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“Obrigada, Deus, Pelas Pulgas”. Como Encontrar Coragem em O Refúgio Secreto

Quando olho para a lombada gasta do livro O Refúgio Secreto na minha prateleira, sempre penso primeiro nas pulgas e no terror que pessoas eram forçados a dormir em leitos de palha, infestados de pulgas em um campo de concentração. E, então, eu me lembro, espantada e com culpabilidade profunda, da oração sussurrada por Betsie ten Boom e recordada pela sua irmã Corrie: “Obrigada, Deus, pelas pulgas”.

A primeira vez que li O Refúgio Secreto, eu tinha uns 20 e poucos anos e, após longos anos de leituras atribuídas, estava redescobrindo a alegria de ler por prazer. Atraída por biografias de cristãos fiéis, eu as devorava rapidamente. Buscava naqueles livros mundos e experiências diferentes dos meus para extrair sabedoria deles. Lí avidamente livros como Peace Child [A criança da Paz], Evidence Not Seen [Evidência Não Vista], A Chance to Die [Uma Chance para Morrer], Shadow of the Almighty [À Sombra do Todo-poderoso], Surpreendido pela Alegria, Living Sacrifice [Sacrifício Vivo] e Mulheres Fiéis e seu Deus Maravilhoso. Mas retornei diversas vezes para a Corrie ten Boom e a cidade de Beje, na Holanda, a sua cela na prisão e o beliche coberto de pulgas que ela dividia com a sua irmã em Ravensbruck, nas profundidades da fria Alemanha Nazista, cheia de ódio.

A Bondade de Deus Diante do Pior da Humanidade

As memórias da Corrie começam de forma bem alegre, recordando seu lar, trabalho e a vida em família na Holanda. Entretanto, uma nuvem paira sobre a narrativa pois, como quem conhece história sabe, a guerra está para chegar. Quando a Alemanha Nazista invadiu e ocupou a Holanda, Corrie começou a perceber pequenas mudanças desnorteantes: transeuntes portando estrelas de Davi, vitrines de lojas de judeus apedrejadas, palavras repugnantes pintadas nas paredes das sinagogas. Eventualmente, Corrie e a sua família percebem que seus vizinhos judeus estavam desaparecendo — não se sabia para onde — então começaram a esconder judeus em sua casa e a trabalhar com uma rede clandestina para ajudá-los a escapar para um lugar seguro.

Corrie, seu pai (Casper) e sua irmã (Betsie) acabaram sendo traídos por outro holandês e foram presos e encarcerados. As duas mulheres foram transferidas eventualmente para Ravensbruck, um campo de concentração alemão. Enquanto estavam no campo, dormindo com as pulgas, Betsie, que tinha a saúde frágil, compartilhou com Corrie uma visão do pós-guerra: ela tinha que contar o que havia visto — não só a brutalidade mas também como o amor e o perdão encontrados em Cristo superam o mal e o ódio do mundo. Betsie implora a Corrie para relatar como Deus estava ali no meio delas durante seu sofrimento mais profundo.

A Betsie não sobreviveu para ver a realidade da sua visão, mas Corrie sobreviveu. Ela foi solta do campo de concentração com base no que, mais tarde descobriu ter sido um erro administrativo. Esse erro administrativo, divinamente planejado, a impulsionou em uma jornada pelo mundo todo para proclamar o que havia visto e vivenciado: uma história da fidelidade de Deus durante um dos maiores sofrimentos que a humanidade poderia inventar.

Fé Honesta Posta em Prática

Sendo uma mulher jovem, recebi a história da Corrie com gratidão. Necessitava de sua honestidade ao tentar conciliar a fé com o sofrimento. Quando Betsie agradece a Deus pelas pulgas, fiquei quase indignada. Fiquei mais do lado da Corrie do que com a Betsie quando a Corrie disse: “Betsie, nem mesmo Deus pode me tornar grata por uma pulga.” Quando Betsie expressava compaixão pelos guardas nazistas, orando sinceramente por almas endurecidas pelo ódio, fiquei do lado da Corrie em oposiçāo, incerta se o perdão poderia mesmo acontecer. Mas, através de algumas circunstâncias que revelaram a bondade de Deus, Deus levou a Corrie a ser grata pelas pulgas. E quando, após a guerra, um ex-guarda do seu dormitório estendeu-lhe a mão pedindo perdão, Corrie decidiu oferecê-lo mesmo sem senti-lo.

