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A pandemia gerada pela COVID-19 tem mexido com os nossos relacionamentos porque, em um mundo quebrado como o nosso, relacionamentos sempre sofreram com os efeitos da Queda. O Coronavírus é apenas um lembrete de que o pecado trouxe barreiras sociais resultando em desajustes em nossas sociabilizações (inveja, ira, irresponsabilidades), idolatrias de relacionamentos (namoro, trabalho, família) e falta de satisfação nessas relações (descontentamento). Pecado é muito maior do que Coronavírus e ele tem nos afetado socialmente desde a Queda.

Por isso, a nossa redenção tem um elemento social. Cristo quebrou as barreiras sociais objetivamente (Ef 2.14-16), tornou possível que fôssemos feitos um só povo, uma só nação, um só corpo sob o mesmo Cabeça. Ainda que a presença física de Cristo esteja temporariamente suspensa, estamos unidos a Ele pelo Espírito, e é tal Espírito que promove a nossa comunhão com Deus (2 Co 13.13) e com o próximo (Fp 2.1). Por isso a igreja, desde a patrística, tem sido chamada de “comunhão dos santos” (Credo Apostólico) e durante a Reforma celebrou esse termo para a igreja (João Calvino). Mas como fica a nossa comunhão em tempos de quarentena, de isolamento social?

Essa pergunta não é só teórica ou retórica, mas eminentemente prática e requer ponderação. Teólogos do passado articularam a necessidade de contato físico e presencial para o exercício da comunhão. A Confissão de Fé de Westminster diz que os crentes unidos a Cristo “estão obrigados ao cumprimento dos deveres públicos e particulares que contribuem para o seu mútuo proveito, tanto no homem interior como no exterior.” (CFW 26.1). O parágrafo seguinte diz que os cristãos estão “obrigados a manter uma santa sociedade e comunhão no culto de Deus e na observância de outros serviços espirituais que tendam à sua mútua edificação, bem como a socorrer uns aos outros em coisas materiais, segundo as suas respectivas necessidades e meios” (CFW 26.2). A Confissão de Fé está nos ensinando acerca de edificação mútua no ajuntamento público (Hb 10.24-25), mas também nos lembrando que comunhão estende além da localidade de culto, abrangendo a comunhão de bens com os necessitados (At 2.42, 44-45). Estamos parcialmente impedidos de prestar serviços espirituais e de socorrer as pessoas materialmente. Portanto, estamos experimentando obstáculos à experiência de comunhão.

Não podemos dizer que os meios virtuais suprem totalmente essa falta. Por sermos seres físicos, há coisas que não podemos fazer à distância. Não podemos experimentar todas as coisas do culto quando estamos sozinhos: não expressamos nossa alegria em louvores a uma só voz, não batizamos virtualmente e não partilhamos do pão da ceia. Sobre esse último assunto, Scott Swain disse muito acertadamente que não podemos partilhar da ceia virtualmente porque o sinal do sacramento não reside somente nos “elementos” (pão e vinho) mas inclusive na refeição compartilhada (1 Co 10.17; 11.33), exatamente o que não acontece quando estamos separados; por isso, ele argumenta que estamos em tempo de lamento, no qual não participamos da ceia, embora ansiamos o dia de tê-la de volta. [1]

Pelas mesmas razões semelhantes às da ceia, também não podemos ser reunidos em culto público. Isto é, podemos prestar vários cultos separadamente (individual ou doméstico), mas não cultuamos virtualmente, exatamente porque culto público é sinônimo de ajuntamento. Isto é, testemunhamos como corpo reunido que somos adoradores do Cristo ressurreto. Pregamos essa realidade contra os desigrejados, defensores da irrelevância de participar de uma igreja local. Além de culto, também somos impedidos de prestar certos serviços materiais aos irmãos. Portanto, é inegável que estejamos experimentando uma privação na experiência dessa comunhão. Não podemos fugir dessa realidade de que não saboreamos a doçura da comunhão dos santos da mesma forma como fazíamos antes da pandemia.

Meu lamento, contudo, não visa expressar uma visão pueril e pessimista de comunhão. Quando chamamos aquele momento após o culto de “café da comunhão”, aí sim estamos dizendo que comunhão é tão banal quanto tomarmos café juntos. Costumamos igualar comunhão a encontros, a reuniões, e assim perdemos o peso do que significa termos comunhão com Deus e com os irmãos, algo que extrapola o encontro físico. No íntimo, sabemos que a comunhão com Deus e com o próximo não acabou porque o Coronavírus nos deixou em casa longe uns dos outros; existe algo muito rico que, mesmo não sendo experimentado plenamente, é real em nossas vidas. Portanto, precisamos encontrar uma forma mais profunda de expressar essa verdade bíblica.

