum canal para a sua expressão. Todo mundo tem direito à opinião, e cada vez mais gente hoje tem veículo para opinar sobre os assuntos mais complexos e especializados. Sob um ponto de vista, isto está longe de ser algo ruim; pode significar que as pessoas têm agora mais acesso a informações, a debates e até a questões mais especializadas, acesso antes detido apenas por um grupo minoritário. Porém, lidar com esse universo de informações e opiniões pode ser um imenso desafio! Trata-se de um ambiente fértil para a circulação de informações imprecisas, para opiniões parciais e simplistas e para posturas polarizadas… e para as famosas fake news.

O nosso cenário é crescentemente midiático. E o capital da mídia é a audiência, se possível, cativa. “Gostem ou discordem de mim, mas não me ignorem.” Some-se a este contexto a realidade bem conhecida de que o brasileiro, dentre os povos latinos, é dos mais emocionais e apaixonados. A emoção e a paixão, evidentemente, tendem à polarização. Assim, uma receita usada por muitos em sua busca de popularidade é: “Vá para as polaridades e não ofereça nuances, multiformidade, proporção e equilíbrio. Estas coisas não dão IBOPE.”

Os pastores evangélicos vivem aqui um quadro interessante: Por um lado, eles têm acesso direto ao público e fazem amplo uso da mídia, alguns de forma muito competente. Há exceções, certamente, mas os pastores evangélicos geralmente se comunicam muito bem… “Bater na autoridade” é algo bastante popular no Brasil e dá audiência. E os pastores são autoridades popularíssimas nesse tempo aqui no país… Então, “bater” nos pastores é algo atraente para alguns, encontrando ainda mais eco em corações hostis à religiosidade em geral, ou ao cristianismo em seu espectro mais amplo, ou mesmo especificamente antievangelicais, sejam os hostis ao evangelicalismo histórico propriamente dito ou a alguma de suas populares distorções e caricaturas.

A covid-19 é uma doença nova, ainda dividindo as arenas científicas. Mesmo assim, muitos populares já se presumem “especialistas” sobre ela. Ela divide tanto as opiniões bem-informadas quanto aquelas que estão longe de ser. E nas igrejas evangélicas, espaços de forte manifestação, mobilização e expressão popular, não poderia ser diferente de forma alguma. Acrescente-se a isto que ainda há em muitos setores evangélicos, mesmo em históricas denominações, um forte anticientificismo. Este não contribui em nada! Sempre precisaremos da boa Ciência, e ela continuará sendo o único remédio para a ruim. Posturas anticientificistas geralmente conduzem a contradições patéticas, tais como a de um arauto da antivacinação furando a fila da vacina, ou a de um paladino da não restrição agora usando duas máscaras! Quando não sabemos algo talvez possamos ser humildes para duas ações: esperar e estudar! “Para entrar no caminho ‘certo’ você não precisa ser o primeiro”. Tenha prudência e seja paciente.

Como é de geral conhecimento, há dois contextos em que a covid-19 divide opiniões:

O primeiro contexto é o das Ciências da Saúde em geral. As opiniões aqui têm se dividido em duas áreas: A da (1) profilaxia e da terapêutica para a patologia, e a das chamadas (2) medidas restritivas (distanciamento, isolamento social, lockdown, etc). Cada brasileiro virou um “especialista” nessas duas áreas. Naturalmente, todo pastor e todo crente têm direito à sua opinião, mas deveriam esforçar-se para bem informá-la com os melhores e mais responsáveis estudos e esforços ao seu alcance.

Aqui pretendo me eximir de evocar a questão da profilaxia e do tratamento. Continuarei lendo e buscando as melhores fontes que minha precária especialização e expertise permitem. No máximo, procuro me ater a algumas recomendações de senso comum, as quais já expus em outra ocasião. Não obstante, na área das medidas restritivas penso que há duas questões para as quais as reflexões pastorais são muito bem-vindas:

Em primeiro lugar, as atuais medidas restritivas têm considerado os efeitos para a boa qualidade de vida para além do estrito campo da saúde física? Elas contemplam outros efeitos (tais quais os espirituais, psicológicos, sociais e econômicos) na experiência das pessoas afetadas? Essa discussão, certamente, é muito relevante neste contexto, inclusive sobre o papel da igreja em geral, e da poimênica em particular. Nós pastores faremos bem, sim, em chamar para estas reflexões, mesmo que um consenso em torno delas seja, evidentemente, um grande desafio, ainda mais num cenário tão politicamente polarizado em torno delas. Seja como for, a discussão pode muito enriquecer a nossa abordagem.

Em segundo lugar, quanto aos cultos e ajuntamentos públicos, tem havido uma premissa de que estes estão acelerando o contágio. Isto tem acontecido? Há evidências para isto? Dadas as urgências com que as coisas têm sido feitas neste tempo (o que é perfeitamente compreensível), muito provável é que sejam medidas baseadas em impressões ou conceitos de suposição geral. Provavelmente não haja qualquer estudo ou pesquisa que ofereça evidência para isto – e insisto que tal é inteiramente compreensível neste momento. Talvez os estudos de melhor plausibilidade a este respeito ainda levarão tempo para serem realizados… Logo, se assim é pelo lado dos cientistas e políticos, também o é pelo lado eclesiástico. Porém, o pastor tem aqui uma desvantagem. Por exemplo: Eu posso argumentar que os cultos em nossa igreja são um ambiente bastante seguro (e tenho fortes motivos para atestar que são), mas não posso me presumir porta voz de todas as igrejas, nem mesmo das igrejas vizinhas. Esta será para mim uma generalização muito perigosa. Além disso, eu não posso ignorar que há muitos evangélicos (e me restrinjo a falar destes) que lidam com uma teologia muito inapropriada para a relação entre fé e ciência, assim como em sua abordagem com as doenças e enfermidades. Sabemos que no Brasil uma “teologia” muito popular é a do chamado “Evangelho da Saúde e da Prosperidade”, cuja abordagem para as doenças é muito ufanista e irreal, e muito longe de refletir um consistente ensino bíblico. Como tais igrejas estão lidando com esta pandemia no presente momento? Você sabe? Ontem no início da noite, quando eu e minha esposa voltávamos de uma visita, passamos por uma igreja (um templo) que pratica esta teologia. Havia muitos veículos do lado de fora, a porta de entrada estava fechada, e ouvíamos, do exterior, os cantos e orações dos fiéis lá trancados. Como aquelas pessoas, e esta igreja em particular, estão lidando com este assunto? Sinceramente, não sei.

