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Qual é o grande enredo das Escrituras? A teologia bíblica nos ajuda a compreender a conexão que há entre os 66 livros da Bíblia como um livro só. Nick Roark resume o enredo bíblico da seguinte maneira: “Deus, o Pai, enviou seu Filho, por meio do Espírito, a conquistar um povo para a sua própria glória”. [1] Essa grande história se desenvolve ao longo do Antigo e do Novo Testamento. O puritano William Ames, acerta ao constatar que eles podem ser resumidos a estas duas coisas: “o Antigo promete o Cristo que viria e o Novo testifica que ele veio”. [2]

Sobre o assunto, o próprio Senhor Jesus Cristo, no caminho de Emaús, afirmou que as Escrituras testificavam a seu respeito, ele disse: “São estas as palavras que vos disse estando ainda convosco: Que convinha que se cumprisse tudo o que de mim estava escrito na lei de Moisés, e nos profetas e nos Salmos” (Lucas 24:44).

Graeme Goldsworthy comentou sobre o tema dizendo que “Jesus de Nazaré é a mais plena auto-revelação de Deus à humanidade. Ele traz plena luz ao que, desde o início, foi apresentado no Antigo Testamento como sombra”. [3] Goldsworthty corrobora o que o autor de Hebreus escreveu no primeiro capítulo de sua carta: “Havendo Deus, outrora, falado, muitas vezes e de muitas maneiras, aos pais, pelos profetas, nestes últimos dias, nos falou pelo Filho, a quem constituiu herdeiro de todas as coisas, pelo qual também fez o universo” ( Hebreus 1:1-2).

Sendo assim, quando perdemos de vista esse grande enredo, podemos ficar presos em assuntos secundários e não entender como cada parte se conecta com o todo da grande narrativa bíblica. Nesse texto, vou propor um sobrevoo panorâmico e resumido da história bíblica a fim auxiliar aqueles que desejam alcançar uma compreensão abrangente e clara do grande enredo das Sagradas Escrituras.

1. Antigo Testamento

Deus criou todas as coisas (Gênesis 1:1). Fez o ser humano à sua imagem e semelhança (Gênesis 1:26). O Senhor fez uma aliança condicional com Adão no Éden, segundo a qual, se ele obedecesse, poderia comer da árvore da vida e viver eternamente, porém, se desobedecesse, morreria (Gênesis 3:22, 3:3), com todas as implicações dessa morte (física, espiritual e eterna). Adão e Eva, seduzidos pela serpente (o diabo, Apocalipse 12:9), pecaram contra Deus e quebraram essa aliança, sofrendo as consequências da queda (Gênesis 3:17; Oséias 6:7). Por ser Adão o cabeça federal (um indivíduo que representa um grupo) da humanidade, toda a sua descendência foi afetada por seu pecado (Romanos 5:12). Porém, o Senhor prometeu que um descendente da mulher esmagaria a cabeça da serpente e que ela lhe feriria o calcanhar (Gênesis 3:15).

Observe que a promessa divina a respeito de um descendente da mulher que daria o golpe fatal na cabeça da serpente é a primeira promessa do evangelho nas Escrituras (protoevangelho), apontando para o Messias, aquele que viria para desfazer as obras do diabo (1 João 3:8). Ao longo de todo o Antigo Testamento, a promessa a respeito do descendente da mulher se desenvolveu através de sombras, sinais e tipos que apontavam para Cristo (Lucas 24:27; Colossenses 2:16-17; 2 Timóteo 3:14-15).

Após a queda, toda a criação foi afetada (Romanos 8:18). Os descendentes do primeiro casal protagonizam uma história trágica: Caim mata Abel. Em seguida, Lameque, descendente de Caim, também se torna assassino e a imoralidade se multiplica grandemente sobre a terra (Gênesis 6). Diante da perversidade do coração humano, o Senhor emite um juízo, envia um dilúvio, porém preserva um remanescente, Noé e sua família são salvos da morte em uma arca. Após o dilúvio, o Senhor faz uma aliança com Noé, cujo sinal seria um arco no céu (Gênesis 9:12) e cuja promessa divina era de preservação da humanidade, pela qual o Senhor garante que não destruiria mais a terra por meio de um dilúvio. Essa garantia traz uma estabilidade física para o desenvolvimento da promessa. Entretanto, após o dilúvio, a corrupção humana permanece. Notamos, na sequência, que os homens, em rebelião aberta contra Deus, em vez de honrá-lo e obedecê-lo, buscam unir-se para engrandecerem a si mesmos, erigindo uma torre que chegasse até o céu para tornarem, a si mesmos, célebres. O Senhor intervém mais uma vez, o que culmina na dispersão deles pela terra após o Senhor confundir a língua que falavam, a ponto de não entenderem uns aos outros (Gênesis 11:4-9).

