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Há livros religiosos. Há livros não religiosos. Todos os livros trazem fé em suas entrelinhas. Não necessariamente essa fé se traduz por uma religião convencional. Com essas afirmativas das quais muitos podem discordar eu começo este breve texto que, claro, contém fé – religiosa – em seu bojo. O que me motiva a falar um pouco sobre isso é a matéria assinada pela jornalista Thaís Matos e publicada na Editoria Pop & Arte do veículo eletrônico G1, das organizações Globo, datada de 05 de janeiro último. O título da matéria: “Poema erótico, traduções erradas e histórias épicas: como a Bíblia pode ser lida além da religião.” Curiosamente os tópicos desenvolvidos pela autora da matéria divergem de sua intenção anunciada, já que faz uma relação direta nos subtítulos entre “poema erótico” e “amada amante”, entre “traduções erradas” e “erros milenares”, mas desanda em relacionar a terceira de suas proposições, “histórias épicas”, não a um novo ponto, mas a dois pontos que lhe são distantes: “o maior, sim, mas em queda” e “Bíblia feminista, ilustrada, reinventada”. Segundo a ABNT, o subtítulo deve trazer “informações apresentadas em seguida ao título, visando esclarecê-lo ou complementá-lo, de acordo com o conteúdo do documento.”[i] A ausência dessa correlação básica já seria suficiente para percebermos uma forma peculiar de construção do registro.

Claramente a matéria tem intenções de distorcer ou menosprezar a fé alheia. Os indicativos mais evidentes partem da redação e não das informações coletadas. Há uma norma básica em língua portuguesa que diz que substantivos próprios devem ser grafados com maiúsculas. Vemos isso num fácil acesso ao Michaelis Online, quando lemos exemplos do que são “os substantivos próprios (nomes de pessoas, cognomes, topônimos, denominações religiosas e políticas, nomes sagrados e ligados a religiões, entidades mitológicas e astronômicas)”[ii], ao que se seguem, na mesma referência, muitos exemplos práticos, entre os quais lemos os substantivos com relação ao divino: “Deus; Cristo; Buda; Alá; Baco; Zeus; Afrodite; Júpiter.” Citando Goethe, Manoel P. Ribeiro destaca a respeito dos nomes próprios que “o nome de um homem não é como uma toalha, que se pode sujar ou amarrotar sem fazer dano à mesa sobre a qual está posta, mas sim como uma vestimenta perfeitamente adaptada, tal qual a pele, que não se pode arranhar ou cortar sem fazer mal também à pessoa.”[iii] Uma paráfrase aceitável começaria por “um substantivo próprio não é como uma toalha…” Concordando plenamente com o que acima se diz está o clássico que os “substantivos próprios de quaisquer espécies” devem ser grafados com maiúsculas, citando os exemplos de “Todo-poderoso; Deus; Jeová; Buda; Alá; Tupã.”[iv] Sabemos que as letras maiúsculas são uma maneira de gerar destaque ou realce no emaranhado de letras minúsculas que geralmente povoam as composições textuais. Mas há normas bem definidas para seu uso, seja em meio impresso, seja em mídia eletrônica. O fato é que tais normas não devem ser intercambiáveis ao sabor de quem quer redigir com intenções que não sejam as literárias, principalmente se a redação vem da pena de alguém que deve comunicar o que é, não o que acha ou o que gosta.

E aqui passo a outra seara. O texto pode ser utilizado com fins escusos. E, para isso, sempre haverá algo mal estruturado literariamente, com a clara finalidade de ocultar à leitura superficial o que se quer manipular, ao invés de informar. Em tese, textos informativos, salvo os produzidos por emissores de opinião (como os âncoras), devem informar, ou seja, levar ao leitor uma informação da qual ele não dispunha antes da leitura, e não ser persuasivos em fazer o leitor mudar de opinião, o que estaria na competência do leitor após obter a informação sem coação intelectual ou emocional. Algumas maneiras pelas quais isso acontece livremente em nosso tempo é a manipulação através de alterações nos padrões de significação da informação com o uso sistemático de princípios semiológicos e a utilização de padrões semânticos indutivos, ambas as coisas levando o leitor incauto (quase a totalidade dos atuais leitores) a enxergar o que o autor quer que se enxergue, que geralmente é o instrumento para dizer o que terceiros têm a dizer, a despeito de muitas vezes usar um tom diferente em seu discurso. É dessa forma que tolerância oculta intolerância e quem é tolerante é taxado de intolerante.[v] É assim que gritas de grupos minoritários são tornadas populares, aceitas e oficializadas pelas classes política e jurídica enquanto as demais pessoas são silenciadas, num círculo de dar voz a quem não tem e tirar a voz de quem tem, fazendo do minoritário a vítima de alguma circunstância e do outro o seu algoz, mesmo com distanciamento de tempo e de espaço, num anacronismo abjeto.

Quando a jornalista compôs o texto publicado, ela claramente foi por dois caminhos mencionados acima. O primeiro foi o de ordem ortográfico mesmo: errou porque quis errar. Uma profissional do texto não grafaria a palavra “deus” por três vezes no mesmo texto com minúscula inicial por mera distração. Até mesmo o seu editor de texto lhe acenaria automaticamente o erro. Alie-se a isso o fato de não haver um só caso do mesmo substantivo próprio grafado com maiúscula: foi proposital. O segundo segue por um viés semântico de variante filológica – se conscientemente, não sei – e a percepção que um leitor mais atento tem ao unir as informações do texto a essa questão é que a autora quis passar uma mensagem de minoração da importância do sujeito envolvido, o Deus cristão: também proposital.

