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Nāo irá um Deus justo castigar tais coisas?

Frederick Douglass fez esta pergunta em sua autobiografia após relatar a tragédia da morte de sua avó. Depois de uma vida inteira de escravidão e servidão a seus senhores, quando ela estava velha demais para ser útil a eles, eles insensivelmente a enviaram para morrer sozinha, longe de sua família.

No entanto, Douglass poderia ter se perguntado isto, em quase qualquer ponto de sua angustiante história de esperança e coragem em meio à desumanidade e à crueldade. As surras. Os assassinatos. O roubo calculado de tempo, família e dignidade. Desde que li sua história, esta pergunta vem reverberando em minha mente.

Nāo irá um Deus justo castigar tais coisas?

Continua a reverberar, porém, para além de somente as injustiças passadas da escravidão norte-americana. Os crimes e atrocidades reportados pelos noticiários 24 horas por dia – um ciclo que ameaça abalar nossas almas na maioria dos dias – me levam a repetir esta questão frequentemente na minha cabeça.

Cada manchete que leio sobre mais uma vítima de abuso sexual publicadas, testemunhando abuso por um grande magnata de Hollywood. Ou pior, pelas vítimas do famoso pastor de jovens e a igreja que o encobertou.

Nāo irá um Deus justo castigar tais coisas?

Cada vítima de injustiça política que sai nas notícias da noite, tanto internacionais, quanto nacionais.

Nāo irá um Deus justo castigar tais coisas?

Todos os relatos de crianças que foram abusadas e traumatizadas em centros de detenção de imigrantes nos últimos anos (apesar do fato de que a maioria de nós só está ouvindo sobre isso agora).

Nāo irá um Deus justo castigar tais coisas?

A cada dia, novas fábricas de abortos são abertas nos Estados Unidos, encerrando legalmente a vida de milhares de crianças ainda não nascidas – crianças que nunca foram abraçadas, nunca foram amadas, nem mesmo receberam a dignidade de um nome. Crianças sobre as quais nunca pensamos, porque suas vidas são apagadas a portas fechadas em salas esterilizadas por mãos cobertas com luvas. Crianças conhecidas apenas pelo Deus que tudo vê.

Nāo irá um Deus justo castigar tais coisas?

Sabemos que eu poderia continuar porque conhecemos os crimes, as depredações nas quais não conseguimos pensar por muito tempo sem nos deprimirmos pelo restante do dia. Uma pessoa capturou bem esse sentimento quando twittou: “Ficar irado o tempo todo é desgastante e corrosivo. Não ficar irado parece moralmente irresponsável ”.

Mas embora a tensão de nossa cultura de mídia indutora de raiva afete a todos nós, há pelo menos um pequeno benefício. Finalmente nos encontramos numa posição onde podemos ver a bondade do louvor de Davi: “Deus é justo juiz, Deus que sente indignação todos os dias” (Sl 7.11).

O Deus Justo que Julga

Muitas vezes nos dizem que nossa cultura não quer um Deus irado, que julga. Esta era não suporta mais ensinamentos sobre um Deus cheio de ira, que preparará suas armas para a batalha contra os opressores impenitentes do povo de Deus.

Mas eu não aceito totalmente essa visão. Não quando penso em nossa fúria. Não quando penso em nossa justa ira contra a injustiça. Em um mundo torto e arruinado pela rebeldia, acho que no fundo todos sabemos que necessitamos de um Deus que “sente indignação todos os dias”. Sabemos que seria uma enorme tragédia se Deus nunca castigasse estas coisas. Nós ficaríamos apavorados se descobríssemos que ele é um juiz injusto que nunca condena, nunca pune, nunca trata dos crimes do mundo – o que faria com que, na realidade, Ele não fosse um juiz de fato.

Não é isto parte daquilo que alimenta nossa ansiedade e inquietação? Não somos nós como Jeremias, perguntando-nos “Por que prospera o caminho dos perversos e vivem em paz todos os que procedem perfidamente?” Não somos nós atormentados pela suspeita de que nada jamais será feito? Que não importa como votamos, ou a quem buscamos, ou onde protestamos, os poderosos continuarão a sair impunes? Os violentos continuarão a moer os fracos até o pó? Que, apesar de alguns serem pegos, muitos ainda prosperarão porque sabem como lidar com o sistema e perverter a lei? Não são os nossos medos os mesmos do salmista, que se preocupa se o Senhor está se escondendo nestes tempos de angústia (Sl 10.1)?