No desenrolar da história, o Senhor chama Abrão de Ur dos Caldeus (Gênesis 12), a quem faz promessas a respeito de uma terra, uma descendência e de que, por meio de seu descendente, todas as nações da terra seriam abençoadas. Essas promessas tinham aspectos físicos e espirituais, aspectos terrenos e aspectos celestiais, aspectos condicionais e aspectos incondicionais (Gênesis 12 e 17). Os aspectos físicos da aliança abraâmica se cumpririam na nação de Israel, [4] o sinal dessa aliança era a circuncisão física, a terra prometida era Canaã e o desenvolvimento dessa aliança se daria com sua descendência física na nação de Israel sob a Antiga Aliança (Gálatas 4:24-31). Entretanto, os aspectos espirituais da aliança abraâmica se referiam a Cristo, o descendente de Abraão (Gálatas 3:16), e se cumpririam na Nova Aliança. A circuncisão, na Nova Aliança, é do coração, os herdeiros dessas promessas são aqueles que creem em Cristo, os que têm a fé de Abraão (Gálatas 3:29).

Notamos, mais uma vez, a condução do Senhor na história. Lembrando da aliança que fez com Abraão, Deus resgata o povo do Egito de maneira milagrosa sob a liderança de Moisés. O Senhor endurece o coração de Faraó, envia dez pragas, e após a última delas, o Senhor resgata-os com mão forte do Egito, abrindo o Mar Vermelho para que o povo hebreu passe e fechando o mar em juízo ao Faraó e seu exército.

Com a nação de Israel, por intermédio de Moisés, Deus também faz uma aliança no Sinai (Êxodo 20). A Antiga Aliança (aliança feita no Sinai) tem aspectos condicionais (obedeça e viva, desobedeça e morra). É uma aliança nacional, condicional e temporal. A nação de Israel é constituída nas leis cerimoniais, civis e morais da aliança sinaítica. Ela serve para preservar a linhagem do Messias, aponta para ele através de suas sombras, sacrifícios e cerimônias, mostra a necessidade de obediência perfeita à lei, de expiação de pecados, da necessidade de um mediador e serve como aio para conduzir a Cristo (Gálatas 3:24-25).

Depois da morte de Moisés, o Senhor levanta Josué para possuir a terra que prometera, Canaã, e de maneira sobrenatural as muralhas de Jericó são derrubadas e a terra é conquistada. Após a morte de Josué, o Senhor suscita juízes para guiar a nação de Israel, que faz o que é mau perante o Senhor, seguindo o costume de nações pagãs.

Em seguida, o povo de Israel, embora sabendo que o Senhor era o seu Deus, deseja um rei, como os das outras nações, e escolhe Saul. Esse rei, porém, torna-se um transgressor. Então, um rei segundo coração de Deus, da linhagem de Judá, foi escolhido conforme a profecia de Jacó (Gênesis 49:9-12). Deus faz uma aliança com Davi e lhe promete que um descendente seu herdaria o trono para sempre. Essa promessa também se referia a Jesus Cristo (Atos 2:25-35). Após a morte de Davi, seu filho Salomão assume o reinado e Israel tem um período de grande prosperidade. Salomão, porém, não era ainda, em última instância, o descendente prometido. Após sua morte, seu filho Roboão age de maneira insensata e o reino acaba divido em dois. Diante de tantas transgressões e imoralidades os dois reinos que agora existem acabam sendo levados para o cativeiro. O Reino do Norte, para o cativeiro na Assíria, e o Reino do Sul, para o cativeiro babilônico.

No período do cativeiro babilônico, o rei Nabucodonosor tem um sonho que revela eventos futuros, nesse sonho ele vê uma grande estátua possuindo uma cabeça de ouro, peito e braços de prata, ventre e quadris de bronze e as pernas e os pés em parte de ferro e em parte de barro. No sonho, uma pedra foi cortada, sem auxílio de mão, a qual feriu a estátua nos pés de ferro e de barro e os esmiuçou (Daniel 2:31-34). Daniel, por meio de uma revelação divina interpreta o sonho do rei afirmando que a cabeça representava o rei da Babilônia, Nabucodonosor, e as outras partes, dinastias subsequentes, até que, nos dias desses reis, o Deus do céu levantará um reino que não será jamais destruído, e esse reino não passará a outro povo, esmiuçará e consumirá todos esses reinos, mas ele mesmo subsistirá para sempre (Daniel 2:44).

