Quando começamos a estudar a Bíblia, é possível que tenhamos dificuldade de compreender como se dá o desenrolar das histórias em sua grande narrativa. Muitas pessoas enfrentam problemas para entender qual é o ponto unificador do enredo bíblico e quais são os principais eventos que trazem mudanças significativas nessa história. Surgem algumas perguntas, como: Quais são os pontos de continuidade e descontinuidade entre o Antigo e o Novo Testamento? Como cada aliança que Deus fez interfere no todo da história? O que a vinda de Cristo trouxe para nós? Qual é a mensagem central das Escrituras?
É disso que a teologia bíblica trata, daí a sua importância. Ela é a disciplina que nos ajuda a resolvermos esses problemas. Estudá-la nos auxiliará a compreendermos a sequência dos acontecimentos em seu devido contexto e a entendermos em que momento nos encontramos hoje, diante do quadro total da Bíblia. Esse quadro pode ser resumido em: Criação, Queda, Redenção e Consumação. A teologia bíblica nos ajudará a obtermos uma melhor noção de como cada peça se encaixa no registro divino, ou seja, como cada livro da Bíblia contribui para sua história de forma mais ampla e para o plano de Deus que nos foi revelado, de maneira sublime, de Gênesis a Apocalipse.
Quando estudamos os acontecimentos em seu devido contexto, percebemos como cada detalhe glorifica a Deus e isso traz alegria aos nossos corações e um maior desejo de conhecer o Senhor, de estar com Ele e de viver para Sua glória.
Estudaremos a teologia bíblica reformada, a qual, como explicaremos mais a frente, segue um modelo pactual. Sobre a importância desse modelo, William Teixeira afirmou que “a teologia pactual está para o corpo da teologia bíblica assim como a coluna vertebral está para o corpo humano”. [1] Ainda a esse respeito, o teólogo batista A.W. Pink destacou que as alianças divinas possuem proeminência nas Sagradas Escrituras:
Os pactos ocupam um lugar de destaque nas páginas da revelação divina, mesmo se fizermos apenas uma leitura superficial da Escritura . A palavra aliança é encontrada ao menos vinte e cinco vezes no primeiro livro da Bíblia e ocorre muitas outras vezes no Pentateuco, nos Salmos e nos Profetas. Tampouco é uma palavra incomum no Novo Testamento. Ao instituir o grande memorial de Sua morte, o Salvador disse: “Este cálice é o novo testamento no meu sangue, que é derramado por vós” (Lucas 22:20). Ao enumerar as bênçãos especiais que Deus havia dado a Israel, Paulo disse que a eles pertenciam “as alianças” (Romanos 9:4). Aos Gálatas, Paulo expôs duas alianças (4:24-31). Aos santos de Éfeso, lembrou-lhes de quando andaram em seus dias como não regenerados, “estranhos às alianças da promessa”. Toda a epístolas aos Hebreus é uma exposição acerca da melhor aliança da qual Cristo é o Mediador (8:6). [2]
Nehemiah Coxe, um renomado batista do século XVII, ao falar sobre as transações pactuais de Deus, disse:
Se alguém não entende as transações pactuais de Deus para com Adão de maneira correta, certamente ficará desnorteado em todas as suas buscas posteriores da verdade que procura conhecer. [3]
Sendo assim, uma vez que a teologia pactual se encontra no cerne da verdade das Escrituras, torna-se difícil exagerarmos sua importância para uma compreensão saudável das doutrinas bíblicas. O príncipe dos pregadores, Charles Haddon Spurgeon, afirmou:
A doutrina do pacto divino está na raiz de toda a verdadeira teologia. Já foi dito que aquele que entende bem a distinção entre o Pacto de Obras e o Pacto da Graça é um mestre em teologia. Estou convencido de que a maioria dos erros cometidos pelos homens acerca da doutrina da Escritura se deriva de erros fundamentais no que diz respeito aos Pactos da Lei e da Graça. [4]
Portanto, trata-se de um assunto central que, se não for entendido adequadamente, pode afetar negativamente a compreensão de todas as outras doutrinas. Logo, o estudo aprofundado da teologia bíblica reformada nos agrega uma série de benefícios, pois ela:
- Oferece-nos uma melhor compreensão do enredo completo da Bíblia e de nosso papel nesse grande quadro;
- É essencial para a hermenêutica, ou seja, para a interpretação correta da Palavra de Deus;
- Ensina como o Antigo Testamento se relaciona com a pessoa de Cristo;
- Ajuda-nos a compreendermos os aspectos de continuidade e descontinuidade entre as alianças divinas, prevenindo-nos de muitos equívocos e suas consequências danosas;
- Auxilia-nos a entender como cada parte das Escrituras contribui para o plano de Deus;
- Ensina sobre a herança teológica encontrada em importantes confissões de fé históricas;
- Apresenta uma noção elevada a respeito do nosso Senhor Jesus Cristo, o Mediador;
- Leva-nos a glorificar a Deus na contemplação de Sua obra redentora.