Aqui começa outro dilema, o real por detrás da matéria: a fé alheia. Isso nos incomoda porque faz parte do cristianismo reformado cultivar a tolerância com respeito à fé alheia: isso mesmo, conquanto sejamos acusados do contrário, não combatemos as outras expressões de fé, e a única coisa que pleiteamos é que sejamos livres para cultuar, lado a lado na sociedade, sob a proteção do Estado de Direito, com as demais fés. Por causa de nossa premissa soteriológica temos o privilégio de ser a expressão de fé mais tolerante que existe, mesmo que isso não represente qualquer forma de sincretização da nossa fé. Somos tolerantes exatamente porque não queremos que nenhuma religião seja tornada híbrida, nem mesmo que se transforme em cristianismo: cada qual siga o seu caminho em paz, crendo no que crê. Indivíduos são a nossa preocupação religiosa, e para eles pregamos o que cremos: se eles aderem ou não, está aí uma prática comum também às demais religiões.

Faz parte da deferência às demais crenças respeitar também seus símbolos, cultos,  expressões e, claro, seus textos sagrados. Textos sagrados, por sua vez, são para a apreciação no universo do sagrado, da fé, não para além da religião. Extrair os textos do budismo, do confucionismo, do cristianismo, do islamismo, do espiritismo, do hinduísmo e de quaisquer outras fés de seu arcabouço religioso para os ler como se fossem literatura de lazer ou de jornalismo é não conseguir respeitar nem tolerar a fé do outro. E aqui a voz de tolerância da autora se faz absurdamente intolerante. Mas penso que ela nem percebe isso. Buda deve ser lido como ente sagrado nos textos sagrados do budismo, assim como Alá deve ser lido como ente sagrado nos textos sagrados do islamismo. O cristianismo tem em Deus seu ente sagrado, que deve ser lido assim em seu texto sagrado. Para cada religião, a sua literatura representa o que é de sagrado, goste o outro ou não, creia o outro ou não. O fato de crermos de outra forma não deve diminuir nosso respeito, o que podemos inferir de nosso próprio texto sagrado, que diz “em tudo, façam aos outros o que vocês querem que eles façam a vocês; pois esta é a Lei e os Profetas.” (Mateus 7.12).

Mas Thaís acerta em alguma medida, infelizmente. Não me causa espécie que gente de fora dos círculos da religião seja intolerante e pouco ilustrada a respeito da religião. O que me causa estranheza é o número crescente de pessoas no universo cristão que insiste em ler a Escritura Sagrada como um livro qualquer, para além da religião cristã. Na Bíblia descobrem evolução de espécies, ETs, erotismo, homoafetividade, marxismo, racismo, intolerância e muitas coisas mais. Assentem sorridentes quando alguém diz que achou erros de tradução e de conceituação. Redigem bíblias feministas. Elaboram cursos de teologia ateísta (!). Terminam as preces com um enorme e sonoro inclusivismo teológico e de gênero, em nome de Brama e de outros deuses, dizendo “Amem… and Awoman”[vi]. Só não conseguem descobrir ali a mensagem de Deus ao homem caído, que nos conduz de volta ao ponto de conciliação com o Deus Criador que jamais deveríamos ter agredido com nossos pecados. Não a descobrem porque insistem em procurar Deus num lugar qualquer, num texto qualquer, para além da religião. Deus, a esses, mantém-se encoberto e, salvo se forem escolhidos para um dia o verem, jamais verão Deus: nem na Bíblia, nem em seu coração, nem na eternidade. Eis o triste fim, não como o do nacionalista Policarpo Quaresma[vii], mas como o de uma espécie que se rebelou contra o seu Criador e o expôs desnudado aos seus próprios caprichos, negando o próprio Deus enquanto ruma ao seu ocaso.

 

[i] https://pt.scribd.com/doc/16893350/Abnt-Nbr-6023-Referencias-bibliografica-em-documentos. Acesso em 07/01/2020.

[ii] https://michaelis.uol.com.br/moderno-portugues/nocoes-gramaticais/emprego-das-iniciais-maiusculas. Acesso em 07/01/2020.

[iii] RIBEIRO, Manoel Pinto. Gramática aplicada da língua portuguesa. Rio de Janeiro: Metáfora, 2004. p. 100.

[iv] ROCHA LIMA, Carlos Henrique da. Gramática normativa da língua portuguesa. Rio de Janeiro: Livraria José Olympio, 1982. p. 53–54.

[v] Sugestão de leitura: CARSON, D A. A intolerância da tolerância. São Paulo: Cultura Cristã, 2013.

[vi] Pelo deputado americano Emanuel Cleaver, pastor da liberal e progressista denominação United Methodist Church, fazendo um trocadilho fonético para a palavra “amém” e acrescentando a sua própria contribuição do ridículo, absolutamente fora de qualquer sentido. https://www.gazetadopovo.com.br/mundo/democrata-encerra-prece-amen-and-awoman-congresso-americano.

[vii] O Triste fim de Policarpo Quaresma, obra do pré-modernista Lima Barreto (1881-1922), publicada em 1911.

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