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Um tabloide americano recentemente disse o seguinte a respeito da Bíblia:

Nenhum pregador televisivo jamais leu a Bíblia. Nem os políticos evangélicos. Nem o papa. Nem eu. E nem você. Na melhor das hipóteses, nós todos lemos uma tradução ruim—uma tradução de traduções de traduções de cópias manuscritas de cópias de cópias de cópias de cópias, e assim por diante mais centenas de vezes.

Primeiro, não é verdade que estamos lidando com “uma tradução de traduções de traduções”, como se o texto grego original primeiro tivesse sido traduzido para o chinês, e depois para o alemão, e depois para o polonês, e finalmente alguém o traduzisse para o inglês. Não, somos capazes de traduzir direto dos textos gregos e hebraicos originais; por isso, na pior das hipóteses, lidamos com uma tradução, e só. Mas o que podemos dizer a respeito da ideia, da acusação, de que tudo que está disponível para nós são “cópias manuscritas de cópias de cópias de cópias de cópias”?

Tolice. Isso é o que devemos dizer.

O Problema Mais Óbvio

Reflitamos por um momento a respeito da questão da transmissão—isto é, podemos confiar que o texto original das Escrituras nos foi transmitido com precisão através dos séculos? Ao começarmos a considerar esta questão, necessitamos, de cara, reconhecer o problema mais óbvio: não temos os originais.

Quaisquer que tenham sido as folhas de papel que Lucas, João ou Paulo usaram para escrever o evangelho de Lucas, o evangelho de João ou a carta aos Romanos elas já se perderam na história, e é improvável que encontremos algum manuscrito bíblico a respeito do qual possamos dizer: “estamos 100% certos de que esta é a folha de papel original na qual o autor escreveu”.

Mas é aí que está. Seria ter “O Pedaço Original de Papel”, realmente a única forma pela qual podemos confiar de que o que temos é de fato o que foi escrito? Estamos para sempre fadados a dizer que não temos a menor ideia do que Homero ou Platão escreveram, uma vez que não temos as folhas de papel nas quais eles escreveram A Odisseia ou A República? Certamente não, e dizê-lo seria ridiculamente pedante. Então, e quanto aos documentos da Bíblia? Deveríamos simplesmente desistir e admitir que tudo que temos é um monte de cópias inúteis de cópias de cópias de cópias de cópias, e que jamais poderemos confiar de que o que temos é aquilo que os autores realmente escreveram?

Bem, não. Na verdade, mesmo apesar de não termos as Folhas de Paple Originais da Bíblia, podemos ficar altamente confiantes de que sabemos o que aqueles pedaços originais de papel diziam. E como isso pode acontecer?

A chave para responder a esta pergunta repousa no fato de que ainda que não tenhamos os originais, temos milhares de outros pedaços de papel que contêm o texto na língua original de cada livro da Bíblia—cerca de 5.400 no que tange ao Novo Testamento. Estes remontam ao terceiro, ou segundo, ou até (quem sabe?) ao primeiro século. Alguns desses pedaços de papel contêm cópias inteiras dos livros bíblicos; outros foram destruídos em diferentes graus, de modo que agora contêm apenas porções de livros. Outros são literalmente fragmentos do que antes eram manuscritos muito maiores.

O que torna todos esses manuscritos e fragmentos interessantes, ou problemáticos, dependendo de como analisamos, é que em certos lugares eles diferem uns dos outros, mesmo quando deveriam ser cópias da mesma porção da Bíblia.

Alguns afirmam: “De forma alguma. Não há como sabermos o que os originais diziam”. Tal conclusão, porém, vai longe demais. Por um lado, os problemas frequentemente citados como oriundos de toda esta situaçāo—que os manuscritos que temos são demasiadamente distantes dos originais, de tal forma que estão absolutamente repletos de variações—não são nem de perto tão difíceis quanto alguns o fazem. Por outro lado, é precisamente a existência destas milhares de cópias, advindas de todos os cantos do Império Romano, e com todas as suas variações, que nos permite reconstruir, com um elevado grau de confiança, aquilo que os originais diziam.

Deixe-me tentar explicar, um passo de cada vez.

Cuidado com as Lacunas!

A acusação que é feita constantemente é a de que os documentos que temos estão tão distantes dos originais que nem vale a pena tentar descobrir aquilo que os originais diziam. Afinal, o Novo Testamento foi escrito na segunda metade do primeiro século, e as cópias mais antigas que temos são de por volta dos anos 125 a 200. Portanto, na melhor das hipóteses, há uma lacuna de 45 a 75 anos entre os originais e as cópias mais antigas.

