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Na Idade Média, por quase meio século, a igreja esteve dividida em dois ou três grupos que se excomungavam mutuamente, de modo que todos os católicos romanos viviam sob excomunhão por um papa ou outro. Ninguém poderia dizer com certeza qual rival estava certo. A igreja não oferecia mais certeza de salvação; ela havia se tornado questionável em toda a sua forma objetiva—a verdadeira igreja, a verdadeira promessa de salvação, tinha que ser buscada fora da instituição.

Junto com essa incerteza, o mundanismo ávido, obsceno e aquisitivo do clero—exemplificado por sucessivos papas que só podem ser chamados de cristãos com algum sarcasmo—havia fomentado o cinismo. Sermões e panfletos eram espalhados, escoriando o clero e a hierarquia, incluindo o papa. O pregador Michel Menot lamentou: “Jamais menor devoção poderia ser encontrada na Igreja”. O Papa Pio II escreveu: “O cristianismo não tem um cabeça a quem todos desejam obedecer. Nem o papa nem o imperador recebem as devidas honras. Não há reverência, nem obediência”. As massas consideravam “o papa e o imperador como se tivessem títulos falsos e fossem meros objetos pintados”.

Estes comentários foram feitos mais de 60 anos antes do famoso protesto de Martinho Lutero. Na virada do século XVI, Erasmo pode escrever: “A corrupção da Igreja e a degeneração da Santa Sé, são universalmente admitidas. Uma reforma está sendo pedida em voz alta, e duvido que em toda a história do cristianismo os chefes da Igreja tenham sido tão grosseiramente mundanos como no presente momento”.

Mais Perguntas Sobre a Salvação

A legitimidade da igreja estava sendo posta em questão ao mesmo tempo em que seu método de perdoar os pecados se tornou mais complicado. Como explico, em maior detalhe, o sistema de penitência—isto é, a satisfação pelos pecados—começou meramente em conexão com a disciplina da igreja. Não havia uma única regra ou cálculo, mas os bispos procuravam chamar de volta as ovelhas perdidas com advertências e, em casos extremos, a excomunhão. A penitência era reservada para tais casos especiais, e era basicamente um arrependimento público perante toda a igreja.

Na Idade Média, especialmente por meio das Sentenças de Pedro Lombardo, a penitência assumiu vida própria. A partir de então, cada crente tinha que confessar a um padre, com um cálculo específico de quais ações o infrator teria que realizar para expiar cada pecado. A partir da prática da penitência, surgiu um elaborado sistema de justiça pelas obras, com distinções entre pecados mortais e veniais, concupiscência e pecado real, e assim por diante.

Imagine um simples crente ou até mesmo um padre piedoso frente ao complexo labirinto de distinções escolásticas a respeito do mérito, da penitência e da justificação que abordamos apenas brevemente. Acrescente a isto os debates sutis sobre o significado destes termos e a sua eficácia. Tudo parece um jogo complicado e nem mesmo os árbitros conseguiam concordar com as regras. No entanto, estas são questões que afetam a salvação pessoal de cada um.

Lutero Responde com a Justificação

Quem são os verdadeiros cristãos, e qual é a verdadeira igreja?

Lutero procurou responder a estas questões. Os polemistas da contrarreforma caracterizaram Lutero como um monge libertino em busca de desculpas para sua licença. No entanto, o protesto inicial de Lutero (refletido nas noventa e cinco teses) visava a falta de seriedade com que a igreja tratava a majestade e a santidade de Deus. Não é que os doutores, padres e monges levavam o pecado a sério demais, mas sim que eles não o levavam a sério o suficiente. Alguém poderia comprar uma indulgência ou dizer alguns “Ave, Marias”, voltar ao bordel, e fazer tudo de novo. “Apenas faça o que puder e Deus notará”—isto foi o que havia sido ensinado a Lutero.

Mas ele levava a santidade de Deus e sua própria pecaminosidade a sério. Ele era o monge mais escrupuloso, indo a fundo em sua consciência e cansando seus confessores. Eventualmente, ele entrou em colapso. Passou a ver Deus apenas como uma figura aterrorizante. Mesmo Cristo era meramente seu carrasco, atormentando-o com a perspectiva do julgamento final, quando suas obras seriam avaliadas.

