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A Arrogância Disfarçada de Fé Presunçosa em Tempo de Covid-19

Enquanto começo a escrever este texto o Parlamento Português acaba de votar a aprovação do Decreto do Presidente da República que declara o país em Estado de Emergência, com medidas que ainda iremos conhecer gradativamente.

Desde novembro de 1975 que não vemos este cenário, na altura as circunstâncias eram outras, estávamos à beira de uma guerra civil. A guerra que hoje travamos une-nos e não nos coloca uns contra uns outros.

Posso dizer com orgulho nacional que, de forma generalizada, tem sido esta a atitude dos portugueses: unidade e esforço coletivo no combate à propagação deste vírus. A população não precisou esperar as medidas das autoridades, mas antecipou-se de livre iniciativa. O medo de uma repetição da realidade italiana e o exemplo dado por Macau ajudaram a que a prevenção fosse o mote de muitos. Escolas começaram a ser encerradas antes, restaurantes e espaços comerciais começaram a ter as suas portas fechadas, e as famílias começaram a isolar-se voluntariamente, saindo apenas para dar resposta a necessidades essenciais.

As igrejas não foram excepção. Vários pastores e lideranças depararam-se com o risco real da facilitação da propagação do vírus e decidiram, com grande pesar, suspender todas as atividades presenciais.

Se por um lado tenho orgulho nacional na nossa população, por outro não posso dizer o mesmo de alguns colegas pastores nacionais. Infelizmente, como em outros lugares do mundo tem acontecido, nem todas as lideranças concordaram com a suspensão de cultos, mantendo até hoje as suas igrejas abertas.

Partem do pressuposto que fechar portas é sinónimo de se ser dominado pelo medo e pela ansiedade, atitudes que para o cristão são condenáveis. Naturalmente que nenhum cristão genuíno que ama o Senhor e procura viver o que a Bíblia ensina, quer se deixar dominar pelo medo, muito pelo contrário, quer ser um filho que confia no Pai em que circunstância for, na paz ou na guerra, na alegria ou no sofrimento, na abundância ou na escassez. Nesse sentido, um discurso com aparência de piedade e de triunfalismo, com facilidade é subscrito por muitos. Fazem uma polarização completamente descontextualizada entre medo e fé, onde quem encerra as portas da sua igreja está a agir pelo medo e não pela confiança na soberania de Deus.

Alegam também a importância vital da igreja dar resposta ativa e permanente às necessidades da população. Uma vez mais podemos estar diante de aparência de piedade, pois qual é a igreja que seja minimamente séria que não queira ir ao encontro da comunidade onde está inserida? Trazem exemplos da História, mostrando como Calvino durante um surto de peste em 1542 visitava as casas de pessoas doentes, ou como os cristãos da Igreja Primitiva iam tratar das pessoas doentes, indo ao encontro das suas necessidades e mostrando-lhes Cristo. Qual é o cristão ou a igreja que de facto ama o Senhor e o próximo que não quer ser útil nas mãos de Deus desta forma?

Outra acusação levantada é a da infração do mandamento da igreja se congregar para adorar o Senhor, utilizam o exemplo de irmãos em contextos de perseguição que se reúnem clandestinamente para mostrar que não devia ser uma doença como a que temos visto que deve impedir a igreja de se reunir, mesmo que custe a vida a alguns dos irmãos.

Essas polarizações e outras são mal aplicadas, os pressupostos são equivocados e os exemplos estão descontextualizados. Quem faz asseverações dessas corre o risco de estar a disfarçar a sua arrogância com presunção de fé, como disse um amigo meu.

Quando decidimos que suspenderíamos as nossas reuniões escrevi e submeti ao presbitério da nossa igreja o texto que seria usado como comunicado para a nossa congregação, que depois foi usado por outros pastores noutros países e que penso responder às alegações feitas por aqueles que defendem a continuação das atividades presenciais da igreja. Nele acabo por ir ao encontro da falsa polarização entre fé e medo aplicada a esta situação, da questão do amor e serviço da comunidade para os de dentro e de fora e do ponto da necessidade da igreja se congregar:

“Bom dia. A Graça e a Paz de Jesus,

O contexto de pandemia em que nos encontramos é complexo e sério pelos vários motivos que creio que a maior parte de nós tem acompanhado.

Como cristãos não devemos temer mal algum, somos chamados a não ficar ansiosos por coisa alguma (Fp 4.6-7), não porque sejamos indiferentes, mas porque sabemos que o Único Deus Verdadeiro que controla toda a História (Sl 103.19) é o nosso Pai que promete que todas as coisas, incluindo as negativas aos olhos humanos, cooperam para o nosso bem (Rm 8.28). Como cristãos não devemos entrar em histeria, mas confiar plenamente no nosso Deus.

Ao mesmo tempo somos chamados a ser prudentes e sábios e amar o nosso próximo (Pv 13.16; Mc 12.31). Nesta linha de raciocínio, se o Governo manda fechar as escolas e pede que se evitem ajuntamentos sociais como meio de não propagação do vírus, e se ao mesmo tempo temos o exemplo de países como Macau (que já não regista nenhum infetado), que assumiu uma postura rígida de contenção social, e do lado oposto a Itália que demorou a tomar as mesmas, percebemos que a prudência nos deve levar a seguir as linhas orientadoras da contenção social. É uma medida de prevenção, um ato cívico e uma demonstração de amor ao próximo. Não está em causa se temos ou não medo de morrer, mas o cuidarmos e servirmos as pessoas que nos cercam e a nossa comunidade.

