Não demorou até chegar à caixinha de perguntas do meu Instagram a questão sobre a tal idolatria da família. “O que você pensa disso?” — alguém levanta a questão. E considerando a relevância do tema, vale a pena pensar sobre o assunto. Será bom começar pelo contexto imediato, e depois expandir para o contexto amplo e as orientações bíblicas.
O Contexto Imediato
A discussão sobre a idolatria da família surge no contexto de uma formação que será vendida por uma equipe de pessoas que servem em seus ministérios locais e têm relevância na internet. Pessoalmente, tenho bom relacionamento com os três, e falo isso porque tudo o que eu descrever aqui, de positivo ou de negativo, vem de um coração sem bajulação ou resistência pessoal. Quero focalizar muito mais em “o que está sendo dito” do que em “quem está dizendo”, embora saibamos que essa relação existe e é importante.
Por que descrever esse cenário primeiro? Porque o contexto da discussão é moldado pela linguagem do marketing. Nos termos de uma autoridade contemporânea em marketing digital, Ícaro de Carvalho, marketing é “transformar segundos em minutos”. Um dos aspectos fundamentais do marketing é a comunicação ajustada para captar a atenção e assim chamar o observador para entrar em uma sequência de interações — um funil — que permita que ele avance nos estágios de consciência até a compra do produto.
Por causa desse propósito, a linguagem publicitária tenderá a usar frases de impacto e distorções a fim de captar a atenção. Promessas grandes, críticas incisivas, palavreado forte, dentre outros recursos são utilizados para ganhar o observador.
O fato de estarmos discutindo isso agora mesmo significa que esse objetivo foi atingido. Em parte, fomos captados pela discussão, e agora a reverberamos, amplificando o “buzz” em torno do tema – “idolatria familiar” -, mas, além dele, da aula que funcionará como o lançamento do curso.
Obviamente, isso levanta questões éticas. Kaiky Fernandez, em seu livro Click sem bait, chama a nossa atenção para uma ética cristã do marketing, e aponta para a diferença entre persuasão e manipulação:
Persuasão 151 é a ação de levar alguém — ou nós mesmos — a crer em algo ou aceitá-lo. É convencimento, a arte de promover uma mudança de ideia ou atitude, mostrando a necessidade ou a conveniência de alguma coisa. Persuadir é aconselhar, apontar e indicar com êxito. Ao divulgar este livro, por exemplo, persuadimos as pessoas a comprá-lo. Queremos mostrar a importância deste conteúdo e sua relevância, mas a decisão final sempre é do público. Isso é muito diferente de manipular. A manipulação, 152 por outro lado, é uma influência ilegítima, exercida conforme nossos próprios interesses. É quando, em uma certa situação, controlamos alguém em algum nível. E o mais importante: o fazemos falseando ou adulterando a realidade, enganando e mentindo. Por exemplo, se divulgássemos este mesmo livro dizendo que tem quinhentas páginas, endossos dos maiores autores do mundo e as respostas definitivas para qualquer problema envolvendo marketing e fé cristã. Ao fazermos isso para alcançar mais vendas, ainda que com a melhor intenção possível, mentiríamos! Manipulação não é justificável.
Fernandez, Kaiky. Click sem bait (pp. 109-110). Thomas Nelson Brasil. Edição do Kindle.
É preciso deixar claro dois aspectos: o primeiro deles é que eu não acredito, pessoalmente, que os autores da campanha adotem uma filosofia do tipo “vale tudo para vender”. Não acho que sejam motivados por questões financeiras, e não estou afirmando que o barulho levantado pelo tema da idolatria familiar seja apenas uma estratégia para ganharem dinheiro.
O segundo aspecto é que eu também não acredito que necessariamente haja má intenção na forma de comunicar. Alguém pode acreditar que está persuadindo enquanto está manipulando. Alguém pode errar de boa-fé. Então o uso do estilo de comunicação que tem gerado algum impacto não necessariamente vem de corações mal-intencionados.
Deve-se ainda acrescentar que os protagonistas não são os produtores últimos daquilo que publicam. Como de costume em lançamentos, junto a eles há copywriters — redatores publicitários — escrevendo e ajustando textos para que produzam o impacto desejado e assim venham a convergir para o objetivo central — captar a atenção e encaminhar o observador nos próximos passos do funil de vendas.
Esse destaque inicial deve nos ajudar a ler o texto publicitário em seu lugar. A discussão pode – e deve – ser levantada sobre os limites e possibilidades do marketing, mas precisamos entender que frases de impacto normalmente estarão presentes em contextos assim. Ao mesmo tempo, os autores são responsáveis por aquilo que tornam público.
