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Estamos vivendo tempos bastante peculiares, nos quais a relativização de fé e a estranheza com que muitos círculos pretensamente evangélicos se deixam levar e que, por isso, tornam o falar adverso e oposto à fé cristã apostólica doce, bem como a sã doutrina num verdadeiro prurido nos ouvidos. Na fé cristã vemos ultimamente um certo intensificar de notícias de caminhos sendo traçados que nos conduzem a pensar o que realmente pode estar ocorrendo. Trata-se do caminho já antigo de ter muitos pentecostais e arminianos cansados de bagunça e falta de seriedade e liturgia mínimas para se perceber um local de culto ao Senhor (e, por favor, isso não é generalização), em paralelo a uma mornidão desgastante entre os mais tradicionais (o que tampouco é generalização), ao passo que temos visto com maior regularidade o anúncio de pessoas egressas de denominações protestantes para o catolicismo romano. Não apenas membros de igrejas, mas oficiais e ministros ordenados também estão nessa conta. Até aí, nenhuma novidade, porque o caminho inverso é tão numeroso quanto esse, ou até maior.

Em tempos de Internet, de mídia fácil e barata, de gente que se promove virtualmente, um fenômeno surge de modo vivaz, que é o de pensadores, alguns bons e muitíssimos de fraca argumentação e de excelente lábia, que se esforçam por expor ideias travestidas de psicologismos e filosofismos que trazem, em seu escamoteio, uma pregação religiosa. Ou seja, filósofos que vão filosofar, mas estão pregando a Igreja de Roma; psicólogos que vão palestrar, mas que também estão pregando a Igreja de Roma. São pregações travestidas de interesses amplos, mas cujo espectro é, realmente, a fala convidativa a crer que, ao final de tudo, a solução está na ida ou no retorno a uma determinada igreja. Nada de novo, porque o catolicismo romano entende que se a pessoa não pertencer àquela igreja, não poderá ser salva e que, sendo daquela igreja e cumprindo mais alguns ritos institucionais e espirituais, com qualquer qualidade de espiritualidade, será salva. É bom lembrarmos que esses comunicadores vivem de suas mídias, onde oferecem cursos e palestras pagos, vendem seus livros e materiais e só esperam, ao final, que seus seguidores comprem seus produtos e lhes vendam a alma.

Esses comunicadores expõem coisas boas e lícitas, que fazem parte dos anseios de todas as pessoas de bem, e isso atrai muita gente com boas intenções e desejo sincero de melhorar em áreas críticas de sua vida. Mas há um problema de fundamentação: as propostas e respostas que eles oferecem são humanistas e desprovidas de Cristo e da Palavra, até porque, se tivessem Cristo no centro, seriam forçados a ter um olhar diferente do mundo e seus problemas. As soluções são do homem e para o homem. Por exemplo, falando sobre o Domingo da Ressurreição, um deles, sem sequer citar a morte ou a ressurreição de Cristo, fala de que é tempo de “ressuscitar os sonhos”. Ora, isso nada tem a ver com o Domingo da Ressurreição! Então, para quem quer ouvir falar de boas coisas, boa família, boa moral, reverência e tradição, sugiro se aprofundar na Bíblia e na tradição reformada, que buscou seu esteio na Escritura, na Era Apostólica e em parte da Patrística: não é preciso ir a Roma para descobrir a verdade, mas ir ao Caminho, à Verdade e à Vida [i] , que liberta o cativo numa única jornada: ao centro da alma, guiado pelo Espírito Santo, e não a uma capital de religião. É por isso que presbiterianos não precisam ir a Edimburgo, nem anglicanos, a Londres!