Mais tarde, Lutero escreveu que o problema era que ele só tinha ouvido falar sobre a justiça que Deus é – que condena – e não sobre a justiça que Deus dá como uma dádiva gratuita:

Porque reduziram o pecado, bem como a justiça, a um movimento minúsculo da alma. E este minúsculo movimento em direção a Deus (do qual o homem é naturalmente capaz) eles imaginam ser um ato de amar a Deus acima de tudo. Esta é também a razão pela qual há, na igreja de hoje, uma recaída tão frequente após as confissões. O povo não sabe que ainda necessita ser justificado, mas está confiante de que já está justificado e assim, vem à ruína por seu próprio senso de segurança, e o Diabo não precisa levantar um dedo. Isto certamente nada mais é do que estabelecer a justiça por meio de obras.

Em sua essência, a Reforma foi uma mudança brusca, indo do pecador ao Salvador, de uma penitência frouxa (“Faça o que puder e Deus fará o resto”) a um nos lançar inteiramente em Cristo e em seus méritos.

Desafios Modernos à Justificação

Em nossos dias, essa correção de meio curso está sendo desafiada em inúmeras frentes, dentro do protestantismo. Alguns dizem que a doutrina da justificação é irrelevante, ou pelo menos secundária a qualquer causa para a qual se deseja recrutar Jesus no momento. Outros estão convencidos de que os reformadores simplesmente não entenderam Paulo. No entanto, a pergunta principal – como podem os pecadores se reconciliar com um Deus santo? – não está recebendo uma resposta clara. Muitos protestantes – até evangélicos, que estão alheios ao conceito de “penitência” – no entanto, se relacionam com Deus da mesma maneira que uma pessoa medieval. Compreender a doutrina da justificação é tão importante quanto sempre foi.

Em meu primeiro volume de Justificação traço a história que levou à doutrina da Reforma, vasculhando as Escrituras e os melhores insights da igreja primitiva, bem como mestres medievais. Sem tentar fazer com que as fontes patrísticas digam mais do que dizem, mostro que os elementos centrais da doutrina evangélica foram ensinados de forma mais clara e consistente do que às vezes somos levados a crer. Ao mesmo tempo, exploro como Agostinho plantou tanto trigo como ervas daninhas no jardim medieval, que Tomás de Aquino ceifou.

Relatei a história de como teólogos posteriores como Scotus e Ockham introduziram uma influência do pelagianismo, que Lutero conhecia bem por seus professores, capturada pelo slogan: “Deus não negará sua graça àqueles que fazem o que está dentro deles”. Encontramos também o abade beneditino Bernard de Clairvaux, que tanto influenciou Lutero e Calvino. O restante do volume 1 explica os argumentos dos reformadores no contexto de suas controvérsias com a igreja romana, e destaca a intenção profundamente pastoral da Reforma no ensino da doutrina.

O Volume 2 se concentra inteiramente nos argumentos bíblico-teológicos e exegéticos, abordando desafios contemporâneos de estudiosos bíblicos e concluindo com uma análise das implicações práticas da justificação para a vida cristã e o testemunho da igreja no mundo. Começando com uma lente grande angular, proponho uma interpretação bíblico-teológica dos propósitos redentores de Deus em vista de alianças diversas. A partir daí, o foco se aproxima, em círculos concêntricos, para os desafios exegéticos específicos que estão sendo levantados hoje contra a doutrina da justificação da reforma.

Mesmo como cristãos, a tentação perene de nossa condição pecaminosa é de nos voltarmos para nós mesmos e para longe de Cristo. Numa época em que os adolescentes (tenho quatro em casa) são atraídos a definirem sua identidade por meio de condenações e justificações superficiais do Snapchat e do Instagram, a preciosa verdade da justificação de Deus é tão relevante quanto sempre foi. Voltarmo-nos para fora de nós mesmos, olhando para Deus com fé e para o próximo em amor, esta verdade central do evangelho permanece como nossa única esperança de salvação e o motor da gratidão alegre no mundo.

Traduzido por Raul Flores.

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