Muitos intérpretes entendem que os reinos mencionados por Daniel correspondem à seguinte ordem: a cabeça de ouro representa o rei da Babilônia Nabucodonosor; o peito e braços de prata, o Império Medo-Persa; o ventre e os quadris de bronze, o Império Grego sob o domínio de Alexandre, o Grande; as pernas e os pés, o Império Romano; e a pedra que derruba a estátua representa Cristo e o avanço do reino de Deus. [5]

Além disso, os profetas anunciam a vinda do Messias, afirmam que ele nasceria em Belém (Miquéias 5:2-3), explicam que ele seria a salvação divina até à extremidade da terra (Isaías 49:6), declaram sua obra sacrificial e vitoriosa em resgate do seu povo (Isaías 53), seria um descendente de Davi, o reino e a justiça seriam entregues em suas mãos (Jeremias 23:5-6), falam de uma aliança superior que está por vir, mas não conforme a aliança que foi feita no Egito, uma vez que o povo a quebrou. Por meio dessa Nova Aliança, o Senhor imprime suas leis no coração do seu povo peculiar e todos os que fazem parte dela conhecem o Senhor que promete perdoar seus pecados e não lembrar de suas iniquidades (Jeremias 31:31-34), o Senhor anuncia que trará salvação para o seu povo (Malaquias 4:2).

2. O Novo Testamento

Por meio de sua providência, o Senhor conduziu a história, levantou e derrubou reinos, fez promessas e alianças, mas um propósito central não pode ser perdido de vista: John Owen compreendeu bem que “Cristo é… o fim principal de toda a Escritura”. [6]

Portanto, na plenitude dos tempos, Cristo Jesus vem, nascido sob a lei (Gálatas 4:4), da linhagem de Abraão e Davi, o Filho de Deus, o Verbo que se fez carne (João 1:14), como cumprimento de todas as profecias, para resgatar a sua igreja, aqueles que foram eleitos antes da fundação do mundo (Efésios 1:4), consumar a obra que o Pai lhe deu para cumprir (João 17:4), pagar o preço por todos os pecados do seu povo (Mateus 1:21), de todos aqueles que nele creem (João 3:16). Cristo Jesus é a substância para quem todas as sombras apontavam, ele é a revelação superior (Hebreus 1:1-2). O sinal de Jonas apontava para a sua ressurreição (Mateus 12:39-40), a serpente no deserto, para o seu sacrifício (João 3:15), o maná apontava para o pão da vida (João 6), Melquisedeque, para o seu sacerdócio real (Hebreus 7). Ele é o sumo sacerdote superior, o Rei superior, o Profeta superior (Hebreus 1:1-4). Ele é o descendente da mulher, o último Adão (Romanos 5:19). Os acontecimentos dos dias de Noé demonstram como será sua segunda vinda (Mateus 24.37-39), ele é o descendente de Abraão, por meio de quem todas as nações seriam abençoadas (Gálatas 3:16), ele é o cordeiro de Deus que tira o pecado do mundo (João 1:29), ele é o descendente de Davi que assenta no trono (Atos 2:25-36). A Nova Aliança em Cristo Jesus é superior à Antiga. A lei foi dada por Moisés; a graça e a verdade vieram por Jesus Cristo (João 1:17).

A Nova Aliança é incondicional, todos os que fazem parte dela conhecem o Senhor e tem seus pecados perdoados, ou seja, essa aliança é um Pacto de Graça e é feita com os salvos (Hebreus 8; Gálatas 4; Lucas 22:20). O sangue de bodes e ovelhas não tinha poder para pagar pecados (Hebreus 9:12), somente o precioso sangue de Cristo Jesus é que nos redime de todo pecado (1 Pedro 1:18-19). A Nova Aliança é estabelecida com todos aqueles que foram regenerados, todos os que estão em Cristo, pois nele não há judeu nem grego, ele é tudo em todos (Gálatas 3:28). Os gentios convertidos são enxertados na oliveira (Romanos 11), fazem parte da aliança, como o apóstolo Paulo afirma em Efésios 2:14-16:

Porque ele é a nossa paz, o qual de ambos os povos fez um; e, derrubando a parede de separação que estava no meio, na sua carne desfez a inimizade, isto é, a lei dos mandamentos, que consistia em ordenanças, para criar em si mesmo dos dois um novo homem, fazendo a paz, e pela cruz reconciliar ambos com Deus em um corpo, matando com ela as inimizades.

