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Por Que a China Pode Ter Tido o Maior Movimento de Reavivamento Calvinista Desconhecido da História Recente?

Uma análise detalhada de como o cristianismo chinês reviveu e prosperou sob o comunismo.

A perseguição de cristãos clandestinos em igrejas domésticas é um fato bem conhecido entre grupos de defesa cristã e governos ocidentais. Vários casos de destaque surgiram nos últimos anos, quando a China, sob a presidência Xi Jinping, se desviou muito da liberdade religiosa.

Demolições de igrejas e destruições de cruzes começaram em partes fortemente cristãs da província de Zhejiang em 2014, lideradas por Xia Baolong, o ideólogo leal ao partido comunista que agora lidera o escritório de Hong Kong e Macau em Pequim. A prisão em 2019 de Wang Yi, o intelectual que se tornou pastor de uma mega-igreja, atraiu a condenação do Departamento de Estado dos EUA. Várias mega-igrejas urbanas de alto nível, que redefiniram o cristianismo e o empurraram de volta para a esfera pública, foram fechadas antes que Xi Jinping saísse disparando.

Muito foi dito e escrito sobre esses homens e mulheres corajosos que agora têm negado seu direito e lugar de adoração. Entretanto, muito pouco foi escrito sobre a teologia por trás do movimento de avivamento que catapultou essas igrejas para a proeminência, mudando um movimento de igrejas domésticas subterrâneas fortemente rurais e carismáticas anteriormente nos anos 1980 e 1990, para um cristianismo ambiciosamente jovem, urbano e agressivamente público que se tornou um grande ameaça ao governo comunista chinês.

Essa teologia é o “Novo Calvinismo” no estilo chinês.

O Reavivamento Ocidental

O calvinismo no Ocidente recentemente experimentou um certo ressurgimento por meio do jovem e inquieto Movimento Reformado. Este é um movimento predominantemente urbano e agressivamente evangelístico que busca mudar a cultura e retornar ao Cristianismo conservador, um “Cristianismo mais encorpado, mais substancial e bíblico”.

O movimento produziu alguns dos pensadores cristãos mais influentes da atualidade, como John Piper, Tim Keller e Albert Mohler. Sua rede principal é a The Gospel Coalition (Coalizão pelo Evangelho), uma das redes calvinistas mais ativas do mundo. Tudo começou no início dos anos 2000 e desde então cresceu para se tornar um movimento internacional, além de produzir um “ressurgimento reformado” na América.

Esse movimento se destaca pelo quão ousado e sem remorso ele é depois de décadas de violento ataque da guerra cultural, que deixou a Igreja no Ocidente desdentada e fraca. Ele advoga uma defesa vigorosa do cristianismo, algo que está em falta no ocidente desde os anos 60.

O Reavivamento Asiático

Enquanto os novos calvinistas no Ocidente começavam seu ressurgimento, uma transformação massiva também estava em andamento na China quando as igrejas domésticas começaram a abraçar o calvinismo em uma onda intelectual de avivamento que foi completamente orgânica e liderada por habitantes locais, independente da influência ocidental. A única pessoa a quem agradecer por isso é o incrivelmente influente evangelista chinês-indonésio Stephen Tong(唐崇荣).

Tong, também conhecido como o “Billy Graham do Oriente”, nasceu em Fujian, China, em 1940 e mudou-se para a Indonésia aos nove anos de idade após o comunismo assumir o controle. Ele foi convertido aos 12 anos de idade em uma reunião de avivamento realizada pelo famoso evangelista chinês Andrew Gih, durante a viagem evangelística de Gih ao sudeste da Ásia e, assim como o homem que o converteu, Tong tem um dom exemplar de pregação.

Ele foi um dos primeiros cristãos chineses étnicos na era moderna a abraçar a fortemente conservadora teologia reformada calvinista; ele fundou a Indonesian Reformed Evangelical Church (Igreja Evangélica Reformada da Indonésia) em 1989, com um forte foco na comunidade Indonésia Chinesa. Ele desafia fortemente o liberalismo e as teologias carismática e do evangelho da prosperidade em seus sermões cativantes.

Stephen Tong ensinou, assim como os novos calvinistas na América, que o cristianismo deve desafiar e se engajar com a cultura. Tong também cunhou a frase “归正宗” como a tradução para “Fé Reformada” e apresentou ao público chinês muitos escritos calvinistas. Ele combinou os ensinamentos calvinistas com o ativismo evangélico moderno. Seus sermões em perfeito mandarim eram diretos, fáceis de entender e transformadores.

No entanto, este pastor de grande sucesso – cuja congregação é agora uma mega igreja com 8.000 assentos na deslumbrante Messiah Cathedral (Catedral do Messias), completa-se com um seminário e uma sala para concertos em Jacarta (uma das poucas mega-igrejas na Ásia que não é pentecostal e não ensina o evangelho da prosperidade) – não encontrou seu maior sucesso e influência na Indonésia, mas em sua terra natal, a China.

