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Então Maria deu à luz o seu filho primogênito, enfaixou o menino e o deitou numa manjedoura, porque não havia lugar para eles na hospedaria. (Lc 2.7)

“Onde Deus está?”, perguntou o discípulo.

“Em toda parte em potência e no céu intelectual em substância”, respondeu o mestre.

Não satisfeito, o discípulo voltou à carga: “Como é possível que Deus esteja em toda parte sempre e, ao mesmo tempo, não esteja em lugar nenhum?”.

Pacientemente respondeu o mestre: “É que Deus é incorpóreo e, por conseguinte, ‘não localizado’, illocalis”. [1]

Segundo Jacques Le Goff, esse diálogo está no Elucidarium de Honório de Autun, um monge medieval que durante um bom tempo foi discípulo de Anselmo da Cantuária. Nessa importante obra, escrita no século 12, Honório reuniu algumas das principais crenças cristãs desenvolvidas na Inglaterra até aquele momento. Uma delas dizia que existem três céus: um é o céu corporal onde estão os planetas, as estrelas, o Sol, a Lua; outro é o céu espiritual habitado pelos anjos; outro é o céu intelectual onde os bem-aventurados contemplam diretamente a Santíssima Trindade. Em contraste, em vez de oferecerem especulações sobre os altos céus, os russos, em 1961, puseram o primeiro homem no espaço. Seu nome era Yuri Gagarin, que, por sinal, era membro da Igreja Ortodoxa Russa. Na ocasião, Nikita Khrushchev, secretário-geral do Partido Comunista da União Soviética, em um discurso antirreligioso, disse que, quando esteve pela primeira vez no espaço, Gagarin teria dito “Olhei para todos os lados, mas não vi Deus”. Mas isso não passava de uma, digamos assim, “fake news”. Simplesmente não há essa frase e nem sequer uma frase parecida com ela nas transcrições das mensagens entre Gagarin e o controle da missão russa. [2] Em resposta a esse episódio, C. S. Lewis escreveu um artigo intitulado “Onward, Christians Sapaceman” [Avante, astronautas cristãos]. Nesse artigo, Lewis disse que,

“Buscar por Deus — ou pelo Céu — explorando o espaço é como ler ou pesquisar todas as peças de Shakespeare na esperança de encontrar Shakespeare como um dos personagens ou Stratford como um dos lugares. Shakespeare está, em certo sentido, presente em cada momento da peça. Mas ele nunca está presente da mesma maneira que Falstaff ou Lady Macbeth. Nem está espalhado pela peça como um gás. Se houvesse um idiota que pensasse que as peças surgiram por conta própria, sem um autor (para não mencionar autores, produtor, gerente, ajudantes de palco entre outros), nossa crença em Shakespeare não seria muito afetada por ele dizer que estudou todas as peças e nelas nunca encontrou Shakespeare. (…) Claro que isso é apenas uma analogia. Não estou sugerindo que a existência de Deus seja tão facilmente estabelecida quanto a existência de Shakespeare. Meu argumento é que, se Deus existe, ele está relacionado ao universo mais como um autor está relacionado a uma peça do que como um objeto no universo está relacionado a outro.” [3]

A ideia de que Deus não é um mero Primeiro Motor Imóvel, mas o criador e provedor do universo é, sem dúvida, uma das ideias mais importantes do cristianismo.[4] E é exatamente essa ideia que impede não apenas Lewis mas todos os cristãos de conceberem Deus como um objeto que está relacionado a outro no universo. Em contrapartida, é bem verdade que a ideia de Deus como autor de um grande teatro, tal como o theatrum mundi de Pedro Calderón de la Barca, protege Lewis de alguns embaraços escolásticos, como, por exemplo, a amálgama entre o Primeiro Motor Imóvel e a Santíssima Trindade. Todavia, não é menos verdade que essa mesma ideia faz Lewis enroscar em outros problemas talvez bem mais espinhosos. Por exemplo, quando os teólogos medievais diziam ser um absurdo procurar Deus como um item dentro de sua própria obra (o universo), não estariam eles negando o que o cristianismo, por séculos, afirmou ao dizer que há pelo menos um momento da história em que Deus se tornou homem e caminhou entre outros homens na Galileia? Se isso não é ‘Deus em sua própria obra’ então o que é? Antes de procurar respostas a essas perguntas, imagine agora a cena descrita por Lucas em seu evangelho:

Naqueles dias, foi publicado um decreto de César Augusto, convocando toda a população do Império para recensear-se. Este, o primeiro recenseamento, foi feito quando Quirino era governador da Síria. Todos iam alistar-se, cada um à sua própria cidade. José também saiu da Galileia, da cidade de Nazaré, e foi para a Judeia, até a cidade de Davi, chamada Belém, por ser ele da casa e família de Davi, a fim de alistar-se com Maria, sua esposa, que estava grávida. E aconteceu que, estando eles ali, chegou o tempo de ela ter a criança. Então Maria deu à luz o seu filho primogênito, enfaixou o menino e o deitou numa manjedoura, porque não havia lugar para eles na hospedaria (Lc 2.1-7).