1. O Que é Teologia Bíblica?
A teologia é o estudo da revelação de Deus. O professor Heber Carlos de Campos explica que “o homem estuda Deus mediante aquilo que Deus revela de Si mesmo. Portanto, a teologia deve ser entendida como a ‘ciência da revelação’ ou a ‘ciência da Escritura”. [5] Existem algumas modalidades de estudo da teologia, tais quais:
Teologia sistemática.
Ocupa-se da sistematização das doutrinas sob determinados títulos, e também é chamada de dogmática . Preocupa-se em arranjar, em um sistema completo de doutrinas, o que os cristãos creem sobre vários tópicos, como Deus, salvação, pecado, igreja, batismo, ceia etc.
Teologia histórica.
Busca estudar, historicamente, como a igreja cristã tem feito teologia ao longo dos séculos e lida com os conflitos, os grandes debates e os concílios ocorridos ao longo da história da igreja, bem como com os credos firmados pelo pensamento cristão.
Teologia exegética.
Estuda o processo de extração da mensagem de um texto a partir de seu contexto original. A teologia bíblica, por vezes, é considerada uma parte dessa disciplina mais ampla chamada teologia exegética.
Teologia pastoral.
Interessa-se pelo estudo da aplicação prática da Palavra de Deus na vida dos cristãos. Sua ênfase está no ministério e no cuidado pastoral da igreja local. [6]
Teologia bíblica.
A teologia bíblica busca compreender o enredo das Escrituras enquanto um só livro. Geerhardus Vos a define como “aquele ramo da teologia exegética que lida com o processo da autorrevelação de Deus registrada na Bíblia”. [7] Para Vos, o nome “história da revelação especial” seria preferível, pois essa nomenclatura expressa, com melhor precisão e de uma maneira totalmente aceitável, o que essa ciência se propõe a ser. Contudo, é difícil mudar um nome que já se consagrou pelo uso. [8] James M. Hamilton Jr., em seu livro “O que é Teologia Bíblica?”, explica:
Em suma, com a frase teologia bíblica quero dizer a perspectiva interpretativa refletida no modo como os autores bíblicos apresentaram sua compreensão de Escrituras anteriores, da história redentiva e dos eventos que eles descrevem, relatam, celebram ou tratam nas narrativas, poemas, provérbios, cartas e apocalipses. [9]
Uma outra definição dessa área pode ser encontrada no livro “Teologia Bíblica”, de Nick Roark e Robert Cline, que a define da seguinte maneira:
Teologia bíblica é um modo de ler a Bíblia como uma única história de um único autor divino, que culmina em quem Jesus Cristo é e o que Ele fez; então, cada parte da Escritura é entendida em relação a Ele. A teologia bíblica nos ajuda a entender a Bíblia como um grande livro constituído de vários livros menores que contam uma única grande história. O herói e o ponto central dessa história, de capa a capa, é Jesus Cristo. [10]
Portanto, a teologia bíblica é a maneira de observarmos a revelação de Deus, a sequência dos eventos na grande narrativa bíblica. Trata-se de uma forma de ler as Escrituras como um único grande livro composto por diversos livros menores em uma história que culmina em Cristo. Ele é o ponto central da história e cada parte deve ser entendida em relação a Ele. Graeme Goldsworthy explica que:
A teologia bíblica é um meio de entender a Bíblia no seu todo, a fim de podermos perceber o desenrolar do plano da salvação estágio por estágio. A teologia bíblica se ocupa da mensagem de Deus para nós na forma em que ela realmente assume nas Escrituras. [11]
Portanto, podemos perguntar: Qual é o tema central desse enredo bíblico? Qual é o elemento unificador encontrado nessa grande narrativa? Como compreender a história revelada ao longo do Antigo e Novo Testamento?