Portanto, a Nova Aliança é firmada com os crentes, os eleitos, quer judeus, quer gregos, com todos que se rendem a Cristo. A igreja de Deus é composta de judeus e gentios convertidos a Cristo.

Entendemos que o reino de Deus já está entre nós (Lucas 17:21; Mateus 3:2). Toda autoridade foi dada a Cristo (Mateus 28:18), ele se assentou à destra da majestade nas alturas (Hebreus 1:3), mas ainda não na sua plenitude, que se dará em sua segunda vinda e na consumação de todas as coisas (Apocalipse 21:1). Estamos no período da proclamação do evangelho por toda a terra (Mateus 28:18-19), no qual chamamos os rebeldes para renderem-se, enquanto há tempo, ao grande Rei que virá. O Senhor Jesus Cristo voltará, descerá do céu com alarido e com voz de arcanjo, e com a trombeta de Deus; e os que morreram em Cristo ressuscitarão primeiro. Depois, aqueles que ficarem vivos, serão arrebatados juntamente com eles nas nuvens, para encontrar o Senhor nos ares, e assim estaremos sempre com o Senhor (1 Tessalonicenses 4:16-17). E então, virá o fim, quando ele entregar o reino ao Deus e Pai, quando houver destruído todo principado, bem como toda potestade e poder (1 Coríntios 15:24). Na consumação de todas as coisas, Satanás e seus demônios serão lançados no lago de fogo junto com todos os ímpios, para sofrerem eternamente em justa condenação (Apocalipse 20:10), e os justos viverão eternamente com Deus e serão o seu povo, e viverão em novos céus e nova terra, onde habita a justiça (Apocalipse 21:1). Por fim, o Deus triuno reinará absoluto em majestade e glória.

Assim, pudemos observar o enredo das Escrituras de modo bem resumido, seguindo a linha: criação, queda, redenção e consumação. Aquilo que o primeiro Adão falhou em conquistar, o último Adão, Jesus Cristo, conquistou para o seu povo. Em Gênesis, notamos a proibição de comer da árvore da vida (Gênesis 3:22), em Apocalipse notamos a permissão aos vencedores, salvos por Cristo, de comer da árvore da vida (Apocalipse 2:7).

No final das contas, ou alguém está em Adão, tentando se salvar por suas próprias obras, ou está em Cristo, sendo salvo por meio dele. Cristo é o cabeça federal da igreja. Na consumação dos tempos, o Senhor reinará plenamente junto ao seu povo, que resgatou por sua maravilhosa graça. Diante disso podemos dizer junto com o apóstolo Paulo: Ó profundidade da riqueza da sabedoria e do conhecimento de Deus! Quão insondáveis são os seus juízos, e inescrutáveis os seus caminhos! “Quem conheceu a mente do Senhor? Ou quem foi seu conselheiro?”. “Quem primeiro lhe deu, para que ele o recompense?”. Pois dele, por ele e para ele são todas as coisas. A ele seja a glória para sempre! Amém (Romanos 11:33-36). [7]

 

[1] ROARK, Nick. Teologia Bíblica: como a igreja ensina o evangelho com fidelidade. São Paulo: Vida Nova, 2018. p.33.

[2] AMES, William. The Marrow of Theology. Durham: The Labyrinth Press, 1983. p. 202. Apud BARCELLOS, Richard. O Pacto de Obras: Suas Bases Confessionais e Bíblicas.

[3] GOLDSWORTHY, Graeme. Introdução à Teologia Bíblica. O Desenvolvimento do Evangelho em Toda a Escritura. São Paulo: Vida Nova, 2018. p.78.

[4] Embora as promessas físicas tenham se cumprido na terra de Canaã, isso ocorreu em parte, essa terra como um tipo apontava para uma pátria superior. A plenitude das promessas feitas à Abraão, terão a sua plena consumação nos novos céus e nova terra onde habita a justiça (Hebreus 11:8-10).

[5] Cf. Comentário Bíblico: Vida Nova / D.A.Carson… [et al.] – São Paulo: Vida Nova 2009. p. 1129.

[6] OWEN, John. The Works of John Owen. v. 23. Edinburgh: The Banner of Truth, 1987. p. 74. Apud BARCELLOS, Richard. O Pacto de Obras: Suas Bases Confessionais e Bíblicas.

[7] Este texto é parte do livro “Teologia Bíblica Batista Reformada” escrito por Fernando Angelim e publicado pela editora “O Estandarte de Cristo”.

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