A preocupação das Escrituras é mostrar que Cristo veio na plenitude dos tempos. Isso significa que Jesus não veio em qualquer momento, mas justamente na hora em que todos os eventos — inclusive o decreto de recenseamento de César Augusto — estavam orquestrados, pela Divina Providência, para o espetáculo da encarnação do Filho de Deus (Gl 4.4). Ora, foi por causa do recenseamento que José se deslocou de Nazaré em direção a Belém, cidade de Davi. E foi para que se cumprisse a profecia ali e naquele momento que Jesus nasceu (Mq 5.2; Mt 2.4-6). A doutrina da providência é uma das doutrinas que mais tem capturado a minha imaginação nos últimos dias. Apesar disso e a despeito da segurança que essa doutrina oferece, ela me causa muito espanto. Fico impressionado ao observar o mundo e perceber nele os vestígios da inteligência, da beleza e da bondade divinas. Sempre me emociono quando imagino que, neste exato momento, há uma borboleta batendo suas asas coloridas numa mata fechada onde não há nenhum ser humano para apreciá-la. Isso é assim porque o espetáculo dessa borboleta é como o mundo todo: um espetáculo primeiro para o próprio Deus. Quando penso nisso, sou atravessado pela extraordinária ideia de que Deus não criou o universo apenas para seres humanos viverem e gozarem dele. Ele fez todas as coisas, sobretudo, para ele mesmo, para sua glória e deleite.

Assim, todos os detalhes têm uma razão de ser, ainda que a desconheçamos. Todos os detalhes, enfim, todas as coisas foram providenciadas por ele. Mas não somente a natureza. Os eventos que nela acontecem não são diferentes. Eles também causam profunda alegria e muito terror. Imagine: Deus providenciou todas as coisas também na história. É aqui que meu pavor se agiganta. Explico. Não tenho dúvidas de que Deus preparou todas as coisas, o universo e os eventos, tudinho para a vinda de Cristo, por exemplo. Mas por que ele não preparou um berço para Jesus? A Divina Providência preocupou-se com tantas coisas, mas não se preocupou com o lugar onde o Filho de Deus iria deitar-se? Como assim? É sério que “não havia lugar para eles na hospedaria”? Como poderia o mesmo Deus que providenciou para Abraão um carneiro, preso pelo chifre entre os arbustos, ter se esquecido de preparar um lugar para seu Filho recém-nascido dormir? Recuso-me a crer que a Providência falhou. Então, como Maria, entesouro em minha alma todos esses pensamentos, medito sobre eles e chego à seguinte conclusão: Quem disse que Deus não providenciou um berço para seu Filho? E a manjedoura? Não é ela a escandalosa manifestação da Providência? Por que deveríamos esperar algo diferente para o Filho de Deus?

A coisa fica ainda mais dramática quando sabemos, por intermédio de Lucas, que os anjos não se escandalizaram com a manjedoura:

“Havia, naquela mesma região, pastores que viviam nos campos e guardavam os seus rebanhos durante as vigílias da noite. E um anjo do Senhor desceu aonde eles estavam, e a glória do Senhor brilhou ao redor deles; e ficaram tomados de grande temor. O anjo, porém, lhes disse: “Não tenham medo! Estou aqui para lhes trazer boa-nova de grande alegria, que será para todo o povo: é que hoje, na cidade de Davi, lhes nasceu o Salvador, que é Cristo, o Senhor. E isto servirá a vocês de sinal: vocês encontrarão uma criança envolta em faixas e deitada em manjedoura.” E, de repente, apareceu com o anjo uma multidão do exército celestial, louvando a Deus e dizendo: “Glória a Deus nas maiores alturas, e paz na terra entre os homens, a quem ele quer bem.” Quando os anjos se afastaram deles e voltaram para o céu, os pastores disseram uns aos outros: “Vamos até Belém e vejamos os acontecimentos que o Senhor nos deu a conhecer.” Foram depressa e encontraram Maria e José, e a criança deitada na manjedoura.” (Lc 2.8-16)

