×
Procurar

Embora a reforma tenha começado oficialmente no dia 31 de outubro de 1517, quando o monge agostiniano Martinho Lutero afixou na porta da Igreja do Castelo, em Wittemberg, suas 95 teses, foi somente entre os anos de 1518 e 1519 que ele chegou a um entendimento maduro daquilo que ele mesmo denominou como sendo um dos temas mais vitais das Escrituras – e tão revolucionário para a teologia cristã. O artigo pelo qual a igreja cai ou fica de pé: sola fide justificate, a justificação pela graça somente pela fé.

Antes disso, Lutero vivia atormentado pela noção de que o Deus justo e santo das Escrituras o julgaria e o condenaria e que ele jamais seria capaz de satisfazer justiça de Deus. Nisso estava certo. Por essa razão ele sofria muito com sua consciência sensível e detestava o texto de Romanos 1.17, mas quando quando finalmente entendeu que esta justiça é a justiça que Deus provê, em Cristo, é como se uma luz do Céu invadisse seu ser e inundasse o seu coração com consolo e alegria.

Mas logo a questão da justificação pela fé encontrou grande efervescência nos debates que se seguiram com a igreja romana, pois o catolicismo medieval falava em uma fé que cooperava com Deus, e que a justiça de Deus era assim infundida – uma linguagem da medicina – por Deus aos homens por meio de boas obras e da ministração da igreja. O homem era considerado enfermo, por causa do pecado. Nos documentos católicos daquele período, há uma afirmação que diz: “a igreja é a hospedaria e a enfermaria daqueles que desejam ficar bem. Sua enfermidade, porém, poderia ser curada através das ministrações da igreja, começando com o batismo”. No catolicismo romano combatido por Lutero, havia um entendimento de que o homem possuía algum mérito que cooperava para sua justificação. Isto era chamado de mérito de congruo – que significa o mérito imperfeito, de um pedinte – mas ainda um mérito. Por isso, quando o sacramento da Eucaristia era celebrado, havia um entendimento de que uma graça especial de Deus agiria em quem tivesse, em seu coração, a disposição de recebê-la. Esta eficácia do sacramento para infundir graça era chamada de ex opera operato.

Martinho Lutero rompeu com a linguagem da medicina e passou a usar uma linguagem forense da imputação. Ele entendeu, finalmente, que a justiça de Cristo é imputada naquele que crê e é justificado diante de Deus pela fé. Ele chamou isso de “doce troca”. Embora nossos pecados não sejam totalmente removidos de nós quando cremos em Cristo, a justiça dele nos é imputada e somos declarados justos, não pelos nossos méritos ou pelo que fazemos, mas pela graça de Deus em nos dar o que não merecemos. Sobre isso, Lutero disse o seguinte:

“Portanto, meu querido irmão, aprenda Cristo e o aprenda crucificado; aprenda a orar a ele, perdendo toda a esperança em si mesmo, e diga: Tu, Senhor Jesus, és minha justiça, e eu sou teu pecado; tomaste em ti o que não era e deste-me o que não sou.”

500 anos se passaram e esta matéria se faz mais urgente do que nunca. Num ambiente evangélico tão plural que se jacta ser legatário do que o monge agostiniano começou cinco séculos atrás, a verdade é que muito pouco de sua ênfase na graça de Deus e na fé como meio de recebermos a justiça de Cristo se vê na vida da igreja e nos púlpitos das igrejas.

Entender a justificação pela graça mediante a fé ajudará a corrigir, por exemplo, os extremos do legalismo e da pregação moralista, os quais impõem pesados fardos sobre o cristão e exigem dele uma performance que faria inveja nos fariseus dos dias de Jesus, desconsiderando completamente a noção de que em Cristo temos tudo quando precisamos para receber a graça do perdão de nossos pecados e viver uma vida cristã plena e cheia de significado.

Lutero ainda nos ajuda a corrigir a noção tão difundida pela diabólica teologia da prosperidade de que podemos trocar nossa fé e fidelidade a Deus por ganhos materiais, saúde e realização pessoal. Neste sentido, até mesmo a detestável venda de indulgências do catolicismo medieval se coloca como algo superior à teologia da prosperidade, pois naquela se partia da noção de que o pecador deve algo a Deus, enquanto nesta ensina-se que Deus é quem deve algo ao pecador. Crer que Jesus conquistou tudo quanto precisamos diante de Deus na cruz ajuda a orientar nossa fé somente naquilo que ele fez e naquilo que ele nos deu e a alimentar a esperança de que o maior bem que poderíamos receber de Deus é Cristo mesmo, que nos coloca em paz com Deus.

Também aprendemos com a justificação pela graça mediante a fé que nosso melhor senso de identidade, realização e felicidade não se encontram em nossa carreira, nossas realizações, e naquilo que fazemos – embora estas coisas sejam boas e podem glorificar a Deus se dirigidas a ele, mas nossa identidade está naquilo que Cristo fez na cruz, de modo que tudo quanto fazemos como cristãos, nossa ética de trabalho, nossos relacionamentos no contexto da família, da sociedade e da igreja, são orientados pela realidade de fé que faz de nós novos homens e novas mulheres.

É só pela fé que agora desfrutamos dessa nova identidade, para que não mais nos vejamos a nós mesmos como fracassos ou sintamos a pressão da performance perfeita, mas nos percebamos como pessoas profundamente amadas por Jesus Cristo, declarados justos pela obra dele. Esta, afinal, é a grande mensagem de Lutero nos seus dias e deveria ser a nossa bandeira, também em nosso tempo. Só Cristo justifica e ele o faz de graça, por graça e pela graça e nós, como quem estende as mãos para receber uma dádiva, nos apropriamos da maior de todas as bênçãos somente pela fé.

Que Deus nos abençoe e nos ajude a viver pela fé somente, em Cristo somente.

CARREGAR MAIS
Loading