Tong há muito tempo queria pregar na China, tendo feito viagens a Taiwan e Hong Kong muitas vezes, mas é claro que a China não permitiria que um pregador chinês estrangeiro, conservador e fortemente anticomunista causasse drama no continente. Contudo, algo mágico aconteceu – a pirataria e a Internet no início dos anos 2000.

As Bíblias do Mercado Negro

Os sermões de Tong foram contrabandeados em massa para a China no tempo em que ela não tinha o controle abrangente sobre as informações que tem hoje. Naquela época, nas partes costeiras da China, antenas parabólicas estavam nos telhados de todas as casas, transmitindo os sinais de televisão de Hong Kong.

Tudo, desde música pop à pornografia e sermões religiosos, que eram fortemente desencorajados no continente, inundou o mercado negro e seduziu muito os jovens, por meio da pirataria de fitas cassetes, DVDs e fitas de áudio contrabandeadas com qualidade de gravação rudimentar. Mesmo Bíblias não autorizadas foram contrabandeadas às centenas de milhares.

No início do anos 2000, a China também não tinha o Great Internet Firewall (apelido para um grupo de leis, regulamentos e tecnologia usada pelo governo chinês com a finalidade de regular o uso da internet no país) que tem hoje. Ainda em 2009, os usuários chineses da Internet podiam acessar o Facebook, Google e Twitter sem a necessidade de VPN’s (Redes Privadas Virtuais). As informações ainda eram restritas, mas as comportas ainda estavam se abrindo, e com elas vieram os sermões e escritos do pastor Tong.

Religioso e Político

Tong foi um revolucionário no sentido de que, e ainda é, um dos únicos proponentes proeminentes do Calvinismo no Cristianismo Chinês. Essa teologia convinha particularmente bem aos cristãos perseguidos chineses, porque o calvinismo é uma teologia de resistência.

Calvino foi um filósofo político, e os intelectuais chineses que foram esmagados após o abjeto fracasso em 1989 de tornar a China uma democracia, viam a contribuição direta do calvinismo para as ideias da democracia moderna, constitucionalismo e sociedade civil, como particularmente atraentes no contexto chinês. O calvinismo inspirou muitos movimentos ativistas políticos em todo o mundo no passado, do abolicionismo ao sufrágio feminino; e a China não seria exceção.

Uma das maiores contribuições de Tong ao cristianismo chinês é que seus sermões criaram organicamente o movimento de igrejas domésticas urbanas, nutrindo os líderes do movimento. Um dos intelectuais desiludidos com o futuro da China na época era Wang Yi, que se tornou cristão e pastor em parte, porque descobriu os sermões de Stephen Tong. Muitos cristãos chineses descobriram o Evangelho ouvindo ou assistindo ao material pirateado de Stephen Tong.

Para muitos pastores de igrejas domésticas, o material de Tong era às vezes o único treinamento teológico que eles tinham em um país onde todos os seminários teológicos eram controlados pelo movimento patriótico sancionado pelo Estado “Three Self” (Três-Seres). Tong os inspirou a criar suas próprias igrejas, muitas vezes em cidades, e construir uma rota distintamente diferente das igrejas tradicionais subterrâneas na China.

Do Rural ao Urbano

Antes do surgimento desse movimento de reavivamento, as igrejas domésticas chinesas eram predominantemente rurais e preservaram a fé nas condições mais adversas. Os crentes rurais enfrentaram as mais duras perseguições e condições de adoração em lugares como cavernas e florestas, e mantiveram um perfil extremamente baixo. Alguém sempre estaria de guarda e alertando todos os fiéis sobre qualquer perigo.

Após o degelo da era Mao, movimentos de igrejas domésticas de natureza carismática promoveram grandes avivamentos em províncias chinesas profundamente rurais como Henan e Anhui, mas, após a massiva mudança de urbanização que se seguiu a explosão econômica da China, a maioria dessas igrejas rurais não conseguiu uma posição nas cidades.

Os jovens rurais que emigraram em massa para as cidades logo perderam o contato com sua fé. As áreas urbanas da China eram um deserto árido para o Cristianismo e logo sugaram as igrejas rurais. Muitas igrejas rurais chinesas hoje são compostas em sua maioria por idosos, mulheres e crianças. Por sua vez, isso criou uma crise oculta por trás da fachada do avivamento – muitas igrejas estão perdendo seus membros mais jovens.

As igrejas rurais também careciam de capacidade organizacional e muitas vezes eram desencaminhadas por “movimentos heréticos” que divergiam significativamente do Evangelho original. Assim, estava claro no ano 2000, que o cristianismo chinês precisava de uma nova direção.

