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Toda a Escritura é inspirada por Deus. . .

Essa passagem muito citada de 2 Timóteo 3.16 sobre a Escritura recebe muita atenção hoje em dia, e realmente deve receber. Muitas boas defesas do entendimento clássico destas três palavras gregas (passa graphē theopneustos) foram publicadas nas últimas décadas. A natureza inspirada (ou emanada) por Deus da sagrada Escritura merece ser aceita e defendida e – como o restante do versículo diz – posta em prática. Podemos teorizar e discutir o quanto quisermos sobre isso, mas outro ponto surge para tornar este texto surpreendentemente prático: 

“Toda a Escritura é inspirada por Deus e útil para o ensino, para a repreensão, para a correção e para a instrução na justiça…” (NVI)

Pegue a Escritura e use-a, escreve Paulo. Ela é útil, ou seja, valiosa, benéfica, proveitosa (grego ōphelimos). Podemos até mesmo dizer que ela é duplamente útil – não apenas para os que aprendem, que são reprovados, corrigidos e treinados, mas também para quem ensina. Esse é o propósito utilizado por Paulo: “… a fim de que o homem de Deus (o próprio mestre!) seja apto e plenamente preparado para toda boa obra” (2 Timóteo 3.17). A Escritura beneficia as pessoas e equipa os mestres. Pastores cristãos não ousam fingir ensinar e pregar para o povo de Deus sem usar a Escritura – com o tipo de uso (e não de abuso) pretendido por Deus. 

Os Quatro Estão em Ordem?

Escrever uma carta naqueles tempos era um esforço oneroso e demandava muito tempo (não devemos imaginar a mesma velocidade e descuido com os quais escrevemos e-mails hoje em dia). Um habilidoso escritor como Paulo planejaria, redigiria, reescreveria e editaria cuidadosamente suas epístolas antes que tais palavras chegassem às estradas romanas. 

Então, quando o apóstolo lista uma sequência como esta ao final de 2 Timóteo 3.16 – “para o ensino, para a repreensão, para a correção e para a instrução na justiça” – ele está falando sério. Ele pensou sobre esta lista, a ordenou, rascunhou, revisou e concluiu. O Theological Dictionary of the New Testament [Dicionário Teológico do Novo Testamento] vai além ao dizer que “obviamente há uma sequência planejada nesta lista de substantivos”. Nos resguardando de interpretar em excesso esta ordem, podemos buscar as razões pelas quais Paulo escolheu cada palavra em particular e as organizou desta forma.

Vamos considerar, então, esta sequência planejada para o uso pastoral da Escritura na igreja local. Como estas atividades específicas esclarecem nossa vocação e prática como pastores e mestres?

Primeiro e Mais Importante: Ensinar

Não é de se surpreender que Paulo comece com “ensino.”

Ensinar é o trabalho central e característico dos pastores-presbíteros na vida da igreja local. O Cristo ressurreto dá à igreja seus pastores e mestres (Efésios 4.11), líderes que proclamam a palavra de Deus (Hebreus 13.7), supervisores que não somente exercem autoridade como o fazem principalmente por meio do ensino da igreja reunida (1 Timóteo 2.12). Bons pastores-presbíteros “se afadigam na palavra e no ensino” (1 Timóteo 5.17) O foco do seu chamado não está na sua própria sabedoria, truques de vida ou esperteza executiva, mas em alimentar almas com o ensino e a pregação da palavra de Deus.

Assim, Paulo respira fundo depois do versículo 17 e, após um longo e carregado preâmbulo, diz: “prega a palavra” (2 Timóteo 4.2). Tal pregação pastoral na vida da igreja local está claramente ligada ao ensino:

“prega a palavra … corrige, repreende, exorta com toda a longanimidade e doutrina. Pois haverá tempo em que não suportarão a sã doutrina…” (2 Timóteo 4.2-3)

Não deixemos de notar a natureza preveniente da pregação e do ensino cristãos: idealmente, a instrução na sã doutrina começa antes que a igreja encontre o erro. Pregar a palavra e ensinar as Escrituras é um ministério pastoral cristão constante e diário. Alimentamos as almas das ovelhas com as palavras de Deus. As Escrituras são os pastos verdejantes e as águas tranquilas para as quais os bons pastores conduzem seu rebanho. Primeiro vem a pregação e o ensino fiéis e sinceros, como o pão e a água de cada dia; depois vem a defesa do rebanho, à medida que surgem várias ameaças.