Pense o seguinte: a Santíssima Trindade é revelada a nós por meio do Filho, mas ela é desde a eternidade, certo? Portanto, o Deus Trino não surgiu quando Jesus nasceu da virgem Maria. Até aqui, ok. Mas afinal o que tudo isso tem a ver com os anjos? Muito antes da encarnação do Verbo os anjos já adoravam o Filho de Deus nos céus. E agora eles adoram a Deus não porque Jesus se fez carne, mas porque Jesus é o Verbo de Deus encarnado. Ou seja, eles adoram a Deus contemplando Jesus em sua glória celestial, mas adoram também a Deus contemplando seu Filho deitado numa manjedoura. Não importa onde Cristo esteja. Se ele está sentado num trono nos altos céus ou deitado numa manjedoura na terra, se está pendurado numa rude cruz ou em triunfo numa nuvem de glória, Deus será glorificado pelos anjos.

Se isso não é motivo de sobra para você se juntar aos anjos e glorificar a Deus, pense, então, no que a manjedoura de Jesus significa. Ela é um sinal da glória de Deus, do seu amor e da sua misericórdia sobre nós. Ele nos deu seu único Filho, envolto em panos e o deitou numa manjedoura para o glorificarmos pela sua salvação. Deus não deu seu único Filho por causa de algum valor intrínseco a nós. Dar seu único Filho para salvar pessoas com algum tipo de valor intrínseco seria certamente um ato heroico, mas não divino. Por outro lado, dar seu único Filho para que pessoas perdidas em si mesmas, em seus pecados e sua maldade, encontrassem perdão e salvação, isso, sim, é um ato divino. Quando Jesus deu sua vida por nós ele não estava sendo heroico, mas, sim, divino. Dificilmente consideraríamos como heroico o ato de um pai entregar seu único filho para este ser ofendido, ferido e morto brutalmente pelo bandido que o pai quer tanto salvar. Lembro-me, neste exato instante, do quadro de Rembrandt, de 1633, o fabuloso “The Raising of the Cross”. Ao retratar a crucificação, ele coloca a si mesmo na pintura, mas entre os crucificadores.

Este é o escândalo da manjedoura: um Deus que moveu céu e terra para que seu único Filho viesse na plenitude dos tempos, fosse deitado numa manjedoura, crescesse em Nazaré e, completados trinta anos, iniciasse seu ministério pregando as boas-novas na Galileia e na Judeia, e, a despeito de todo o bem que fez, fosse pendurado numa vergonhosa cruz para morrer não como um mártir, mas como um cordeiro que tira o pecado do mundo e nos leva puros a Deus. Ele não foi entregue por Deus para salvar gente que tem valor intrínseco. Ele entregou seu Filho por gente como eu e você, gente suja, perversa e carente da graça e da misericórdia de Deus.

Nas palavras de Lewis:

O valor infinito de cada alma humana não é uma doutrina cristã. Deus não morreu pelo ser humano por causa de algum valor que tenha percebido nele. O valor de cada alma humana, considerada simplesmente em si mesma, sem um relacionamento com Deus, é zero. Como o apóstolo Paulo escreve, morrer por pessoas de valor não teria sido divino, mas meramente heroico; contudo Deus morreu por pecadores. Ele nos amou não porque éramos dignos de amor, mas porque ele é amor.[5]

Se isso não for razão suficiente para te fazer dobrar os joelhos diante de Deus e glorificá-lo agora mesmo pelo Verbo encarnado, então, nada mais o fará.


[1] Cf. Jacques Le Goff, A civilização do ocidente medieval (Lisboa: Estampa, 1983), p. 192-3.

[2] Devo essa informação a uma nota de Walter Hooper ao artigo de C. S. Lewis publicado sob o título “Onward, Christians Spaceman” [Avante, astronautas cristãos], num periódico americano em fevereiro de 1963. Cf. C. S. Lewis, Reflexões cristãs (Rio de Janeiro: Thomas Nelson Brasil, 2019), p. 274, nota 1.

[3] C. S. Lewis, Reflexões cristãs, p. 275-6.

[4] Basta lembrar que o Credo Apostólico, um dos documentos mais importantes da cristandade, começa dizendo “Creio em Deus Pai todo-poderoso, criador do céu e da terra”.

[5] C. S. Lewis, O peso de glória (Rio de Janeiro: Thomas Nelson Brasil, 2017), p. 166.

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