As dificuldades na interpretação
Há outras questões que podem contribuir para o ruído na comunicação. Uma delas é a percepção da diferença nas tradições. Alguém pode olhar para uma parte dos produtores, que se posiciona em uma tradição carismática, e simplesmente desconsiderar o que afirma, ou lê-la sem uma boa dose de graciosidade que deveriam ser as lentes que carregamos sempre conosco.
Outra, importante de ser mencionada, é que o outra parte dos produtores construiu a sua persona na internet em torno de polêmicas. Provavelmente ela não concordará comigo, mas entendo que utilizou o método – intencionalmente ou não – de se envolver em polêmicas para ganhar relevância. Talvez, em suas motivações pessoais, tivesse apenas o desejo de servir à igreja, ou de lidar com questões difíceis que outros evitavam tratar. Mas o impacto público disso se tornou inevitável: desde os vídeos antigos do seu canal no youtube, as questões eram tratadas em tons polêmicos — arminianismo e calvinismo, cessacionismo e continuísmo, teologia de missão integral e outra abordagem de temas sociais e bíblicos. Ele usa, notadamente, linguagem dura, por vezes hiperbólica, em sua comunicação nas redes sociais, a exemplo do que fez, chamando pastores de assassinos na pandemia, por não fecharem suas igrejas, ou adotarem máscaras, ou algo do tipo. É importante notar que esse post específico foi removido por ele, por entender que havia atingido gente querida. Em outra ocasião, criticando pessoas que não compraram o seu lado nas discussões quanto a Douglas Wilson, cunhou a expressão “eles odeiam mulheres”.
Exemplos assim demonstram que esse é o estilo de comunicação adotado. Junto a esse estilo, Ele tem criticado nomes como John MacArthur e Douglas Wilson, e também foi bastante incisivo em suas críticas ao governo Bolsonaro. O somatório desses elementos o tornou persona non grata em alguns círculos. Por causa disso, aquilo que vem dessa parte é recebido e lido com indisposição e má-vontade, interpretado no pior sentido possível.
Nossas paixões nos afetam ao falarmos com e ouvirmos uns aos outros. Mas, em nome da verdade e da justiça que honram ao nosso Deus, precisamos ir além do nosso coração confuso.
Um Resumo das Afirmações
Uma vez que tenhamos compreendido os elementos que podem dificultar a comunicação, precisamos considerar o que está sendo dito.
Parte do problema é que nossas respostas são a cortes ou fragmentos de comunicação. Não conhecemos o contexto e nem queremos conhecer. A partir daí, vaticinamos nossas conclusões como palavra final sobre aquilo que não conhecemos adequadamente e nem entendemos bem.
Decidi fazer diferente. Examinei 18 publicações no Instagram dos 3 autores que têm trabalhado o tema da idolatria familiar. Isso me permite observar o quadro mais amplo e perceber as ênfases que têm sido dadas, ainda que a linguagem seja aquela já mencionada acima.
Em grande medida, pude perceber um esforço de identificar problemas em perspectivas diferentes sobre a família. Uma autora critica, por exemplo, a visão de que só se deve ter tantos filhos quanto couber no seu carro https://www.instagram.com/p/C6RQx6Tu7li/ ; critica a idolatria da liberdade, que tem desviado mães do seu verdadeiro papel https://www.instagram.com/p/C6Rw5U3OGyA/ — perspectivas, notadamente, progressistas.
Um autor tem demonstrado, a partir de histórias com seus filhos, como é possível fortalecer os laços familiares e providenciar um senso de segurança. E o outro autor afirma, contra o progressismo, que o princípio bíblico é para que tenhamos filhos.
A autora ainda traz outras idolatrias para a discussão, falando de mulheres que transformaram a família em sua razão de viver, ou em mães que passaram a colocar o seu desempenho como sua fonte de identidade e segurança.
No entanto, o alvo geral de suas críticas é o chamado conservadorismo. A menção ao conservadorismo, explícita ou implicitamente, está presente em pelo menos 9 das 18 publicações.
Uma das legendas traz a seguinte afirmação: “Contra o movimento onde tudo é permitido, se levantou o conservadorismo que parece santo e digno de aceitação, mas serve apenas como uma cortina de fumaça para encobrir a idolatria.”
Outra traz o seguinte: “⚠ Alerta de Polêmica: A família conservadora não é um modelo bíblico”.
Em resumo, o trio tem afirmado que o progressismo é um desvio do padrão de Deus para a família; mas, junto ao progressismo, o conservadorismo é outro desvio desse padrão, que tem se tornado uma idolatria e precisa ser confrontado com o evangelho.
