Por que vocês estão discutindo sobre o fato de não terem pão? Vocês ainda não percebem nem compreendem? Têm o coração endurecido?
Marcos 8:17
“A onda evangélica varre o Brasil”1, foi o título do famoso jornal francês Le Monde numa reportagem sobre o crescimento impressionante de igrejas cristãs protestantes em nosso país. Ao contrário do chamado Norte Global, a religião está curiosamente crescendo do lado de cá do globo. Apesar da desaceleração do crescimento entre os evangélicos em relação ao crescimento expressivo entre os Censos de 2000 a 2010, o movimento evangélico registrou um número expressivo de 26,9% dos brasileiros, ou seja, 47,4 milhões se declararam evangélicos em 2022, ante 21,7% em 20102. Além do crescimento numérico, o movimento evangélico ainda aumentou sua participação na vida pública transcendendo a fronteira da Igreja para ocupar espaços na mídia, cultura e política. Não bastasse isso, uma pesquisa do centro de estudos da Universidade de São Paulo-USP constatou que em 1990 havia 17.033 templos evangélicos. Agora o Brasil passa a contar com 109.560 espaços de culto. Um aumento de 543%, uma média de 17 novos templos por dia3. Não bastasse isso, a conversão de inúmeras celebridades a fé cristã evangélica impressiona de como o poder cultural da religião continua a operar em solo brasileiro. Ser evangélico no Brasil, além de ser pop, também se tornou moda! Desde os poderosos testemunhos de vida de Rodolfo Abrantes, a recente e inesperada conversão da ex-funkeira Tati Zaqui, a prova disso é o número cada vez maior de artistas que estão entrando no mercado cristão e lançando músicas gospel e de adoração na última década. Entre eles, estão nomes como Ana Castela, Simone, da antiga dupla sertaneja Simone e Simaria, Wesley Safadão, Luan Santana e a dupla Marcos & Belutti4.
Tal crescimento é impressionante! O chamado movimento evangélico, não é apenas uma realidade, mas também um fenômeno, estudado por diversos setores da nossa sociedade. O movimento evangélico é uma realidade inegável. Só não vê quem não quer! Porém, enxergar o que está acontecendo é mais difícil do que se imagina. Pessoas com problemas de visão também enxergam, porém de uma maneira distorcida. Pode ser duro e até frustrante para alguns, mas é hora de fazer uma cuidadosa distinção entre a religião evangélica e o evangelho de Jesus Cristo.
Fermento no Coração que Afeta os Olhos
O alerta de Jesus sobre o “fermento” dos fariseus e de Herodes, aliada com a cura do cego em duas etapas, teve a intenção de enfatizar o perigo de estarmos olhando para Ele de maneira errada. O coração dos discípulos estava parcialmente fechado à profundidade dos ensinamentos e da pessoa de Jesus. Quem garante que o nosso não esteja? É verdade que Jesus não repreendeu seus discípulos por causa de hipocrisia (estar falseando uma religião que se sabe não ser verdadeira), mas alertou sobre o perigo de terem uma fé distorcida, incompleta e desfocada do real significado de segui-lo. Tenho consciência que são coisas diferentes, mas devemos confessar que igualmente perigosas.
Os discípulos não conseguiam ver, mas haviam visões concorrentes ao redor deles sobre Deus e os seus planos. Tais visões concorrentes eram sorrateiras e tão perniciosas que poderiam adoecer os seus olhos espirituais. O que é pior: ter uma religião distorcida ou ter aversão à religião? “Entre dois males, não escolha nenhum!” (C.H. Spurgeon). O fermento dos fariseus e dos herodianos, os dois extremos da oposição a Jesus, representava o legalismo e o mundanismo. Por um lado, usar a religião para exigir padrões éticos de decência com o intuito de se envaidecer e julgar os outros como impuros e desprezíveis – coisa que os fariseus faziam -, era tão perverso como falsificar uma imagem de Deus como permissivo e libertino a fim de dar vazão aos desejos mundanos com a consciência livre – como o herodianos faziam. Os discípulos de Jesus sempre estiveram exposto ao perigo de estarem vivendo em meio a tensão de visões pervertidas da religião. Por isso, Cristo adverte seus discípulos.
A imagem do fermento era conhecida deles. Um pouco de fermento tinha o poder de se espalhar pela massa e influenciar na direção da preparação da comida. Ao longo de toda a Bíblia, a figura do fermento é associada ao pecado que também tem o poder de distorcer e corromper nossos corações. Quer o moralista ou o progressista, ambos são bons em manipular a religião da mesma maneira que o fermento faz com a farinha. ”Tanto o legalista quanto o antinomianismo resultam da incapacidade de entender a bondade e a graça do caráter de Deus”5.
Duas formas de enxergar a Deus. Duas formas de praticar a religião. Duas perversões do coração humano que “trocam a glória do Deus incorruptível por imagens semelhantes ao ser humano corruptível” (Rm 1:23). Não, não é tão simples como parece! O problema da perversão da religião é justamente acreditar que ainda é uma religião. É fácil se acostumar com uma distorção de visão pois nos faz acreditar que aquela imagem borrada é tudo o que se tem para ver. O problema da falta de visão espiritual é consequência da falta de adoração correta no coração. Enxergamos mal porque queremos adorar um deus fabricado por nossas ilusões. O problema dos olhos enxergarem mal é o adoecimento da alma. Nossos olhos veem com distorções porque nosso coração fabrica divindades que se amoldem aos nossos caprichos carnais.