É aqui que podemos aprender com o início da Primeira Epístola de João. O apóstolo João tivera um contato físico com Jesus e estava testificando da realidade de seu ministério àqueles que não haviam visto ou apalpado a Jesus (cf. Jo 20.30-31). Na sua primeira epístola João queria ensiná-los que, mesmo sem o contato físico com Jesus, os leitores também tinham comunhão com o Pai e com o Filho (1 Jo 1.1-3), além de comunhão com os irmãos (1 Jo 1.7). João está preocupado em certificar crentes de sua fé (1 Jo 5.13); ele quer mostrar aos seus leitores como podemos saber que temos comunhão com Deus e com os santos. Já que o contexto de falso ensino estava assolando a fé cristã, João promove os chamados “testes” para que os fiéis fossem confirmados na fé: o teste doutrinário (1 Jo 2.22-23; 4.2-3), o teste social (1 Jo 2.7-11; 3.11-18) e o teste moral (1.5-10; 2.3-6). É significativo que esses testes expressem que nossa comunhão com Deus está calcada na verdade (aspecto doutrinário), no usufruto de atributos divinos (aspecto moral) e na realidade de estarmos unidos a Cristo (aspecto social). Sendo assim, 1 João é uma carta para nos ajudar a compreender a riqueza da nossa comunhão com Deus e com os santos.

Há muito que o Novo Testamento nos ensina sobre “comunhão” ( koinonia em grego) que não podemos compartilhar nesta postagem. Em geral, o conceito de comunhão está ligado a ter algo em comum com alguém. Como o koinonos é o ‘companheiro’ (Lc 5.10; 2 Co 8.23; Fl 17), exercer ‘comunhão’ está relacionado a partilhar bens (At 2.42, 44; Rm 15.26; 2 Co 8.4; 9.13), cooperar em serviço (Fp 1.5; Hb 13.16), e participar no mesmo ofício (Gl 2.9). No entanto, Peter Toon afirma que 1 João traz o uso teológico mais claro de toda a Escritura, no qual o sentido básico de ‘comunhão’ é de um partilhar real e prático da vida eterna com o Pai e com o Filho.[2] Somos inseridos na vida de Deus e isso nos permite compartilhar de suas bençãos. É Deus quem produz essa comunhão com Cristo pelo Espírito, assim como a unidade da igreja é produzida pelo Espírito (Ef 4.3). Isto é, esforçamo-nos por preservar essa unidade intacta, livre de empecilhos pecaminosos, assim como esforçamo-nos por manter a comunhão sem barreiras. Isso nós devemos fazer! Mas não conseguimos criar ou aniquilar a comunhão com Deus e com a igreja.

Perceba que essa comunhão com Deus não pode ser rompida nem mesmo pelo nosso pecado (1 Jo 1.7-2.2). O pecado pode tirar nossa alegria da salvação (Sl 51.12), mas não nos tira a salvação. Pecados maculam a doce experiência de deleite na presença de Deus, mas graças a Deus eles não podem nos desconectar do Senhor. Nos Salmos, o salmista tinha a experiência de que o Senhor lhe havia abandonado; mas era apenas a sua experiência que estava prejudicada, seu saborear das graças divinas, não seu status com Deus. O sangue de Jesus é a base enquanto a confissão de pecados é o meio para restaurar essa experiência de deleite com Deus e com o próximo (1 Jo 1.7, 9).

A lógica de João procede dizendo que se nossa conduta está pautada pela luz, então não só temos comunhão com Deus (1 Jo 1.6), mas temos comunhão com os irmãos também (1 Jo 1.7). Essa comunhão é muito mais significativa do que mera sociabilização. Assim como comunhão com Deus expressa uma intimidade singular, a ponto de sermos chamados corpo de Cristo, essa ligação íntima se estende à relação horizontal com os irmãos. Os sacramentos do batismo e da ceia apontam para essa comunhão uns com os outros. Essa união sinalizada por ambos os sacramentos é mais forte do que relacionamentos terrenos. O casamento, por exemplo, é belo e sublime, mas a morte nos desliga dessa união. A comunhão com o corpo de Cristo, todavia, não é rompida nem na morte. Até com os cristãos que já estão mortos nós temos uma ligação imperdível!

