Ministros do Supremo Tribunal Federal formaram maioria para derrubar leis que invalidavam o uso da linguagem neutra nas redes de ensino e repartições públicas nas cidades de Muriaé (MG), Porto Alegre (RS) e São Gonçalo (RJ). Seguindo o relator, Ministro André Mendonça, outros seis ministros fixaram que “é formalmente inconstitucional norma estadual ou municipal que disponha sobre a língua portuguesa, por violação à competência legislativa da União”.
Essa decisão reacendeu o debate sobre o tema, ganhando ampla evidência nas redes sociais. Uma breve análise das postagens demonstra a existência de grupos formados por aqueles que desejam possibilitar uma linguagem que inclua pessoas sob certo desconforto social e por aqueles que descartam qualquer possibilidade de uso. Por se tratar de um fenômeno sociolinguístico, o estudo de plausibilidade deve superar todo debate que desconsidere a natureza da língua portuguesa, pois não se trata de algo meramente opinativo.
Devemos, inicialmente, apelar para a história da formação da língua portuguesa. Em suas origens, ela está ligada ao latim, cuja estrutura é tripartida em seus gêneros linguísticos. O masculino e o feminino são usados para se referirem a seres animados, às pessoas portanto, e o neutro, às coisas inanimadas. Outro aspecto diz respeito aos casos ou declinações, cujo uso depende da função sintática desempenhada por um substantivo, adjetivo ou pronome, podendo estar no nominativo, ablativo, acusativo, dativo ou vocativo.
Posteriormente, com o surgimento das línguas românicas, incluindo a língua portuguesa, cada uma delas foi se consolidando e gerando uma identidade linguística própria. A língua portuguesa, por exemplo, derivou-se do nominativo masculino latino, aspecto de caráter morfossintático determinante às estruturas semânticas que encontramos hoje, o que justifica o uso do masculino na língua portuguesa para se referir à coletividade, independentemente dos gêneros biológicos, como vemos em
[1] todos, referindo-se a um grupo de pessoas do sexo masculino ou a um contingente de homens e mulheres
A predominante absorção do neutro latino pelo masculino na língua portuguesa não apenas incluiu os seres inanimados na mesma categoria linguística dos animados. Preservou-se também suas distinções binárias nos gêneros masculino e feminino, constituindo-se o masculino, devido ao nominativo latino, o termo amplo para o conceito de totalidade genérica. Houve, portanto, uma regularidade na passagem de uma a outra, emoldurando as regularidades internas da própria língua derivada.
[2] homem, referindo-se a uma pessoa do sexo masculino ou à raça humana
Além da história da formação da língua portuguesa, devemos também considerar a falácia social, amplamente divulgada, inclusive por professores de língua portuguesa, de que não há neutro em nossa língua. Não há qualquer fundamentação linguística para esse tipo de discurso. Embora na passagem do latim para o português o neutro tenha sido predominantemente absorvido pelo masculino, ainda há evidências do neutro na língua portuguesa, como no caso dos pronomes demonstrativos:
[3] Masculinos: este, esse e aquele
[4] Femininos: esta, essa e aquela
[5] Neutros: isto, isso e aquilo
A insistência por certos grupos sociais a favor da linguagem neutra parece não levar em conta os desdobramentos que seu uso traria às pessoas que a reivindicam para si ou para outros. E há dois desdobramentos aos quais dedico certa importância: primeiro, como visto nos exemplos [3] a [5], os que reivindicam seu uso devem, a bem da verdade, ir às últimas consequências, aceitando sobre si o uso dos demonstrativos neutros. Isso implicaria serem tratados por meio dos pronomes isto, isso e aquilo.
Imagine a hipotética cena, elaborada para a compreensão desse ponto:
Estando na companhia de um amigo, avistamos do outro lado da rua um homem, uma mulher e uma pessoa, por exemplo, trans que reivindica para si o neutro. Os três são conhecidos do meu amigo, mas eu não os conheço. Pressupondo minha capacidade de distingui-los, dirijo-me ao meu amigo e pergunto, referindo-me ao homem: quem é aquele? Ele imediatamente responde. Em seguida, acerca da mulher, lhe pergunto: e aquela? Mais uma vez, ele responde. Seguindo o padrão, qual seria a pergunta lógica para a pessoa trans que reivindica para si o uso do neutro?
Isso nos leva a um segundo desdobramento que, a meu ver, não é devidamente refletido por muitas pessoas, a saber, o processo de coisificação do ser humano. A pergunta lógica ao final do parágrafo anterior, segundo o padrão estabelecido, seria o que é aquilo? Ao se referir a uma pessoa, esses termos são grandemente ofensivos, pois uma pessoa não é e nem deve ser tratada como uma coisa. Além disso, nem mesmo o pronome interrogativo quem, usado para referência a pessoas, poderia ser usado no caso, já que o pronome demonstrativo neutro não o permite.
Como vimos acima, o neutro latino é o gênero usado para coisas, e não para seres humanos, e esse padrão foi preservado na passagem do latim para a língua portuguesa. Portanto, usá-lo para pessoas desencadearia um processo de coisificação do ser humano, manchando a dignidade que Deus concedeu a pessoas criadas à sua imagem, conforme lemos no testemunho bíblico do relato da criação: “e criou Deus o homem à sua imagem; à imagem de Deus o criou; homem e mulher os criou” (Gênesis 1.27).
Não há, portanto, seja pela história da formação, seja pela falácia de que não há neutro na língua portuguesa, qualquer plausibilidade morfológica e, consequentemente, semântica nas proposições atuais em prol de uma linguagem neutra que contemple pessoas que não se enquadram na perspectiva bipartida proposta pela língua portuguesa. O caminho social deve ser um reajuste de pensamento capaz de subordinar todo e qualquer viés ideológico aos fenômenos estruturais da língua portuguesa, e não o contrário, como querem alguns.
Portanto, defender as estruturas binárias absorvidas do latim pela língua portuguesa – masculino e feminino, tendo o neutro sido absorvido pelo masculino – não deve ser entendido como um caso de desrespeito ou descaso por alguns grupos sociais, como pensam alguns. Antes, é uma perspectiva de respeito à natureza de nossa língua materna e à dignidade do ser humano, quaisquer que sejam suas ideologias. Assim, as cidades supracitadas legislaram o óbvio e o STF devolveu o óbvio à União.