Nestes momentos, nossos corações precisam de um Deus que dê nome ao pecado, que o julgue e que o castigue. Necessitamos de um Deus a quem podemos clamar: “Levanta-te, SENHOR! Ó Deus, ergue a mão! Não te esqueças dos pobres.” (Sl 10.12) – na confiança de que Ele responderá. Necessitamos de um Deus que em algum momento castigue estas coisas.

Julgamento Merecido

Claro, esta não é a única fonte de nossa ansiedade e inquietação, não é? Porque da mesma maneira como a avassaladora inundação de notícias pode nos encher de justa ira diante da injustiça, ela também nos afunda com um senso das mil maneiras diferentes pelas quais somos cúmplices da injustiça.

Pode ser que não repitamos piadas racistas, mas não falamos nada contra quando as ouvimos. Podemos não frequentar profissionais do sexo, mas temos olhado pornografia, que tem parte no tráfico sexual (sem mencionar sua natureza inerentemente degradante). Podemos não roubar de nossos vizinhos, mas guardamos e gastamos dinheiro com nós mesmos, sabendo que poderíamos doá-lo. Estamos enredados, como diz o Livro de Oração Comum, “em pensamentos, palavras e atos, pelo que fizemos e pelo que deixamos por fazer”.

De fato, tenho um pressentimento de que este incômodo sentimento de culpa é um motivador implícito por trás de alguns de nossos engajamentos políticos mais frenéticos e irados. Muitos de nós estão em uma missão – uma missão que podemos não perceber ou admitir – para justificar e expiar nossa injustiça. Se conseguirmos identificar os pecados e as hipocrisias de nossos vizinhos – por mais sutis que sejam aos olhos destreinados – não devemos ser culpados dos mesmos pecados. E assim nos esforçamos para fazer o bem, não apenas porque é certo, mas porque necessitamos provar para nós mesmos e para o mundo que nos olha, que não somos cúmplices. Nosso próprio senso de identidade está em jogo.

Portanto, no fundo de nossas mentes, o pensamento de que um Deus justo julgará estas coisas não é inteiramente bom. Perguntamo-nos: “Se observares, SENHOR, iniquidades, quem, Senhor, subsistirá?” (Sl 130.3)

Aqui vemos o modo como o antigo Evangelho da cruz tem algo a dizer à nossa época conflituosa – tempos que oscilam entre as consciências indignadas e culpadas.

Portador do Julgamento

Esta palavra clara chega a nós pela cruz e ressurreição de Jesus Cristo. Na morte do Filho, Deus “condenou o pecado na carne” (Rm 8.3). Ao vermos o julgamento pelo pecado no Calvário, testemunhamos a revelação da santa vontade de Deus. A cruz mostra que Deus tolera o pecado humano porque ele é paciente com os pecadores e não por ser ambíguo em relação ao pecado (Rm 3.26). Verdadeiramente, Deus odeia a injustiça, embora muitas vezes Ele detenha sua mão. Mas vemos também que Sua paciência não durará para sempre (2 Pe 3.7-10). Podemos ter certeza que um Deus justo punirá essas transgressões, porque Ele já o fez no passado.

No entanto, há esperança para nós naquele dia, já que na cruz também aprendemos que “Contigo, porém, está o perdão, para que te temam..” (Sl 130.4). Para aqueles que confiam em Cristo, Ele se colocou no lugar deles, sofreu a condenação de Deus, mas também foi ressuscitado e vindicado para a nossa justificação (Rm 4.24). Há graça para os que se arrependem e recebem a Cristo pela fé; nossos pecados foram perdoados e fomos purificados de uma consciência culpada (Hb 9.13-14).

Ainda mais, o Evangelho da cruz é um enorme motivador no presente momento. Para os que persistem na opressão e na injustiça, ele permanece como um sinal da justiça de Deus: “Abandone seu pecado antes que a minha paciência chegue ao fim e eu venha para punir estas coisas”. Mas também oferece esperança: “Abandone seu pecado e derramarei minha graça sobre você. Deixe sua maldade para trás.” Além disso, diz àqueles que trabalham pela justiça: “Continuem assim. Caminhem fielmente com o seu Deus e exerçam o máximo de justiça possível, e confiem que ele irá vindicar.” Isso nos liberta do fardo da necessidade de nos justificarmos a nós mesmos. Em vez disso, podemos simplesmente trabalhar para imitar e servir nosso Deus, que ama a justiça.

Nāo irá um Deus justo castigar tais coisas? nos perguntamos.

Ele o fez a 2.000 anos atrás, e Ele o fará novamente. Vem depressa, Senhor Jesus.

Traduzido por Vittor Rocha.

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