Mas qual será o motivo de haver um crescente número de membros de nossas igrejas que se sentem atraídos e encantados pelo brilho nos olhos e pela vivacidade com que alguns desses comunicadores expõem a sua fé? Afinal de contas, eles apresentam uma exposição fria que os mostra como os únicos pensadores razoáveis, ao passo que todos os protestantes são verdadeiros tolos perdidos no tempo e no espaço. Charles Malik disse em 1980 que o anti-intelectualismo era o maior perigo que o então cristianismo evangélico americano enfrentava, e isso porque os evangélicos tinham deixado de cuidar da mente das pessoas, preocupando-se apenas com o espírito. A pressa e a consequente formação que visa apenas a um ganho financeiro ou de projeção e a rasa mentalidade tinham se instalado no meio evangélico. [ii] Numa coisa ele estava absolutamente certo: evangélicos se tornaram preguiçosos para pensar. E esses comunicadores anunciam sem qualquer constrangimento que são bons pensadores, que são humildes e bons de coração, e maus pensadores certamente terão dificuldade em avaliar isso. Mas, para além disso, perdemos algumas coisas que são inerentes ao culto cristão: as denominações se despiram dos símbolos cristãos e de seus credos e confissões, apagaram a história do cristianismo de sua mente e, portanto, não reconhecem de onde vieram. Também aboliram quase na totalidade a liturgia cristã e a reverência de seus cultos. Ora, se há um grupo que se entende como mais esclarecido e verdadeiro, mantém viva a simbologia cristã, trata de sua historicidade e é reverente e litúrgico, por que não me juntar a ele?

Vejamos: a maioria das igrejas evangélicas no Brasil tem pavor dos símbolos, dos credos, das confissões e dos demais documentos de nossa afirmação de fé. Cristãos evangélicos não reconhecem mais e, muito menos, sabem de cor o Decálogo, ou a Oração do Senhor. E como saberão trechos de nossos documentos confessionais, se não conhecem mais a Bíblia? Junte-se a isso o fato da rarefação doutrinária e da mistura conceitual entre nós, o que deixa o fiel sem saber em que realmente crer. A enorme maioria da igrejas evangélicas brasileiras não ensina História da Igreja em suas classes e estudos bíblicos (quando ainda têm estudos), então qualquer outra história contada de modo razoavelmente verossímil parecerá verdadeira. Quando vamos à maioria das igrejas evangélicas brasileiras, o que vemos é uma miscelânea de paixão humana por poder e riqueza, misturada com a avidez por direcionamento fácil para a vida e para o dia a dia, com muitos coaches e palestrantes esvaziados de qualquer sentido cristológico, uma quantidade enorme de pastor midiático falando asininamente e muitas e muitas castas de ovelhas fracas e bodes fortes a disputarem as migalhas desses todos. Junte-se a isso a bagunça, a gritaria, o pula-pula, os modismos, a absoluta falta de reverência e a total ausência de liturgia, quer seja nos ambientes mais pentecostalizado sob a pretensa direção “ao vivo” do Espírito Santo, seja nos ambientes mais históricos que se curvam ao culto pós-moderno. Passados 40 anos, Malik estava certo: não pensamos mais direito. Fica fácil, portanto, termos hoje palcos ao invés de púlpitos, holofotes sobre o homem ao invés da Palavra clareando o caminho a Cristo, plateia ao invés de santos reunidos, palestrantes ao invés de pastores, reuniões ao invés de cultos, agitação ao invés de contemplação, barulho ao invés de silêncio, a voz do homem no lugar da voz de Deus: não está fácil! E isso é o que torna fácil ser levado por quem oferece parte disso tudo que nos foi roubado!

Para expor a sua fé diferente, uma das características primárias desses tais é o que já foi citado: o engodo por meio de boas coisas. Falam de casamento feliz, muitos filhos, famílias lindas e unidas, muitos amigos, amor fraternal, igreja perfeita, igreja unida e única, paz e harmonia. Alguns deles se autodeclaram humildes (!?) e muita gente enebriada diz “ó, como ele é humilde”! São inteligentes e benfazejos e tratam tudo isso como o que realmente é: algo muito bom e lícito, mas erram por não atribuírem isso a Cristo, e sim à tradição monárquica, a uma salvação por méritos humanos e à ideia constante de sua latria e de sua dulia. Outra característica é ganhar a confiança dos incautos, principalmente esses evangélicos já citados, de frágil ou nenhum cristianismo. Por fim, eis o grande golpe: todos amaciados e seguidores atônitos desses comunicadores eficazes, estes atacam a inteligência dos que não são romanos, particularmente de protestantes, e o fazem abertamente. Eles se dizem os donos da Bíblia e somente eles a compreendem. Protestantes são tolos e não conseguem ver a grandeza daquela religião, a única verdadeira. Assim como temas como ideologias de esquerda, ideologias de gênero e outras coisas semelhantes, eles se valem da mesma estratégia simples, porém eficiente: 1) falar coisas boas, 2) ganhar a confiança e 3) atacar frontalmente. Se repararmos bem, esse padrão também serviu para a missão da serpente no Éden.