Pelo lado estatal, por sua vez, uma distinção importante deve ser feita. Há nas medidas estatais dois pesos e duas medidas? Temos elementos suficientes para afirmar que tais medidas visam direcionalmente a liberdade de expressar crenças religiosas? Tais medidas atingem os religiosos e não atingem outros setores da sociedade, tais como salões de festas, clubes, eventos desportivos e culturais? As medidas são clara e parcialmente antirreligiosas? Ouviu-se que em alguns lugares medidas restritivas atingiam igrejas, mas não a cinemas e teatros, e nem mesmo a grandes academias de ginástica… Mas é também preciso reconhecer que esta não foi a realidade predominante. Há alguma parcialidade com algum culto em particular? Ou todos os cultos têm sido igualmente contemplados? Parece-me óbvio que tais respostas podem oferecer proporção à nossa postura.

Para além do contexto das Ciências da Saúde em geral (no qual vejo muitos evangélicos e seus líderes opinando e circulando opiniões), esta pandemia divide as opiniões no campo Jurídico-Legal – composto meio pleonástico, mas ao qual recorro para enfatizar duas instâncias. Um debate importante, crucial, é: Cabe ao Estado restringir liberdades fundamentais? Caberia ao Estado suprimir direitos inalienáveis, como o do trabalho e o direito de liberdade de consciência e de culto? Visto que a liberdade religiosa se expressa necessariamente em culto, e que a liberdade religiosa (erigida no Ocidente como fundamental) pressupõe liberdade de culto, haveria alguma situação em que o Estado pode suspendê-la? Quando? Como? Esta é uma discussão fundamental que a pandemia da covid-19 está trazendo à tona. Estas medidas restritivas materializam, de fato, um arbítrio do Estado assenhoreando-se sobre as consciências individuais e sobre a liberdade da alma? O Estado tem autoridade para suprimir esses direitos? Eles são direitos fundamentais outorgados por Deus, ou são outorgados pelo Estado e, por conseguinte, podem ser suprimidos de acordo com os interesses, razões ou motivações estatais? O que pactua a nossa Constituição? O que dizem os meritíssimos guardiões de nossa Constituição, que são os juízes do Supremo Tribunal Federal (STF) – os quais, aliás, vêm assomando cada vez mais uma descomunal proeminência em nossa nação? Este é, em minha opinião, um crucial debate, com suas interfaces políticas, jurídicas e religiosas, neste contexto da pandemia. Uma coisa é o Estado recomendar ou mesmo usar de sanções secundárias; outra, é o cidadão e as instituições da sociedade acolheram, de modo autônomo e próprio. Fará bem aos nossos estados democráticos e de direito, erigidos com batalhas seculares e muito derramar de sangue, que o Estado intervenha com sanção da lei, com sua força coercitiva e penal, e com poder de polícia, no campo das liberdades fundamentais? Este debate me parece o grande ponto, para o qual nós pastores temos sido convocados. Não devemos nos furtar a participar dele, mesmo quando (e se) a nossa voz soar incômoda. Não será a primeira vez. As outras questões ensejadas estão muito mais no campo das evidências e plausibilidade científica, logo em uma arena na qual talvez não sejamos tão eloquentes ou dela domésticos.

Nada obstante, para nos situarmos neste debate, e nos posicionarmos frente a ele com firmeza e responsabilidade, um milenar conselho pode fazer toda diferença: “Na multidão de conselheiros há sabedoria”. Assim testificam os grandes concílios e sínodos da Igreja Cristã, desde Atos 15. Não é este tempo, portanto, para cruzadas solitárias, individualistas; não é tempo para brilhantismos arrogantes e grandezas ciumentas. É tempo em que eu devo me aconselhar com os servos de Deus mais sóbrios, lúcidos… É tempo no qual eu devo buscar a opinião dos tementes servos do Senhor que sejam instrumentalizados pela voz da sabedoria e do conhecimento. Esta é uma recomendação da prudência, que nos chega em toda a Bíblia, notadamente nos escritos sapienciais. Este, entretanto, pode ser um imenso desafio para nossa geração nada pouco afoita e pretensiosa!

De uma forma ou de outra, neste momento somos convocados a refletir sobre o nosso discipulado com Cristo, de modo a que possamos dar bom testemunho a respeito de nossa fé e esperança, bem como a exercer misericórdia. O culto e a vida humana são dois valores estabelecidos firmemente na Lei do Senhor, conquanto podemos atravessar contingências em que não seja tão simples equacionar o binômio. Aliás, viver nem sempre é simples! Seja como for, é tempo para “pano de saco e cinzas” e confiança no Senhor. Em tempos assim, não podemos, de forma alguma, prescindir dele. Se os desafios são gigantes, e nos sentimos pequenos e insuficientes, é tempo de buscar graça a fim de ser forte na fraqueza.

Fonte:
https://institutopoimenica.com/2021/03/29/evanglicos-brasileiros-e-pandemia/

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