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As redes sociais vivem de escândalos. Em grande medida, é o que mantém as pessoas clicando, curtindo, compartilhando, comentando e… providenciando a atenção necessária para que os anúncios sejam veiculados e a monetização aconteça.

A lógica interna das redes é a de hipérboles e exageros, urgência e imediatismo, pressa e prontidão. Cautela, paciência e tons amenos não são bem-vindos… costumam ficar de escanteio, ou, pior: quem assim procede rapidamente é rotulado de “passapanista” ou algo do tipo.

Um escândalo recente

Recentemente, um novo escândalo movimentou as discussões nas redes. Uma jornalista norte-americana noticiou que a igreja do pastor John MacArthur, nos Estados Unidos, protegeu um abusador e oprimiu a vítima, a ponto de envergonhá-la publicamente e excluí-la da comunhão da igreja, por sua decisão de não permanecer casada. O abusador teve a sua índole confirmada na justiça pública, recebendo uma condenação por seus crimes, que envolveram não apenas abuso psicológico, mas também físico e sexual.

A jornalista cita os relatos da vítima e menciona os nomes dos líderes envolvidos no processo de disciplina eclesiástica – outros pastores da Grace Community Church. Ao final do processo, o próprio John MacArthur comunicou publicamente à igreja o pecado da vítima e a sua expulsão.

O caso é de 20 anos atrás – 2002.

Como era de se esperar, o caso gerou comoção nas redes. Prontamente, os partidos se formaram para condenar ou defender John MacArthur. Os defensores destacaram a má reputação da jornalista, que já cometeu outros erros de reportagem e escolheu como foco de trabalho a denúncia de líderes. Também destacaram a coincidência do momento escolhido para soltar uma notícia de 20 anos atrás – o período da Shepherds’ Conference, conferência da igreja, seminário e universidade liderados por John MacArthur. Os acusadores chamaram John MacArthur de “o novo Caio Fábio”, afirmaram que ele “não acredita no que ensina”, definiram-no como “otário” e sugeriram que ele não deva mais ser tratado como ministro do evangelho. Alguns passaram a contar várias histórias de mulheres abusadas em igrejas e outros lembraram das posturas de MacArthur na pandemia e em outros casos. Falaram que estavam aguardando surgir o podcast “the rise and fall of John MacArthur” (a ascensão e queda de John MacArthur), em referência a um podcast recente que contou a tragédia da queda do pastor Mark Driscoll. Alguns sugeriram que o problema é o fundamentalismo desse pastor, e outros colocaram a culpa no complementarismo. A decisão, no entanto, era praticamente unânime: dê-nos a cabeça de John MacArthur.

Junto a isso — era de se esperar —, surgiu a cobrança para que líderes diversos se posicionassem a respeito da questão. “Tem muita gente relativizando”, “tem muita gente comentando nos grupos, mas calada nas redes”, “tem gente que comenta sobre tudo e agora está em silêncio” — foram as descrições em tom de cobrança.

Tudo isso no curto espaço de uns 3 ou 4 dias. As redes não aceitam julgamentos lentos.

Há tantos aspectos a considerar nesse caso, que um post desse jamais conseguiria dar conta do trabalho. Mas algo pode ser dito aqui.

Um relato pessoal

Primeiramente, permita-me algumas considerações pessoais: Conheci John MacArthur no ano em que me tornei reformado. Curiosamente, o exato ano de 2002. Lembro como se fosse hoje de ir para a escola de ônibus – eu cursava o terceiro ano do ensino médio – e, no trajeto, lia “Com vergonha do evangelho”. Sou profundamente grato a Deus por ter usado MacArthur para abrir os meus olhos para temas importantes, e para me encaminhar a conhecer e ler Charles Spurgeon.

Mas, ao longo dos anos, praticamente deixei de ler MacArthur. Ele permaneceu para mim como uma figura respeitável, mas eu não aprecio, em grande medida, o tom mais combativo de muitas declarações. Meus estudos e ênfases também me encaminharam em outras direções.

Desse modo, posso dizer que minhas paixões quanto a John MacArthur não são inflamadas: nem para amá-lo, nem para odiá-lo. Ele é um pastor como todos os outros, com posturas que eu aprecio e que eu rejeito.

Talvez isso me permita olhar para a situação sem buscar apressadamente um veredito. A propósito: eu não tenho um veredito. Não acho que uma matéria – mesmo com seus documentos e decisões judiciais – seja tudo o que podemos considerar. Apenas quero pontuar alguns aspectos breves aqui:

Considerações para discernir o caso

1.  Daquilo que temos acesso, podemos afirmar que a liderança da igreja errou.

Uma vítima foi oprimida e tratada como culpada, enquanto um abusador saiu como justo e piedoso na igreja. A condenação judicial tornou patente que ele era o problema fundamental. Não é possível minimizar algo tão problemático. Deus nos ordena a cuidar dos vulneráveis. São vários os relatos no Antigo e Novo Testamento em que Deus revela odiar a opressão e encaminha a sua igreja para cuidar dos oprimidos. Devemos amar o que Deus ama e odiar o que Deus odeia.