Isso soa bem problemático para a maioria de nós, porque, por alguma razão, imaginamos que 75 anos corresponde a muito tempo—tempo suficiente para que cópias de cópias de cópias fossem feitas, e, subsequentemente, perdidas, de tal modo que não temos nenhuma ideia de como eram os originais. Na verdade, esta não é uma hipótese correta de forma alguma, particularmente quando nos damos conta de que os livros em geral eram muito mais valiosos para o povo antigo do que o são para nós atualmente, e portanto, eles provavelmente tomavam maior cuidado com eles do que nós hoje.

Um exemplo fascinante é o chamado “Codex Vaticanus”, uma cópia do Novo Testamento originalmente feita no quarto século, mas que foi restaurada no décimo século, para que pudesse continuar a ser usada. Dá para ver o significado disto? O Codex Vaticanus ainda estava sendo utilizado 600 anos depois de produzido! Portanto, a afirmação de que tudo que temos são “cópias de cópias de cópias de cópias” dos originais é demasiadamente exagerada. De fato, está bem dentro do campo de possibilidades de que temos em nossos museus hoje cópias dos originais, e ponto final.

Além disso, quando consideramos a lacuna entre os originais e as primeiras cópias de outras obras antigas, podemos perceber quão pequena a “lacuna” em relação ao Novo Testamento realmente é. Por exemplo: para o livro de Tucídides História da guerra do Peloponeso, temos exatamente oito manuscritos que sobreviveram, sendo que o mais antigo deles dista 1.300 anos do original! Para o livro De Bello Gallico, de Júlio César, temos um total de nove ou dez cópias legíveis, sendo que a mais antiga delas é 900 anos mais velha que a original. Para o livro Histórias e Anais, de Tácito, há dois manuscritos, um que data do século IX, e o outro, do século XI. O original foi escrito no primeiro século—800 e 1.000 anos antes. Podemos facilmente identificar o ponto aqui: ninguém se importa com as “lacunas” quando se trata de outras literaturas antigas.

Passemos, então, à segunda acusação, que é a de que os manuscritos que temos estão tão repletos de diferenças, ou “variantes”, que é inútil pensar que podemos ter qualquer confiança a respeito do que diziam. Um erudito asseverou que há, surpreendentemente, cerca de 400.000 variantes no Novo Testamento! Há algumas coisas a dizer a respeito desta acusação.

Em primeiro lugar, os manuscritos não estão, na verdade, repletos de variantes, e que o número de 400.000 não é nem de perto assustador quanto parece, mesmo se for correto. O erudito que usou esse número não considerou apenas os 5.000 manuscritos gregos originais, que antecedem a invenção da imprensa, mas também 10.000 outros manuscritos em outras línguas, e além disso, cerca de 10.000 instâncias em que alguém citou o Novo Testamento durante os primeiros 600 anos da história da igreja! Juntando tudo isso, vemos que se trata de cerca de 400.000 variantes de por volta de 25.000 manuscritos e citações num período de 600 anos. No final das contas, isto significa algo em torno de… apenas 16 variantes por manuscrito. Dizendo-o de maneira educada, não é muita coisa.

Em segundo lugar, tenha em mente que “400.000 variantes”, aqui, não quer dizer 400.000 leituras únicas. O que quer dizer é que se um manuscrito disser “sou inocente do sangue desse homem”, e outros dez disserem “sou inocente desse sangue justo”, então contam isto como onze “variantes”. Levando isto em conta, este número assustador de 400.000 se torna quase sem sentido.

Finalmente, as variantes em todos esses 25.000 manuscritos nāo aparecem por toda parte do texto; ao invés disso, elas tendem a se agrupar repetidamente ao redor dos mesmos poucos lugares do texto, o que quer dizer que o número de lugares do Novo Testamento realmente possivelmente questionáveis é surpreendentemente pequeno.

O ponto é que quando refletimos sobre isto para além das frases de efeito, nāo temos aqui um quadro em que há uma montanha de cópias com tantas variantes que não se consegue achar começo, meio e fim. Nem perto disso. Pelo contrário, temos um quadro de história de transmissão notavelmente estável para a vasta maioria do Novo Testamento, e alguns lugares isolados nos quais alguma dúvida genuína a respeito do texto original fez surgir um número relativamente grande de variações.