Neste sentido, o colégio de pastores da igreja decidiu suspender todas as reuniões, incluindo os cultos, até indicação em contrário.

Sabemos ser uma medida única na história da nossa igreja, mas afirmamos também que se trata de algo absolutamente excepcional e de cariz temporário. A nossa decisão foi tomada ontem à noite, entretanto, a própria Aliança Evangélica Portuguesa, esta manhã emitiu um comunicado a fazer essa mesma recomendação às igrejas. Os irmãos devem imaginar que é com grande pesar que tomamos esta medida, uma vez que, como temos pregado de forma enfática, o congregarmos, ouvirmos a Palavra pregada juntos, tomarmos o pão e o vinho, cantarmos juntos, podermos conversar e nos abraçar, é algo vital e indispensável para a vida do cristão.

Historicamente não é a primeira vez que algo semelhante acontece, no início do século XX, aquando da Gripe Espanhola, várias igrejas tomaram as mesmas medidas.

Recomendamos fortemente que estas medidas de contenção sejam levadas a sério nas outras esferas da vida. Vamos ser sal e luz neste sentido também, dar o exemplo do que é um cidadão que ama e se esforça pela prosperidade da cidade (Jr 29.7). Ao mesmo tempo irmãos, aproveitemos para partilhar a esperança do Evangelho aos que se encontram aflitos e apavorados. Aproveitem também, os que vivem em família, para fazerem culto doméstico com regularidade, será um tempo de instrução ímpar para os nossos filhos.

Tentaremos transmitir ao vivo ou gravar a pregação de Domingo e os disponibilizaremos aos irmãos pelos meios que posteriormente indicaremos.

Em Cristo,

O Colégio Pastoral da Igreja Acção Bíblica de Faro”

Ter fé e caminhar com prudência são duas vias de uma mesma estrada, entrelaçadas, uma não dispensa a outra. Ao contribuirmos para a prevenção, para a contenção da propagação do vírus estamos a valorizar a vida sem desvalorizar o Autor da Vida, porque o que está a mover a suspensão dos cultos nas igrejas não é a negligência nem o medo de consequências, mas o amor que transbordou da Trindade em nossa direção.

Pastores, líderes e membros, como não era possível no tempo de Calvino e da Igreja primitiva, hoje têm a vantagem de poderem se edificar mutuamente por meio das facilidades modernas da tecnologia (meditações bíblicas, sermões, reuniões por vídeo-conferência, aconselhamento…). Atualmente, por parte da igreja e não só, apoios estão a ser dados a pessoas vulneráveis que precisam de compras de supermercados ou farmácias. Qualquer emergência, qualquer pedido de socorro será prontamente atendido por algum de nós, mesmo que coloque a saúde em risco. No dia em que o caos estiver instalado nas ruas e nas casas, e existir a incapacidade das autoridades competentes em ajudar, aí acredito que as respostas sejam outras, a fase não será de contenção, e nessa altura não só a igreja, mas muitos cidadãos de bem serão capazes de se expor a fim de ajudar quem precisar.

Termino com a oração que fizemos na primeira transmissão de Domingo após termos suspendido as reuniões:

“Senhor Deus, Pai, Filho e Espírito, Tu és o Deus da História,
Momentos como este que estamos a viver mostram que a história não está nas nossas mãos,
Apesar de todos os desenvolvimentos e conquistas conseguidos por nós,
No meio de toda a tecnologia e conforto, da ciência e da economia, do poderio militar e das potências mundiais, percebemos a insensatez da nossa arrogância,
Pois vemos que afinal mais do que devíamos firmamos os nossos pés em cima de nada mais do que vapor,
Olhamos distantes para o mal e os sofrimentos na história, na fantasia utópica de não sermos por eles tocados,
Amarga ilusão que nos mostra o quão inconscientes e frágeis somos. O quão indiferentes e insensíveis para contigo e para com os outros somos.
Mas tu não és frágil, nem inconsciente, nem indiferente, nem insensível. Eras, és e sempre hás de ser.
Não só tudo sabes, como misteriosamente e para o sumo bem tudo decretaste. O vírus mais mortal é dizimado pela vida que há em Ti.
Tu criaste tudo o que existe a partir do nada, todas as nações estão sob o teu senhorio.
És maior e mais elevado que tudo, cada detalhe da história está nas tuas mãos,
Das grandes epidemias às grandes guerras. Levantas e derrubas civilizações, mas ao mesmo tempo és Deus que sangrou e que se faz presente no sofrimento.
Por isso, que nós, teu povo, mais do que ninguém, ao elevarmos os nossos olhos e vermos os montes que nos cercam e nos procuram esmagar, possamos encontrar em ti o chão firme para pisar.
Visita-nos neste momento difícil da história humana, visita-nos de forma especial e única.
Dá bom senso a quem governa, sabedoria a quem busca cura, renovo a quem cuida e trata, alento a quem se consome de medo e angústia, mas acima de tudo, dá salvação em Cristo.
Usa este momento para que no meio da escuridão a verdadeira visão seja aberta, a visão da nossa fragilidade e da nossa necessidade de ti, a fonte de todo o amor, bem, esperança, paz, alegria, perdão e salvação.
Usa-nos a nós, teu povo, para amarmos quem nos rodeia por meio de ações de amor observável e pelo anúncio das boas notícias que há na pessoa e obra de Jesus.
Que agora, mais do que antes e menos do que amanhã, te amemos e ao nosso próximo.
Sê tu a nossa rocha, o nosso socorro, o nosso maior amor!

Amén!”

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