Nunca foi tão fácil assumir o papel de aspirante a profeta, de nos posicionarmos na longa sequência de homens e mulheres ao longo dos séculos chamados a “proclamar a verdade aos poderosos”. As redes sociais ampliaram a capacidade de nos pronunciarmos sobre diversas questões—expor os cantos ocultos de injustiça, protestar contra os abusos dos poderosos sobre os mais fracos, e apontar irregularidades de instituições e das pessoas que as lideram.
Muito dessa sensibilidade profética consiste em algo bom. Como resultado de pessoas que expressaram críticas ou preocupações, temos observado instituições e indivíduos buscando melhorar, casos de podridão serem expostos e expurgados. A possibilidade de maior número de pessoas se pronunciarem, pode gerar maior conscientização e responsabilização na igreja.
Profetas de Coração Endurecido
No entanto, há sempre o perigo de termos uma voz profética sem termos um coração de profeta.
Quando isso ocorre, soamos cada vez menos como Jeremias, que anunciou o mandamento do Senhor em meio a lágrimas (“Voltai, ó filhos rebeldes”) juntamente com a promessa de misericórdia (“eu curarei as vossas rebeliões”, Jr 3.22). Em vez disso, parecemos mais com Jonas—satisfeitos em protestar contra a cultura e com a futura destruição de nossos inimigos, e de cara feia com a ideia de que Deus realmente pudesse redimi-los (Jonas 4.1-3). “Jonas deleitava-se em pregar a ira”, comentou Tim Keller. “Ele o fazia com alegria, não com lágrimas, pois mal podia esperar o martelo de Deus descer sobre os ninivitas”.
Coração de Profeta
O impulso profético é um impulso importante. Andy Crouch aponta um dos propósitos centrais do profeta do Antigo Testamento—revelar a verdadeira natureza do poder. A idolatria e a injustiça frequentemente crescem despercebidamente no coração das pessoas, esgueirando-se traiçoeiramente sob vestes de retidão e justiça. Quando mais estamos dominados pela idolatria e injustiça, temos maior dificuldade de enxergar estes pecados dentro de nós. Nossas boas intenções nos cegam, e nossas autoanálises hipócritas trazem à tona alguma forma de justificação.
No entanto, a palavra profética pode atravessar essa névoa de idolatria, ao proclamar a verdade de Deus de uma maneira que revira e expõe as farsas e mentiras. O profeta é uma dádiva para a comunidade de fé, servindo como fonte de edificação baseada na verdade. No entanto, o apóstolo Paulo nos lembra que não somos nada se falarmos a verdade (até mesmo duras verdades) sem amor (1Co 13.2).
Profeta sem Lágrimas
Ter voz profética sem ter um coração de profeta nos leva a embasar nossa justiça na postura que assumimos, independente de sentirmos ou não compaixão e amor pelas pessoas que mais necessitam da verdade. Crouch relembra o exemplo de Daniel, que transmitiu a mensagem de julgamento vinda de Deus quando interpretou o sonho de Nabucodonosor. Daniel não se deleitou na ideia de que aquele rei ímpio iria receber sua punição, mas expressou esperança de que o sonho não se realizasse (Dn 4).
À medida em que nossos corações se tornam cínicos e frios, deixamos de desejar o bem daqueles que merecem crítica; nos deleitamos em sua destruição. Somos mais como Jonas do que como Jeremias, reclamando da compaixão incessante de Deus para com os indignos. Lamentar que o julgamento de Deus se avizinha nos parece algo débil e insensato. Dessa maneira, nosso tom de voz online revela um coração inclinado a se deleitar com os “Ais” que lampejam de nossos perfis, ao mesmo tempo em que desdenhamos da benção que Jesus concede àqueles que choram pela injustiça e pelo pecado no mundo (Mt 5.4).
“A verdade é que existem lágrimas cristãs,” escreveu John Stott, ”e poucos de nós as derramam.” É o que vemos em Jesus, cujas palavras duras dirigida aos líderes em Jerusalém o levaram a chorar pela cidade impenitente (Lc 19.41-44). É o que vemos no salmista, cujos clamores por justiça se misturam a torrentes de água em seus olhos porque os homens deixaram de guardar a lei de Deus (Sl 119.136). É o que vemos no apóstolo Paulo, que permaneceu firme contra os falsos ensinamentos, ao mesmo tempo em que pranteava os muitos inimigos da cruz de Cristo (Fp 3.18-19).
O Impulso Profético como um Jogo
Na era atual, com algoritmos e plataformas que estimulam indignação e atenção, o impulso profético pode nos levar a uma posição de crítica perpétua e ininterrupta. Deixamos de identificar a diferença entre falhas normais de bons líderes no geral, que utilizam corretamente sua autoridade, dos pecados e injustiças notórios que requerem uma resposta firme e inequívoca. Todas as situações recebem o mesmo nível de indignação.
Quando isso acontece, trilhamos a estrada do cinismo, sem confiar que o poder pode ser usado de maneira apropriada por alguém (com exceção, é claro, daqueles com o dom da profecia!). Não somos mais a favor das pessoas ou instituições que desejamos que se tornem responsáveis. Em vez disso, tudo se trata de um jogo onde “montamos” uns nos outros virtualmente, ficamos empolgados quando conseguimos incitar a discordância com aqueles a quem criticamos ou levantar um ataque contra qualquer coisa que percebamos como “problemáticas”. Ganhamos o jogo quando acumulamos pontos contra o outro lado. Demonstramos desprezo e chamamos isso de honestidade.
O Coração de Jesus em um Mundo de Aspirantes a Profetas
Nos dias de hoje, necessitamos ser tardios em assumir o papel de profeta, mesmo que seja só para evitar a tentação da grandiosidade e das “recompensas” traiçoeiras que advêm ao profeta que possui um bom desempenho nos palcos das redes sociais. Ser provocativo não faz de você um profeta. Profetas de verdade fazem mais do que condenar e confrontar; eles também trazem conforto e esperança (Ed 5.1).
Quando proclamamos a verdade aos poderosos e quando denunciamos injustiça na igreja e no mundo, necessitamos pedir a amigos confiáveis que falem verdades ao nosso próprio coração, para garantir que não adotemos voz de profeta sem ter um coração de profeta.
Traduzido por Caroline Ferraz