No entanto, precisamos aprender a diferenciar a comunhão com Deus da experiência deleitosa de comungar de suas bençãos. Se a morte nos impede de experimentar comunhão com os nossos irmãos em Cristo que já partiram, também é verdadeiro que há outras barreiras que prejudicam nossa experiência de comunhão (pecados pessoais, males sociais, guerras, pandemias, etc.). Isto é, a comunhão tanto vertical quanto horizontal não deixa de existir, mas a experiência da mesma é afetada. Por isso, precisamos encontrar nas Escrituras paralelos que nos permitam enxergar o que significa ter essa experiência da comunhão prejudicada.

Vejo ao menos três realidades bíblicas que nos ajudam a entender a experiência ofuscada de comunhão. Primeiramente, o exílio no Antigo Testamento suscitou a experiência do culto individual acontecendo (Dn 6.10), enquanto a realidade do culto público era anelada (Sl 137.1-6); afinal, ainda que as sinagogas tivessem surgido para instrução, não havia condições de realizar práticas próprias do templo (sacrifícios). Em segundo lugar, as cartas de Paulo exemplificam a possibilidade de realizar instrução à distância sem, contudo, experimentar todas as realidades próprias da vida eclesiástica. Há certos dons e serviços que são compartilhados presencialmente (Rm 1.9-15; 1 Ts 2.1-2) e, por isso, Paulo orientou um ato de disciplina que só a comunidade local poderia realizar (1 Co 5.3-5), além de recomendar liderança local aos coríntios (1 Co 16.15-18), um papel que ele não conseguia exercer plenamente à distância. Em terceiro lugar, até a história da redenção nos ensina que durante o tempo do pecado nós estamos usufruindo de parte da benção do Emanuel (Deus conosco), mas ainda aguardamos a plenitude que é estar na presença dEle! Isto significa que experimentamos o deleite de ter Cristo conosco de forma real, mas ainda haveremos de experimentar essa presença plenamente. Caminhamos como forasteiros e peregrinos aguardando a chegada na terra prometida.

Tendo em vista a realidade inquebrável da comunhão e a experiência ofuscada da mesma, julgo necessário que pensemos em algumas lições práticas à luz do que estamos vivendo em meio a essa pandemia:

1. Um fundamento encorajadorEstamos inseparavelmente unidos a Deus e aos seus filhos. Alegremo-nos nisso! Não há nada que pode nos tirar dessa participação. Estamos inseparavelmente unidos a Cristo e ao seu corpo e não há efeitos do pecado que consigam quebrar essa comunhão. Temos comunhão garantida com Deus e com os objetos do seu amor, para sempre e sempre!

2. Um lamento realista: Estamos momentaneamente impedidos de experimentar todos os deleites dessa comunhão. Essa é a experiência do cristão, em maior ou menor medida, durante toda a sua vida aquém da volta de Cristo. Não só é normal ficarmos entristecidos com a situação de não podermos reunir a igreja; é esperado que lamentemos esse empecilho. Se nossa alegria é estar com os nossos irmãos, podemos e devemos expressar lamento nessa hora.

3. Uma sabedoria necessária: Deus nos deu meios de experimentarmos essa comunhão. Não vamos aceitar substitutos. Não podemos achar que “culto virtual” é igual a culto presencial, assim como ver a Cristo com os olhos da fé agora não é semelhante a vê-lo em glória no porvir. Antes da pandemia, quem assistia o culto pela internet não estava cultuando juntamente com os irmãos da igreja; cultuava sozinho, mas não experimentava culto público. Por isso, não há substituto de culto público. Também não devemos celebrar ceia virtualmente – como se fôssemos neopentecostais ungindo os elementos pela televisão –, porque inclusive Cristo entendeu que ele ficaria privado de celebrar o seu sacrifício até a reunião com o seu povo naquele dia (Mc 14.25). Usemos todos os meios virtuais que nos são cabíveis agora para ensinar as Escrituras e encorajar uns aos outros à perseverança. Todavia, tais meios não devem servir como substitutos do culto público, mas apenas para despertar a ardente expectativa de que em breve nós seremos reunidos novamente.

 


[2] TOON, Peter, “Fellowship”, in ELWELL, Baker Theological Dictionary of the Bible, p. 256.

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