Resumindo, os monges copistas fizeram um trabalho esplendidamente bom.

Exercício de Transmissão Bíblica

Mas há uma coisa muito mais criticamente importante, ao analisarmos os lugares onde nos deparamos com variantes no Novo Testamento. É precisamente a existência de variantes que nos permite juntar as peças para descobrir aquilo que o documento original provavelmente dizia. Deixe-me demonstrar o que quero dizer.

O processo como um todo é muito parecido com a resolução de um enigma lógico. Repousa no fato de que quando há variantes, podemos normalmente identificar não somente que um escriba introduziu uma variação, mas também o por quê. Há todos os tipos de razões pelas quais os escribas introduziram variantes. Algumas vezes, foi puramente acidental. Por exemplo, 1etras similares podem ter sido substituídas por outras; uma palavra pode ter sido substituída por outra que soa parecido; palavras podem ter sido puladas; palavras ou letras podem ter sido dobradas; até mesmo seções inteiras podem ter sido puladas quando uma mesma palavra era usada algumas linhas mais abaixo.

Em outras instâncias, as mudanças introduzidas foram deliberadas. Um escriba poderia decidir que uma palavra ou nome estava escrito errado, e agiu para “corrigir”; ele poderia mudar algo em uma passagem para que concordasse com outra, ou mesmo “consertar” uma palavra ou duas para aclarar “problemas” que ele percebeu; ou ele poderia até adicionar algo para “aclarar” o que o leitor deveria tirar de lá.

É aqui que começa a diversão, porque uma vez que identificamos o porquê de um escriba ter feito certa mudança ao copiar, dá para ter uma boa ideia do que o original dizia antes de ele mudá-lo. Aqui vai um exemplo simples: imagine que tudo que você tem é um fragmento de uma cópia de um manuscrito perdido que diz: “Quem não tem chão caça com gato…”. Não é difícil de ver o que o que aconteceu quando o original foi copiado, não é? Se pudermos dar ao autor original o benefício da dúvida de que ele não escreveu a frase sem sentido “Quem não tem chão”, então poderemos, de forma bem confiante, dizer que o escriba copista simplesmente errou a palavra “chão”, e que o original dizia “Quem não tem cão, caça com gato”.

Aqui vai um exemplo um pouco mais complicado. Digamos que você tem dois fragmentos, ambos cópias de um original há muito tempo perdido.

Uma das cópias (que chamaremos de Fragmento A) diz:

Agora estamos engajados numa grande guerra civil. Viemos para dedicar uma porção deste campo como um lugar de descanso final para aqueles que, aqui, deram suas vidas para que que a nação possa viver.

A outra cópia (Fragmento B) diz:

Agora estamos engajados numa grande guerra civil, testando se esta nação, ou qualquer nação assim concebida e dedicada, poderá resistir. Nos encontramos num grande campo de batalha desta guerra. Viemos para dedicar uma porção deste campo, como um lugar de descanso final para aqueles que, aqui, deram suas vidas para que a nação da qual falamos possa viver.

Então, vá em frente e gaste um minuto ou dois para descobrir as variações que ocorrem aqui. Há duas delas. Então, continue a ler.

Vamos começar com a primeira variação, a frase omitida a respeito do encontro num grande campo de batalha da guerra. Há alguma razão boa para se pensar que um copista adicionaria todas essas palavras em um original que não as incluía? Na verdade, não; pelo menos, não consigo pensar em nenhuma. Então, se não houve adição ao texto, há algo que poderia explicar por quê ele as omitiria? Sim. Viu como a palavra “guerra” aparece duas vezes no Fragmento B? Na verdade, estas duas ocorrências funcionam como colchetes para as palavras que foram omitidas no Fragmento A. Se o termo “guerra” estava lá duas vezes no original (especialmente se ambos estivessem, digamos, no fim ou no começo de uma linha), então isso proporcionaria um lugar natural e fácil para que o olho do copista “pulasse” acidentalmente de uma linha à outra, e explicaria porque ele, inadvertidamente, omitiria as palavras entre elas. Devido a isso, podemos, de forma bem confiante, dizer que a leitura mais longa, no Fragmento B, provavelmente melhor reflete o original.