Intelectuais e pastores que descobriram e estudaram os sermões, escritos e palestras de Tong começaram a transformar o movimento da igreja doméstica na China. Eles eram muito mais organizados e agressivos no proselitismo, com muitas igrejas caseiras em áreas urbanas pregando para estudantes universitários, trabalhadores urbanos de colarinho branco e até mesmo convertendo membros do Partido Comunista, algo impensável ​​nas áreas rurais. Eles também eram muito mais vigorosos no pensamento intelectual cristão e adoração pública, desafiando diretamente as regras estabelecidas pelo regime.

As igrejas também estabeleceram um sistema de governo da igreja presbiteriana, formaram alianças em todo o país, criaram pelo menos duzentas a trezentas escolas cristãs operando de forma independente usando livros baseados no sistema de ensino doméstico cristão americano e pelo menos quatro seminários próprios, treinando muitos pastores tão necessários para plantar igrejas em toda a China. Eles começaram a construir uma sociedade inteira independente do controle do governo.

Eles se tornaram uma das únicas ONG’s que operam de forma independente e suficiente. Eles também acolheram dissidentes e marginalizados, como mães solteiras e prostitutas. Essas igrejas administravam ministérios pró-vida, publicavam seus sermões online abertamente e até mesmo se comunicavam com igrejas conservadoras estrangeiras, um grande tabu, uma vez que toda a premissa do cristianismo controlado pelo Estado na China era o princípio de “Três Seres” (Three Self), como uma auto-independência da influência estrangeira.

Essas igrejas chinesas calvinistas substituíram as igrejas rurais que eram fortes na fé, mas careciam de estrutura organizacional e teologia consistente. Isso deixou o governo comunista nervoso – muito mais nervoso do que as igrejas rurais jamais poderiam ter deixado. Essas igrejas domésticas urbanas estavam por toda parte, desde da Early Rain Covenant Church em Chengdu às Zion e Shouwang Churches em Pequim. Algumas igrejas tinham milhares de membros, a maioria deles jovens.

Existe até diversidade no movimento calvinista chinês. Algumas são quase idênticas à abordagem de Stephen Tong, combinando neo-calvinismo com evangelicalismo, enquanto outras, como as Wenzhou Reformed Churches lideradas por Zhou Dawei são muito mais semelhantes ao fundamentalismo das igrejas reformadas ortodoxas da Holanda, banindo a televisão e praticando a salmodia exclusiva (cantando apenas os hinos encontrados no Livro dos Salmos, uma prática estrangeira na China).

Repressão Comunista

Todo esse crescimento orgânico, obviamente, é um anátema para o governo comunista. Depois que Xi Jinping chegou ao poder, a tolerância de curta duração para essas igrejas cada vez mais confiantes evaporou rapidamente. Uma por uma, famosas igrejas urbanas na China foram suprimidas. A Church Zion, liderada pelo pastor coreano-chinês Ezra Jin, foi banida em 2018. O pastor Wang Yi foi condenado a nove anos de prisão por subversão ao poder estatal.

Igrejas em todos os lugares, de Xiamen a Guangzhou, foram fechadas, dispersas e os pastores presos. Desta vez, os comunistas se concentraram especialmente nas igrejas urbanas que têm liderança organizacional adequada, em vez das repressões usuais nas igrejas rurais. Eles sabem que essas congregações de influência calvinista são muito mais perigosas para seu governo.

Em 2009, o The Guardian previu que a estimativa mais conservadora para os convertidos alcançados pelo reavivamento calvinista era de pelo menos 500.000. Isso foi antes mesmo do apogeu desse reavivamento, que foi no início de 2010, antes de Xi Jinping chegar ao poder. As estimativas do The Gospel Coalition vão de dois a três milhões de cristãos reformados na China em 2017. Para colocar isso em perspectiva, a maior denominação reformada conservadora nos Estados Unidos, a Presbyterian Church in America (PCA), tem apenas cerca de 380.000 membros.

Isso significa que a China pode muito bem ter possuído o maior número de cristãos reformados conservadores do mundo em algum momento no ano de 2010. E, embora Xi Jinping possa pensar que os cortou pela raiz, vou terminar este artigo com a seguinte história.

O pastor Huang Xiaoning da Bible Reformed Church em Guangzhou, retornou à sua igreja após sua detenção em janeiro de 2019. Ele encontrou as portas de sua igreja trancadas e avisos públicos colados nas portas declarando que sua igreja estava oficialmente fechada. Então, o que o pastor Huang fez? Ele serrou a fechadura e rasgou os editais, enquanto era gravado em vídeo por policiais.

Se Xi Jinping acha que pode erradicar esse povo e sua religião, ele deveria pensar novamente.

 

Fonte: https://mercatornet.com/why-china-might-have-had-the-largest-unknown-modern-calvinist-revival-movement-in-recent-history/67455/?fbclid=IwAR1PyScej3kdI1prxeJ4zEmfDR_4Evs7x1xNETMuhaiiuWXX1huzcXpoJwY

Tradução: Alan Kleber Rocha

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