Eles estão errados?
A Idolatria Existe
Nós podemos receber positivamente o alerta destes autores. De fato, todas as bênçãos de Deus podem ser transformadas em ídolos.
Um ídolo é tudo aquilo em que eu busco fundamentar os 4S: significado, sentido, segurança e satisfação. Mesmo bênçãos de Deus, quando são colocadas nesse lugar, transformam-se em algo que eclipsa o Deus por trás dessas bênçãos.
E Deus não divide a sua glória.
É verdade que podemos idolatrar a família como um ideal abstrato; é verdade que podemos idolatrar um cônjuge ou um filho; é verdade que podemos idolatrar um sistema de educação familiar como a redenção dos filhos; é verdade que podemos idolatrar o desempenho.
Qualquer cristão genuíno deve observar esses alertas e avaliar sua própria vida e coração, para considerar se tais idolatrias não se fazem presentes.
Qualquer um que tenha preocupações pastorais deve ouvir esses alertas e perceber as formas de levar isso aos seus irmãos para que Cristo somente seja a nossa fonte de significado, sentido, segurança e satisfação.
Isso significa que eles estão plenamente corretos?
O Senso de Proporções e as Caricaturas
Embora possamos agradecer a Deus por esses insights e recebê-los de bom grado, creio que a ênfase da campanha — só posso falar por ela, e não pela formação que virá na sequência — é equivocada.
Os autores notam algo de verdadeiro, por conhecerem a realidade de comunidades católicas que, por viverem uma religião de obras, colocam a performance como fonte de méritos para a salvação, e a vida familiar entra nesse cenário. Talvez parte de sua preocupação venha dessa visão.
Também é verdade que há evangélicos influenciados pelos católicos romanos, mimetizando seus comportamentos e desejos. Influenciadores romanistas como Italo Marsili, Samia Marsili, Ícaro de Carvalho, etc., têm sido formativos para muitos evangélicos, sob o direcionamento anterior de Olavo de Carvalho.
Não é possível negar essa realidade.
Mas, para usar uma expressão do próprio Olavo de Carvalho, é necessário considerar o “senso de proporções”. A falácia da falsa equivalência diz respeito a argumentos, mas também pode ser aplicada a grupos representativos.
A pergunta fundamental é: qual é a proporção de contágio de cosmovisões estranhas ao evangelho na percepção sobre família das igrejas?
Dificilmente teremos uma resposta exata. Mas, tendo servido como pastor ordenado em quatro igrejas e uma congregação desde 2010, em duas regiões diferentes do Brasil (Nordeste e Sudeste), ouso dizer que o chão da igreja está muito mais afetado pelo progressismo do que pelo conservadorismo.
Mesmo nas igrejas em que o conservadorismo político era evidente, as gerações mais jovens eram notadamente marcadas pelo progressismo em sua maneira de perceber casamento, filhos, e temas associados.
Não me entenda mal: os idólatras conservadores existem — e todos estamos sujeitos a isso. Mas o conteúdo das publicações sugere uma equivalência não apenas moral como de volume de famílias, ao que eu reputo como simplesmente falso.
Faça o teste por si mesmo: gaste algum tempo conversando com os adolescentes da sua igreja e de alguma outra igreja próxima. O mais provável é que você encontrará homens omissos, efeminados, garotas influenciadas pelo feminismo, preocupações primeiras com formação acadêmica e carreira, adiamento do período do casamento e o desejo de poucos filhos.
A coisa se torna pior com as caricaturas utilizadas. Em um dos vídeos, um dos autores imita um pastor hipotético, dizendo a sua ovelha: “Cale a boca! Você vai ter que ter muitos filhos a despeito dos seus traumas”. Talvez a postura de algum pastor possa soar dessa forma, mas confesso desconhecer algum pastor que tenha colocado a coisa nesses termos para as suas ovelhas.
Outro autor, em um de seus posts, afirma que “Existe um movimento de homens e mulheres se utilizando da imagem de suas próprias famílias como um exemplo a ser seguido por todos, e o fardo que eles têm colocado sobre os ombros de mulheres que não tem muitos filhos, e sobre homens que não ganham mais de 20 mil por mês, é absurdo.”
É importante perguntar aqui: que movimento é esse? Que homens são esses? Que fardo é esse? E como a cifra de R$20.000,00 foi definida?
As afirmações genéricas possuem um efeito retórico, mas se estamos buscando lidar com a verdade na comunicação, é necessário demonstrar a veracidade do seu ponto de maneira cuidadosa, sob pena de quebrar o nono mandamento.