E o que dizer a respeito da segunda variação? Há alguma boa razão pela qual um copista emendaria um original que dissesse “para que a nação da qual falamos possa viver” se tornasse “para que que a nação possa viver”? Provavelmente não. Afinal, a frase “para que que a nação” é esquisita [N.T. “para que” é “that that” no original em inglês]. Portanto, é mais provável que o copista agisse para “corrigir” o duplo “that” para algo menos irritante ao ouvido e ao olho. Por esta razão, deveríamos provavelmente concluir que a leitura mais difícil e menos gramática no Fragmento A reflete o original.

Considerando tudo isso, podemos chegar a boas conclusões de que o Fragmento B provavelmente reflete o original na primeira variação (por causa da probabilidade de que o olho do copista pulou linhas usando a palavra “guerra”), e que o Fragmento A reflete o original na segunda variação (porque um copista não “corrigiria” o original para dizer “that that”). Portanto, deveríamos reconstruir o original mais ou menos assim:

Agora estamos engajados numa grande guerra civil, testando se esta nação, ou qualquer nação assim concebida e dedicada, poderá resistir. Nos encontramos num grande campo de batalha desta guerra. Viemos dedicar uma porção daquele campo, como um lugar de descanso final para aqueles que, aqui, deram suas vidas para que a nação possa viver.

Deu para ver? Apenas raciocinando sobre o porquê de os copistas fazerem certas mudanças, somos capazes de chegar a uma conclusão confiante a respeito do que o documento original na verdade dizia, mesmo que nossa versão final não esteja totalmente refletida em ambos os fragmentos que temos. Legal, hein?

Este é exatamente o tipo de trabalho que por séculos os estudiosos tem feito, sobre os fragmentos e manuscritos disponíveis do Novo Testamento. Os desafios que eles enfrentam, é claro, são bem mais complicados do que estes exemplos simples, mas dá para compreender a ideia. Ao comparar as cópias antigas que temos, e pensando cuidadosamente a respeito do porquê de certas mudanças ou erros possam ter sido cometidos pelos copistas, os estudiosos chegam a conclusões altamente confiantes a respeito do que os documentos originais diziam. Não é só uma questão de adivinhação ou mágica, muito menos de “achismo” ou simplesmente “fazer dar certo”, mas sim de um cuidadoso raciocínio dedutivo.

Clara e Totalmente Falsa

Antes de concluir, quero analisar mais um ponto ou dois. Primeiro, é útil notar que a vasta maioria das variantes textuais com as quais nos deparamos são totalmente desinteressantes e não dramáticas. Elas têm a ver com pronomes no plural versus pronomes no singular, ordem invertida das palavras, modo subjuntivo versus indicativo, aoristo versus perfeito, e assim sucessivamente. A grande maioria não inclui nada que afete como definitivamente compreendemos o significado da Bíblia.

Segundo, os estudiosos cristãos tem sido extremamente cuidadosos em documentar—em livros que podemos comprar, se estivermos dispostos a gastar o dinheiro—as variantes mais significativas bem como uma análise de cada uma, como a que fizemos aqui. Claro que se pode discordar de qualquer uma das conclusões às quais os estudiosos chegaram; os cristãos se divertem debatendo a respeito deste tipo de coisa o tempo todo. Mas, novamente, a questāo é que não há conspiração para enganar as pessoas. Onde existem variantes a serem estudadas, os cristãos reconhecem abertamente este fato, precisamente porque cremos que estas variante—e as razões por trás do porquê delas existirem—podem nos ajudar a determinar, com um grau de probabilidade decisivamente alto, aquilo que os documentos originais do Novo Testamento realmente diziam.

Deu para ver? A acusação de que não podemos saber o que os originais diziam é clara e totalmente falsa. A lacuna entre os originais e as primeiras cópias que temos—considerando o que deve ser considerado—não é tão grande assim. E muito longe de diminuir nossa habilidade de identificar aquilo que os originais diziam, o vasto número de cópias existentes, na verdade nos permite raciocinar dedutivamente, com um elevado grau de confiança histórica, aquilo que João, Lucas, Paulo e outros escritores de fato escreveram.

Nota do editor: esse é um excerto adaptado do livro de Greg Gilbert intitulado “Why Trust the Bible” (Crossway, 2015), disponível em língua portuguesa sob o título “Por Que Confiar na Bíblia?“, publicado pela Editora Fiel. Foi publicado originalmente pelo 9Marks: https://www.9marks.org/article/debunking-stupid-statements-about-the-bible/

Traduzido por João Pedro Cavani.

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