“Vocês ainda não percebem nem compreendem? Têm o coração endurecido? Tendo olhos, não veem?” (Mc 8.17-18). Qual o problema disso tudo? Os discípulos eram como quem tem problema de visão. Jesus estava perto deles, mas seus olhos não estavam completamente abertos, sua visão era turva e embaçada. Algo muito semelhante ao problema que Jesus viu naquele tempo continua presente nos seus atuais discípulos.
Os Sintomas da Doença dos Evangélicos
As pessoas ainda hoje estão tão envolvidas com seus próprios interesses e tão insensíveis a correta imagem do que a Bíblia pinta sobre Jesus e seus planos que, ainda que religiosos, estão fermentadas no coração. Igrejas de pastores coaching que fermentaram os ensinos de Jesus a mero aperfeiçoamento pessoal, como se Jesus fosse um mero mestre da inteligência emocional. Não é difícil de perceber, mas milhares de evangélicos no Brasil lotam mega igrejas para serem incentivados por uma positividade de desempenho que diz que somos importantes e merecedores de conquistar e realizar sonhos egocêntricos. Isto é, “uma abordagem que trata o homem, seus desejos materiais e carências emocionais, como o foco da pregação e do ministério pastoral ao oferecer, por meio de textos bíblicos mal utilizados, uma narrativa divina que centraliza o homem ao dizer que ele é capaz em poder e importante em valor”6.
Por outro lado, Igrejas de pastores místicos que fermentaram a imagem de Jesus como um mero curandeiro que tem uma força sobrenatural para livrar as pessoas do mal circunstancial em suas vidas. Recentemente nosso país viu a polêmica ascensão do “pastor mirim” (como ficou conhecido) que arrastava multidões em cultos, conferências e nas redes sociais com supostas manifestações de cura e poder espiritual7.
E ainda, até igrejas de pastores moralmente conservadores que fermentaram a mensagem do evangelho a regulamentação de comportamento socialmente aceitável para tornar a sociedade civil decente para a família. “Quantos em nossas cidades são ex-cristãos e até mesmo opositores veementes do cristianismo porque foram expostos a uma versão falsificada (e até mesmo deturpada) da fé cristã? Não partamos do pressuposto de que nossas igrejas conhecem ou são fiéis ao evangelho”8. O confronto entre a verdadeira identidade e missão de Jesus e as visões rivais estava se aproximando rapidamente para os discípulos daquele tempo. O Cristo veio para salvar o que estava perdido. Deus, por meio da vida perfeita, da morte expiatória e da ressurreição física de Jesus de Nazaré, estava cumprindo as promessas de salvar todo o seu povo da ira divina e o levando-o à paz eterna, com a promessa de restaurar plenamente a ordem criada para sempre – tudo para o louvor da sua glória.
Logo, os discípulos ficariam irritados e com dor nos olhos por contemplar a verdade. Os discípulos em breve entenderam que Jesus era o Messias, mas um Messias sofredor. Em breve os discípulos haveriam de ver que o Messias iria sofrer e isso também traria um alto custo de segui-lo em meio a um mundo hostil. Havia uma cruz para o Cristo sofredor, mas também havia uma cruz para os seus discípulos.
E quanto a nós? E quanto ao movimento evangélico brasileiro? E quanto às nossas igrejas? Nossos lares? Podemos dizer que não há fermento em nossa religião? Podemos ter certeza de que não há doença em nossos olhos? Será que nossa fé está fazendo Jesus “suspirar intensamente” de desgosto? O que, em relação a nós, faria com que Ele dissesse, como um mestre frustrado: “Vocês tendo olhos ainda não veem? Ainda não conseguem compreender?”.
A cura que Jesus ofereceu para seus discípulos foi o remédio do evangelho. Assim também a cura para o problema de visão dos evangélicos brasileiros é o próprio colírio do evangelho. Nosso país não está saturado pelo evangelho, mas sim sofre justamente pela ausência dele. Por mais estranho e contrário das previsões, os evangélicos precisam do evangelho.
1https://noticias.uol.com.br/ultimas-noticias/rfi/2023/12/10/jornal-frances-repercute-crescimento-das-igrejas-evangelicas-no-brasil.htm
2 https://www.bbc.com/portuguese/articles/crk2p5xr0m7o
3https://www.bbc.com/portuguese/articles/o-que-explica-multiplicação-de-templos-evangélicos-no-Brasil
4https://www.christianitytoday.com/ct/2024/may-web-only/gospel-musica-louvor-adoracao-ana-castela-pt.html
5 FERGUSON, Sinclair. Somente Cristo: legalismo e antinomianismo e a certeza do evangelho. São Paulo: Editora Vida Nova, 2019, p. 17.
6 PAMPLONA, Pedro e outros. Você é o ponto fraco de Deus e outras mentiras da teologia do coaching. São Paulo: Editora Mundo Cristão, 2023, p. 44.
7https://oglobo.globo.com/brasil/noticia/2025/05/06/isso-e-uma-farsa-liderancas-evangelicas-como-feliciano-e-malafaia-se-dividem-sobre-pastor-mirim-e-cura-divina.ghtml
8 RAY, Ortlund. O Evangelho: como a igreja reflete a beleza de Cristo. São Paulo: Editora Vida Nova, 2016, p. 19.