2. É verdade que há idolatria de líderes, e que pode haver pessoas idolatrando John MacArthur.

O nosso coração pecador, aliado à cultura de tratar pastores como celebridades, gera o ambiente perfeito para que líderes cristãos sejam idolatrados. Nesse contexto, aqueles que os adoram podem, por um lado, fechar os olhos para todos os erros e tratar o líder como infalível, ou — no outro extremo — experimentar uma decepção tão grande ao perceber um erro que passam a viver como antagonistas. O coração e o olhar estão fora de lugar.

3. A reação enérgica dos acusadores a John MacArthur esconde algo além desse episódio.

Até onde consigo perceber, o pastor em evidência coleciona desafetos em diferentes aspectos, que se uniram na execração pública:

  • Defensores da psicologia antagonizam MacArthur por causa do aconselhamento bíblico.
  • Junto aos defensores da psicologia, cristãos que defendem o teísmo evolucionário antagonizam John MacArthur porque ele é claramente contrário a essa posição.
  • Gente da ciência e antibolsonaro se ressentiu da postura de MacArthur, chamando-o de negacionista.
  • Carismáticos se ressentem de John MacArthur por causa do “Caos carismático”. Estão juntos nessa corrente.
  • Igualitaristas e complementaridade mais soft aproveitam o momento para criticar o complementarismo de MacArthur.
  • Pessoas ressentidas com pecados e abusos de outros líderes revivem a cena e despejam sua ira no pastor.
  • Muitos webcrentes se ressentem dos reformados em geral, e essa é uma ocasião para confirmar suas suspeitas.

Antagonismos anteriores eram a pólvora que facilmente pegou fogo no momento presente. E os diversos grupos se inflamaram mutuamente, unidos em uma mesma causa.

4. É claro que nem todos os críticos tinham algum ressentimento anterior ou uma agenda particular.

Entre os críticos havia pessoas querendo fazer uma crítica mais honesta.

5. Também entendo que a reação ao pastor veio forte porque suas declarações são fortes.

Parte do antagonismo que John MacArthur possui, vem de afirmações em tom combativo e direto. Embora não seja o ensino bíblico (“vence o mal com o bem”), não é difícil entender que ele receberia respostas assim.

6. As condenações virtuais parecem não entender aspectos básicos da vida pastoral e do governo de uma igreja, que podem ser lembrados aqui:

  • Pastores cometem erros. Pastores tomam decisões erradas mais frequentemente do que gostariam. Esses erros envolvem pregação, aconselhamento, disciplina, relacionamentos, dentre tantas outras áreas da vida da igreja. Colocar o pastor na posição de “tudo ou nada” é anunciar a falência do ministério pastoral.
  • O ministério colegiado existe para o compartilhamento de responsabilidades. Pelo relato da jornalista, outros pastores e líderes trataram o caso do abusador e sua esposa. John MacArthur não esteve diretamente envolvido até o momento final, em que os passos finais de excomunhão foram anunciados. Em igrejas maiores isso parece ser mais frequente: diferentes pastores e líderes formam comissões ou são designados para tratar de casos específicos, e apenas reportam ao conselho ou ao grupo de líderes a situação. Diante dos seus relatórios, o conselho dá prosseguimento aos passos que seguem. Nesse caso, diante dos relatórios dos líderes diretamente envolvidos, a liderança da Grace Church entendeu que o problema era de uma esposa insubmissa e não arrependida, e assim a excomungou. Como já afirmado acima, isso foi um erro. Mas é diferente de afirmar que John MacArthur é um homem perverso que defendeu um pedófilo e oprimiu uma mulher vulnerável, como foi sugerido. Certamente há responsabilidade dele como pastor titular, mas isso é algo diferente de julgar suas motivações e pintá-lo como um homem perverso.
  • Manipuladores enganam pessoas e grupos inteiros. Para muitos nas redes é impossível conceber a ideia de que uma igreja tenha ficado ao lado de um abusador, mas talvez lhes falte um pouco mais de senso de realidade ou experiência de vida. Manipuladores manipulam. Ao que parece, já havia uma pré-disposição de confiança no abusador, que ensinava música em uma das instituições da igreja. Junte a pré-disposição com a manipulação e será mais fácil entender como pastores e conselhos inteiros podem defender a pessoa errada e realizar coisas vergonhosas. É claro que não deveria acontecer; mas acontece. E não acontece apenas na Grace Church. Acontece na minha e na sua igreja. Pastores são enganados por bastante tempo, e muitos tomarão decisões erradas por serem manipulados.