Mas é preciso ponderar sobre alguns assuntos sobre os quais também se fala. Por exemplo, podemos, sim, fazer boas leituras entre os autores católicos do passado e, mais raramente, entre os de hoje. Mas, para isso, é sempre necessário ter boa estrutura doutrinária prévia, para ser capaz de separar eventuais desvios. Outra coisa que as pessoas se perguntam é se entre os católicos romanos há salvos. Minha perspectiva é que sim, a despeito dos desvios, porque onde há acesso à Escritura, há a possibilidade da iluminação do Espírito Santo, o que vale para o catolicismo e para qualquer outro lugar, incluindo todas as seitas ditas evangélicas, desde que Deus queira agir. Mas, ao pensarmos sobre a comunhão, entendemos que não comungamos com a igreja ou com os ritos católicos romanos, nem como indivíduos, nem como coletivo protestante, e isso se dá pelo distanciamento de ambas as formas e intenções de culto. Por outro lado, é preciso entender que não somos inimigos dos católicos: de forma alguma! Eles falam coisas boas? Com certeza! Só eles falam coisas boas? Não, de jeito nenhum: cristãos protestantes comprometidos falam delas o tempo todo, sempre com base na Cruz. Diante de muita coisa que vem ocorrendo, alguém pode se perguntar se um protestante pode se tornar católico romano. Ora, claro que sim, e não apenas católico, mas pode professar qualquer outra religião: isso é da consciência e da relação com Deus que o indivíduo tem, o que vai definir se ele pode ir ou não. Finalmente precisamos considerar que não é possível beber de ambas as fontes, católica e protestante ao mesmo tempo, pois são expressões de fé díspares e conflitantes em vários pontos centrais.

O resumo da ópera, diante do quadro atual que esses comunicadores expõem: se você for protestante, você é um tolo sem precedentes que não pensa e não sabe de nada. E eu cá comigo fico realmente impressionado como há tanta gente no meio evangélico seguindo e idolatrando esses sujeitos que aparecem nas mídias com clara missão de quebrar o padrão de pensamento cristão evangélico; fico admirado com a coleção de conhecidos meus assinando embaixo dos comentários deles. Um desses comunicadores, por exemplo, a certa altura, após demonstrar o quão néscios nós somos, e por termos o elemento filosófico “rompido na base”, solta que “é uma manifestação religiosa impossível, o protestantismo” e a consideração dele é que, não conseguindo entender nada, na verdade tentamos imitar o catolicismo. Para ele, os protestantes que são “bons” (por fazerem o bem e por “quererem descobrir a religião e a fé”) na verdade são “católicos implicantes”.

Fica a advertência com respeito a essa moda que se instala nos meios evangélicos. Não se permita engrupir por falas simpáticas e nem fique com a alma congelada quando pessoas dessa estirpe falam mal de seus irmãos na fé e da Igreja de Cristo (a verdadeira, invisível, pura e imaculada). Se permitir isso, você se tornará cúmplice da desfaçatez e da arrogância que se levanta contra o povo de Deus e contra o sangue dos mártires derramado ao longo de nossa história. Mantenha firme a sua fé, como ela lhe foi confiada uma vez e aguarde a revelação final do Senhor, com todo seu poder e glória, algo que será reservado apenas para os fiéis, muitas vezes considerados (ironicamente) tolos por este mundo.

 


[i] Cf. João 14.6

[ii] Charles Malik. The other side of evangelism. Christianity Today, p. 40, 7 Nov. 1980.

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