Um homem que publica foto brincando com seus muitos filhos está impondo sua experiência como a regra para todos? Por qual processo essa conclusão foi deduzida?
E qual é a responsabilidade de quem consome tais conteúdos? Estão sendo forçados a acreditar que precisam ter uma família igual à que veem nas redes?
Contra as abstrações, posso citar famílias reais que eu pastoreio, que decidiram não deixar que o dinheiro tivesse a palavra final sobre a quantidade de filhos. E posso testificar, pessoalmente, que as fotos e videos de minha família nas redes não são uma imposição para aqueles que acompanham meus stories.
A abstração aliada ao recurso retórico cria espantalhos que são fáceis de serem vencidos, mas que podem representar quase nada da realidade concreta, e somente produzirem o efeito de gerar um senso distorcido da realidade para os confusos e irritação naqueles que são representados sem a devida generosidade.
“Descreva o outro com a gentileza que você gostaria de ser interpretado” — pode ser uma boa regra.
Por considerar o problema do senso de proporções e o uso de espantalhos, eu penso que a campanha cai em um erro estratégico. Os pecados com os quais eles devem lidar precisam ser denunciados, mas a forma fica prejudicada.
Há outro componente importante nessa discussão.
A Cultura do Ressentimento
A cultura contemporânea é repleta de ressentimento. O fundamento disso é o nosso coração pecador. Junto a isso, agora temos meios de comparação nunca experimentados antes.
Eu estou numa casa de Barretos, com meus dois filhos e pensando na filha adotiva mais velha, que mora longe, e nos três filhos que foram levados pelo Senhor para morar com Ele antes de nascerem. Essa é a nossa realidade familiar. Mas com um clique eu contemplo casais que vivem viajando pelo mundo inteiro, enquanto eu e minha esposa mal saímos do Brasil duas vezes. Vejo famílias com bebês lindos, enquanto eu e minha esposa tivemos que carregar nossa filha de 25 semanas morta em nossos braços. Vejo casas grandes e luxuosas, enquanto eu moro em uma casa pastoral — não é nossa, é da igreja.
E tudo isso, na era do ressentimento, pode funcionar como “gatilho” — na expressão contemporânea. Gatilho de quê? Alguém diria que é gatilho de ansiedade, depressão, ou algo do tipo. Na descrição já mencionada acima, poder-se-ia dizer que tais pessoas, ao postarem fotos e vídeos sobre suas viagens, suas casas e suas famílias, estão impondo um peso sobre os outros.
Mas eles estão apenas compartilhando suas alegrias.
É o coração descontente que olha para a vida do outro, compara com a sua, ressente-se de Deus e transforma tudo isso em um peso sobre a sua vida.
Se alguém coloca como teste de ortodoxia o número de filhos, a educação domiciliar, a esposa somente no lar, dentre outros elementos, certamente tal pessoa deve ser questionada sobre tais exigências biblicamente.
Mas transformar o compartilhamento das bênçãos de Deus em uma manifestação impositiva e cruel é ver com os olhos maus aquilo que Deus disse que era bom.
Tito 1:15 (ARA) Todas as coisas são puras para os puros; todavia, para os impuros e descrentes, nada é puro. Porque tanto a mente como a consciência deles estão corrompidas.
A cultura do ressentimento colocará a culpa de suas mazelas no outro, em vez de assumir o pecado em seu coração. Não sou eu que preciso aprender o contentamento com a minha situação diante de Deus; é o outro que precisa parar de ter filhos e de postar suas fotos.
Qual é o resultado?
Os Efeitos Disso
Por natureza, a formação será mais completa do que os textos publicitários. Tendo a pensar que o curso permitirá qualificações que os autores não estão fazendo nesse exato momento, talvez pela natureza da mídia que usam.
Mas nem todos chegarão à formação. Alguns ficarão apenas com tais fragmentos, e os utilizarão para reforçar seus ressentimentos pessoais.
Usarão as caricaturas para descrever famílias piedosas como “conservadores idólatras”, e promoverão a ideia de uma falsa equivalência entre pessoas afetadas pelo progressismo e pelo conservadorismo.
Não é sem razão que webcrentes progressistas já têm usado tais publicações como armas em seu arsenal contra aqueles que defendem os princípios bíblicos sobre a família.
É claro que, em última análise, a responsabilidade é deles, e não dos 3 autores. Mas estes precisam perceber que sua campanha terá consequências, e precisam estar dispostos a lidar com isso.
Eu desejo que o curso seja abençoador para muitas pessoas perdidas na idolatria. Mas temo que o custo disso seja alto na vida de tantas outras pessoas.