À medida que amadureci, retornei a estes exemplos quando enfrentava “pulgas” e situações nas quais eu sabia que obedecer a Deus significava perdoar aqueles que me machucaram, embora em situações muito menos graves do que Corrie e milhões de outros viveram em campos de concentração durante a II Guerra Mundial. Pelo fato de que a fé da Corrie foi acompanhada de obediência, foi como se ela chegasse ao meu lado como parte da “grande nuvem de testemunhas” mencionadas em Hebreus 11 e dissesse: “Siga-me, como eu sigo a Cristo.” Ela me mostrou que a luz de Deus sempre pode ser encontrada, não importa a escuridão.

Retorno frequentemente às páginas de O Refúgio Secreto, à cada vez em meio a circunstâncias diferentes, e continuo considerando-o tão relevante para os dias de hoje quanto era há quase 50 anos. Na verdade, este é um livro para o nosso tempo, porque ele nos recorda que a verdade do evangelho se estende para muito além da nossa geração (e das brigas no Twitter de hoje). Ela adentra as profundidades da nossa escuridão e necessidade humanas , e penetra fundo na maneira como vivemos junto ao nosso próximo.

Necessitamos de exemplos como o de Corrie e Betsie de viver, de fato, aquilo que dizemos que cremos, lembrando-nos que a fé sem obras é morta. Parece-me que o que mais necessitamos agora é um amor corajoso — buscando fazer pelo nosso próximo aquilo que Jesus fez por nós: iniciar, perdoar e sacrificar. Corrie nos advertiu sobre o que nos impede de vivenciar aquilo que ela vivenciou:

“Eu vi que a indiferença rígida aos outros era a doença mais fatal do campo de concentração. Me senti sendo contaminada: como alguém poderia sobreviver se continuasse se importando?… Seria melhor estreitar a mente para minha própria necessidade, não ver, não pensar.”

Nós também temos que lutar contra a apatia, escolhendo ver o nosso próximo, pensando e olhando além de nós mesmos.

O Poder da Palavra

Necessitamos também ouvir de uma mulher que foi privada de liberdade, comida e da família, que o que a mantinha viva era uma Bíblia contrabandeada e que ela milagrosamente manteve escondida durante o seu suplício. Corrie descreveu ter “devorado” os Evangelhos inteiros em uma sentada e ter “vivido” nas verdades da Palavra como se elas tivessem sido escritas exatamente para a situação dela. Em um dormitório empesteado de pulgas, tão imundo que nenhum guarda entrava, ela e Betsie abriam a Biblia e liam em voz alta, esperando enquanto diversas vozes traduziam as palavras vivificantes para o alemão, o polonês e o francês:

“Como menores abandonados ao redor de uma fogueira, nós nos reuníamos em volta dela, abrindo nossos corações para o seu calor e luz. Quanto mais escura a noite ao nosso redor ficava, mais brilhante e verdadeira, e mais bela, brilhava a palavra de Deus… Eu olhava ao redor enquanto a Betsie lia, observando aquela luz pular de um rosto para o outro. Mais que vencedores… Não era um desejo, era um fato. Eu sabia, eu o vivenciei, a cada minuto — pobres, odiadas e famintas. Somos mais que vencedores. Não “seremos”. Nós somos!”

Se as Escrituras sustentaram estas mulheres no lugar mais sombrio de todos, certamente será o nosso sustento, enquanto esperamos que nossa própria escuridão passe. No nosso mundo repleto de ideias, que nós desejemos e “devoremos” as palavras vivificantes, tal como Corrie e Betsie o fizeram.

Eu, com certeza, continuarei retornando a O Refúgio Secreto com frequência, aprendendo com Corrie e Betsie e sendo lembrada do porque posso ser grata a Deus em qualquer situação, mesmo que envolva pulgas.

Traduzido por Mariana Ciocca Alves Passos.

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