Um senso de realidade poderia nos fazer analisar a situação com menos paixão e mais sobriedade, e avaliar as nossas próprias motivações e exigências, para conferir se são adequadas e justas.

7. Não ouvimos a liderança da Grace Church.

Curiosamente, o mundo tem o padrão de ampla defesa e direito ao contraditório, mas no tribunal cristão das redes sociais você é condenado sem ser ouvido. Pelo contrário: uma acusação adicional foi levantada: John MacArthur não está arrependido — como poderíamos saber? A igreja não se pronunciou, John MacArthur não se pronunciou, e tudo o que temos é uma parte da história.

O juízo sem a disposição de ouvir e entender aponta para a nossa imaturidade.

8. Influenciadores cristãos fizeram o papel vergonhoso de inflamar os jovens a assumir a dinâmica do tribunal das redes, em vez de estimularem o equilíbrio e a sabedoria no modo de considerar e agir.

Eles estabelecem uma regra de juízo que se volta contra toda a igreja, e contra eles.

9. Há um triste senso de justiçamento nesses cancelamentos.

A desconfiança quanto ao poder das autoridades de julgar; a pressa em que a “justiça” seja feita; e a agitação para que o meu braço seja o agente da justiça me movem na direção do cancelamento. Por isso, que não se considere atentamente, que não se respeite processos, que não se aguarde os ambientes devidos de disciplina eclesiástica: nós executaremos justiça agora. Mas o justiçamento das redes jamais produzirá os frutos de arrependimento da disciplina no contexto da igreja local. Apenas funcionará como execração pública.

E quanto a nós?

A pergunta que segue tais considerações é: o que tal episódio pode nos ensinar? Para além do comentário de um caso específico, que lições podemos extrair para aplicação em nossa vida e comunidade? Permita-me sugerir algumas:

Em nível comunitário, é muito importante considerarmos a realidade de pessoas em situação de abuso. Especialmente mulheres e crianças, por sua estrutura mais frágil, devem ser consideradas com a devida atenção e cautela. O contexto do abuso é bastante complexo, com um emaranhado de sentimentos ambíguos, como ira, tristeza e medo. Crianças podem temer falar de seus pais, e esposas podem sofrer caladas por muito tempo. É possível que famílias permaneçam escondidas nesse contexto por anos, mas o trabalho de visitação e aconselhamento, bem como o estímulo ao desenvolvimento de uma comunhão genuína, com verdadeiro compartilhamento de vida, poderá trazer luz aos dilemas familiares.

Faz-se necessário desenvolver um nível de autoconsciência na liderança das igrejas, para percebermos nossos preconceitos e pontos cegos. Onde houver resquícios de machismo, deve haver arrependimento e confissão.

Não podemos perder de vista que os tempos são confusos. O ressentimento se tornou um instrumento de poder, e movimento como o “Me too”, já demonstraram que pessoas mais frágeis podem exagerar a sua condição e mentir para prejudicar alguém mais poderoso. No mundo caído, crianças podem ser sugestionadas a compreender a realidade de forma errada, a mentir, mulheres podem usar o discurso de abuso para punir seus maridos, ovelhas podem mentir sobre seus pastores e líderes. A liderança precisará levar os relatos a sério, mas não colocar o rótulo de “culpado” sem a devida consideração do problema.

Precisaremos considerar a relação entre a disciplina eclesiástica e a legislação vigente. Em alguns casos, a disciplina eclesiástica não será considerada com a devida seriedade, e o abusador permanecerá confortável para continuar cometendo crimes, com a certeza da impunidade. Nossas diretorias e conselhos fazem bem em considerar o estabelecimento de boas práticas e processos que envolvam a justiça pública diante de crimes.

Em nível individual, fazemos bem em não nos tornar juízes nas redes sem a devida consideração do problema. O exercício de sondagem das nossas motivações é saudável, a consideração de nossas limitações – percebendo a distância, a insuficiência de informações, o pouco tempo de análise – precisa moderar o nosso tom e engajamento.

Fazemos bem em lembrar do 9º mandamento e suas implicações: não dar falso testemunho e zelar pela reputação uns dos outros, evitando não apenas a mentira, mas também a fofoca e mesmo a verdade dita com intenção de revanche ou vingança.

Francis Schaeffer nos lembra que a igreja é uma exibição do caráter de Deus para o mundo. Esse caráter, ele descreve, é a conjugação de santidade e amor. Somos chamados a exibir a santidade de Deus, abominando o pecado e julgando-o retamente, ao mesmo tempo em que somos chamados a exibir o amor de Deus, com graça, misericórdia e equilíbrio.

Que Deus nos ajude nessa caminhada.

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