Se a sequência de substantivos em 2 Timóteo 3.16 representa quatro aspectos distintos do uso pastoral das Escrituras, é difícil imaginar outra atividade aparecendo primeiro. O ensino é o primeiro e principal chamado dos pastores, e, por vir em primeiro lugar, nos ajuda a reconhecer o que poderíamos chamar de “ordem didática” — uma sequência lógica que aqui lista primeiro o ensino, depois a repreensão, depois a correção e, por fim, a instrução.

Próximo: Exponha o Erro à Luz

Apropriadamente, “repreensão” vem em seguida. Agora, o termo é negativo e reativo, complementando o esforço positivo e proativo do ensino. Por melhor que os pastores ensinem a seu povo, erros e enganos inevitavelmente surgirão, muitas vezes relacionados a erros prevalecentes no mundo (ou reações exageradas a esses erros) que encontram simpatia na igreja. Nós, cristãos, também temos muitos pecados internos que dão origem aos nossos próprios erros. Toda igreja, e todos os cristãos são suscetíveis a erros inocentes e culpáveis, na forma de crer e na prática, que precisam ser expostos à luz.

Em comparação com o ensino, essa repreensão, diz Gordon Fee, é “o outro lado da tarefa; [o pastor] deve usar as Escrituras para expor os erros dos falsos mestres e seus ensinamentos” (1 e 2 Timóteo, Tito, p. 13). Trazer à luz o erro, por meio de palavras, é o objetivo principal desta segunda atividade (João 3.20; Efésios 5.11, 13). Uma boa pregação e ensino expõe erros, mas sem deixar que o erro defina a prioridade. Ensinar é a ponta da lança — e a lança arremessada faz a separação da verdade das mentiras (e meias-verdades) e traz nova luz sobre cantos e recantos não iluminados, esclarecendo mentes obscurecidas e convencendo corações corrompidos.

Sendo assim, a exposição pastoral não apenas traz nosso povo à luz ao ensinar fielmente as Escrituras; ela também evidencia cantos remanescentes de escuridão em nós e em nossos hábitos de vida. Tal exposição do erro não precisa ser combativa ou pesada. Em vez disso, como a admoestação pastoral (um termo ainda mais forte no Novo Testamento), a repreensão é familiar. O apóstolo Paulo diz que escreveu aos coríntios não para envergonhá-los, mas como um pai para filhos amados (1 Coríntios 4.14).

Se até mesmo a admoestação deve ser fraternal (2 Tessalonicenses 3.15) em vez de adversária (e trabalha de mãos dadas com o ensino, cf. Colossenses 1.28; 3.16), então pastores sábios, como pais e irmãos do rebanho, exporão erros com a mesma esperança, paciência e graça cristã que exercem em seu ensino. O chamado para reprovar não é uma licença para pecar, abandonar o autocontrole ou chamar a atenção para a própria inteligência do mestre como aquele que sabe mais.

Bons pastores expõem amorosamente o erro — de maneira gentil ou severa, conforme exigido pela situação (Tito 1.13; 2.14) — porque temos um padrão claro, objetivo e fixo da verdade, fora de nós mesmos. Em um mundo de infinitos tons de cinza, como teríamos a pretensão de dizer o que está errado e o que não está? Porque temos e ensinamos as Escrituras. Não nossas próprias habilidades, mas a palavra escrita de Deus. Como Robert Yarbrough comenta: “Com qual fundamento um pastor assume uma responsabilidade tão assustadora? São as Escrituras que fornecem orientação e autoridade divina para que os servos dessa palavra desempenhem essa função necessária” (The Letters to Timothy and Titus [As Cartas a Timóteo e Tito], p. 687).

Então: Visualize o Caminho Adiante

De volta à sequência, digamos que a palavra de Deus está sendo ensinada e, ao longo do caminho, o erro é exposto — e agora? Em seguida, vem a “correção”.