O tema central e unificador do enredo bíblico pode ser encontrado na pessoa de Jesus Cristo. Toda a Escritura fala a Seu respeito. A Bíblia revela como o Deus Todo-Poderoso resgatou um povo, por meio do sacrifício do Seu filho unigênito, pelo poder do Espírito Santo, a fim de viver para a Sua glória. Durante o Antigo Testamento, o Messias é anunciado e prefigurado de várias formas, e, no Novo Testamento, Ele vem ao mundo para salvar Seu povo dos seus pecados. Após cumprir Sua missão, Ele é apresentado como Aquele a Quem toda autoridade foi dada e já reina à destra de Deus, como o cabeça de Sua igreja que voltará no tempo determinado por Deus para a consumação de todas as coisas. O príncipe dos puritanos, John Owen, complementa:
Esse princípio sempre deve ser retido em nossas mentes ao lermos a Escritura, a saber, que a revelação e a doutrina da pessoa de Cristo e Seu ofício são o fundamento sobre o qual todas as outras instruções dos profetas e dos apóstolos, para a edificação da igreja, são construídas, e pelo qual elas são esclarecidas… Portanto, o próprio Senhor Jesus Cristo manifestou isso de forma geral em Lucas 24:26-27, 45-46. Deixe de lado essa consideração e as Escrituras deixam de ser o que pretendem, ou seja, uma revelação da glória de Deus na salvação da igreja… [12]
Owen destaca a revelação e doutrina de Cristo, expressa pelo próprio Senhor Jesus Cristo no caminho de Emaús, que pode ser observada no seguinte relato: “Porventura não convinha que o Cristo padecesse estas coisas e entrasse na sua glória? E, começando por Moisés, e por todos os profetas, explicava-lhes o que dele se achava em todas as Escrituras” (Lucas 24:26-27). William Hendriksen comenta o que ocorreu ali:
É razoável presumir que nosso Senhor, ao interpretar em todas as Escrituras as coisas referentes a Ele, mostrou como o Antigo Testamento completo, de diversas maneiras, aponta para Ele. [13]
Goldsworthy complementa:
Uma vez que Cristo é a síntese de toda a revelação bíblica, o que é revelado dEle rege nosso modo de fazer teologia bíblica. Jesus de Nazaré é a mais plena autorrevelação de Deus à humanidade. Ele traz plena luz ao que, desde o início, foi apresentado no Antigo Testamento como sombra. [14]
Portanto, a teologia bíblica busca compreender como se desenvolve a grande história bíblica, a qual Roark e Cline assim resumem: “Deus, o Pai, enviou seu Filho por meio do Espírito para conquistar um povo para a Sua própria glória”. [15]
Fonte: Parte do primeiro capítulo do livro “Teologia Bíblica Batista Reformada” de Fernando Angelim
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[1] TEIXEIRA, William. Prefácio. In: DENAULT, Pascal. Os Distintivos da Teologia Pactual Batista: Uma Comparação entre o Federalismo dos Batistas Particulares e dos Pedobatistas do Século XVII. 1ª ed. São Paulo: O Estandarte de Cristo, 2018. p. 29.
[2] PINK, A.W. Divine Covenants, Reformed Church Publications, 2009. Edição do Kindle.
[3] COXE, Nehemiah; OWEN, John. Covenant Theology: from Adam to Christ. ed. Ronald D. Miller, James M. Renihan, and Francisco Orozco. Palmdale: Reformed Baptist Academic Press, 2005. p. 42. (Tradução própria.)
[4] SPURGEON, C.H. O Maravilhoso Pacto. O Estandarte de Cristo. Disponível em: <https://oestandartedecristo.com/2019/03/21/o-maravilhoso-pacto-por-c-h-spurgeon/>. Acesso em: 15 de jan. de 2020.
[5] CAMPOS, Heber C. A Teologia é uma ciência? Voltemos ao Evangelho. São José dos Campos, 2019. Disponível em: <https://voltemosaoevangelho.com/blog/2019/04/a-teologia-e-uma-ciencia/>. Acesso em: 24 de set. de 2019.
[6] Essa seção foi baseada em: GOLDSWORTHY, Graeme. Introdução à Teologia Bíblica. O Desenvolvimento do Evangelho em Toda a Escritura. São Paulo: Vida Nova, 2018 . p. 32-35.
[7] VOS, Geerhardus. Teologia Bíblica: Antigo e Novo Testamentos. 1ª ed. São Paulo: Editora Cultura Cristã. 2010. p. 16.
[8] Ibidem, p. 27.
[9] HAMILTON JR., James M. O que é Teologia Bíblica?: Um guia para a história, o simbolismo e os modelos da Bíblia. São José dos Campos: Editora Fiel. 2016. Edição Kindle.
[10] ROARK, Nick. Teologia Bíblica: como a igreja ensina o evangelho com fidelidade. São Paulo: Vida Nova, 2018. p. 30.
[11] GOLDSWORTHY, Introdução à Teologia Bíblica. O Desenvolvimento do Evangelho em Toda a Escritura, p. 33.
[12] OWEN, John. The Works of John Owen. ed. William H. Goold. v. 23. Edinburgh: The Banner of Truth, 1987. p. 314-315. Apud BARCELLOS, Richard. O Pacto de Obras: Suas Bases Confessionais e Bíblicas. 1ª ed. São Paulo: O Estandarte de Cristo, 2019. Edição Kindle.
[13] HENDRIKSEN, William. Comentário do Novo Testamento – Lucas. 2. ed., v. 2. São Paulo: Editora Cultura Cristã, 2014. p. 653.
[14] GOLDSWORTHY, Introdução à Teologia Bíblica. O Desenvolvimento do Evangelho em Toda a Escritura., p. 78.
[15] ROARK, Teologia Bíblica: como a igreja ensina o evangelho com fidelidade, p. 33.