A correção (no grego, epanorthōsis) parte da ideia para a ação, da exposição dos falsos ensinamentos para o vislumbre de uma vida piedosa e esperança tática. A correção traça um curso para a cura, para a restauração, para a reforma, iluminando a rota de uma fuga da escuridão. De acordo com Yarbrough, “os pastores não se limitam a repreender: eles restauram e apontam em direções corretivas”. A correção, diz Philip Towner, é “a atividade seguinte” à repreensão.

Hebreus 12.13 capta a ideia, usando a mesma raiz (orth-, que significa reto): “fazei caminhos retos para os pés, para que não se extravie o que é manco; antes, seja curado”. A correção reposiciona o osso quebrado, para que ele possa se regenerar adequadamente. É companheira da repreensão que “enfatiza o lado comportamental, ético” (Fee). Embora a repreensão traga o erro à luz, a correção direciona os pecadores para a recuperação. Quando os erros vêm à tona — quando você percebe, Ah não, eu estava errado! — a correção é o próximo passo.

Por mais tática que seja, tal correção não é menos do que a plena aplicação da graça de Deus em Cristo — tanto fora de nós, em Cristo e sua obra, quanto em nós, por meio da habitação do seu Espírito. A palavra de Deus anuncia o perdão de nossos pecados expostos e nos convoca à santidade prática, capacitada pelo Espírito. O ensino cristão da palavra completa de Deus leva os pecadores a se lançarem à misericórdia e aprenderem a ficar de pé e a caminharem na graça.

Finalmente: Instrua-os para Viverem Bem

O último dos quatro, uma conclusão apropriada para a sequência didática, é a instrução — um conceito carregado no mundo antigo e no Novo Testamento (Grego paideia). Não meramente verbal, mas tático, “corresponde a corrigir, como seu lado positivo” (Fee). A instrução envolve condicionar a pessoa interior por meio de “inculcar os atos e hábitos que refletirão o próprio caráter de Deus (sua ‘justiça’) em relação ao seu povo” (Yarbrough, p. 688).

Como Jesus falou sobre seus discípulos sendo instruídos durante seu tempo com ele (Mateus 13.52; Lucas 6.40), da mesma maneira pretendemos discipular nosso povo em direção à maturidade cristã. E a maturidade, em qualquer esfera da vida humana, não vem automaticamente, mas através do condicionamento intencional (Hebreus 5.14). O discipulado realmente faz diferença; ele transforma o discípulo, remodela a alma e seus padrões de pensamento e prazeres — de maneira significativa ao longo do tempo. Essa instrução normalmente não é fácil, mas requer persistência em momentos de desconforto, até mesmo dor, para perseverar no caminho em direção à recompensa que nos é proposta (Hebreus 12.11).

A instrução, sem dúvida, inclui o que poderíamos chamar mais estritamente de disciplina (Hebreus 12.3–11), mesmo quando notamos bem a diferença entre disciplina como meio e punição como fim (1 Coríntios 11.32). Todo o processo de instrução pastoral é abrangente e construtivo, não apenas responsivo. É holístico, não apenas intelectual.

Esta instrução na justiça — em uma vida de retidão, comportamento cristão — começa em nosso ensino, mas não termina com nossas palavras. Para instruir nosso povo, nós, pastores, devemos estar entre eles e ter nosso povo entre nós (1 Pedro 5.1–2). Juntos, como equipes pastorais, ensinamos a igreja a viver baseada nas Escrituras e, então, demonstramos a conduta cristã na vida cotidiana (1 Pedro 5.3; Tito 2.7).

No meio do cuidado com todo o rebanho — por meio de ensino, aconselhamento e exemplo — também confiamos as verdades centrais “a homens fiéis, que sejam capazes de ensiná-las a outros” (2 Timóteo 2.2, NVI). Ou seja, discipulamos e procuramos investir em futuros líderes, vocacionais e não vocacionais, que esperamos que se juntem a nós no trabalho e façam o mesmo. Trabalhamos para levantar homens que usarão bem a palavra de Deus para ensinar, reprovar, corrigir e instruir na justiça, mesmo muito depois de termos partido.

Traduzido por Vittor Rocha

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