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Não vou estragar o filme narrando seus detalhes e enredo. Os interessados acharão estes detalhes na internet. Destaco aqui a qualidade impressionante das imagens, cenários, imagens geradas por computadores e as atuações excelentes dos atores que representaram Pi nas várias fases de sua vida. Vou apenas comentar os pontos que achei negativos e positivos no conteúdo profundamente espiritualista do filme.

O filme começa com Pi, já adulto, sendo entrevistado por um autor/jornalista cético, acerca de sua história surpreendente. O jornalista diz que veio procura-lo por indicação de um indiano que conhecia a história de Pi, e que disse ao jornalista que aquela história o faria acreditar em Deus ao final. E é nesse sentido que a história se desenrola: o alvo do filme parece ser este, convencer a audiência a “acreditar em Deus” no final. Todavia, não se define em que Deus acreditar: Vishnu, Cristo, Alá? Os três são apresentados como o mesmo Deus, uma ideia que ignora completamente o que cada uma destas religiões – hinduísmo, cristianismo e islamismo – ensinam sobre Deus. Não existe qualquer reconciliação teológica ou racional possível entre estes três conceitos de Deus. O hinduísmo é politeísta (33 milhões de deuses) e inclusivista, o cristianismo é trinitário e o islamismo é unitário, só para começar. E os dois últimos são totalmente exclusivistas.

A maior crítica que se pode fazer à mensagem do filme tem a ver com o seu final surpreendente. Quando Pi é resgatado de seu naufrágio nas costas do México, aparecem dois representantes da empresa japonesa à qual pertence o navio de carga que afundou, e do qual Pi era o único sobrevivente. Quando Pi conta a sua história, de como se salvou num bote com uma hiena que matou uma zebra e um orangotango fêmea que por sua vez foi morta pelo tigre, os investigadores não acreditam. Menos ainda quando Pi narra as suas aventuras no mar, sozinho com o tigre. Pi então conta uma outra versão da sua história, em que pessoas, ao que parece, de alguma forma correspondem aos animais. Um budista ferido tem uma perna quebrada, assim como a zebra. Um cozinheiro cruel e perverso é a hiena. O orangotango, nesta versão, é a própria mãe do Pi. Todos foram mortos pelo cozinheiro no bote, que em seguida comeu os cadáveres. E depois Pi matou o cozinheiro. Fica no ar a questão se Pi também teve de comer carne humana para sobreviver no mar quase um ano inteiro.

O ponto é este. Se acreditamos que a versão verdadeira é a história canibal, a história de Pi e o tigre aparecem como uma espécie de dispositivo psicológico elaborado por Pi para lidar com o horror de tudo aquilo que ele passou nos mais de 200 dias no mar. Se, por outro lado, aceitarmos a versão inicial, aceitamos também a ideia de que, com Deus, todas as coisas são possíveis.

Pi confronta com esta escolha o escritor/repórter que o está entrevistando com a pergunta: “qual das duas histórias é a melhor? Qual você prefere?”. Quando o repórter, que não acreditava em Deus, mas agora parece que acredita, responde: “A do tigre…” Pi então replica, “É a mesma coisa com relação a Deus”.

Ou seja, a existência de Deus é uma questão de preferência pessoal subjetiva, como escolher uma versão de uma história que nos parece a melhor. Todas as religiões levam ao mesmo Deus. Escolher uma – ou várias, como Pi – é uma questão totalmente subjetiva. E crer no Deus que escolhemos nos faz bem, independentemente de sabermos se ele é verdade ou não.

Um exemplo moderno deste ponto: podemos acreditar na ressurreição simbólica de Cristo em vez de uma ressurreição literal, e isto não fará a menor diferença, pois o importante é crer na melhor história…

A cosmovisão que permeia o filme é pluralista e relativista. O jovem Pi é ao mesmo tempo hindu, cristão e muçulmano, uma defesa clara da ideia que todas as religiões são iguais, boas e conduzem a Deus. Todavia, seu pai, que é retratado como materialista, defensor da ciência como fonte última da verdade, a uma certa altura diz ao seu filho: “Acreditar em tudo é a mesma coisa que acreditar em nada”. Apesar do pai ser retratado de maneira meio negativa, esta palavra dele é mais que verdadeira e contradiz a ideia central do filme.

Há partes isoladas no filme que representam o que seria uma fé verdadeira no Deus da Bíblia. No início de sua jornada no bote salva-vidas, Pi faz esta oração, “Deus, eu me entrego a ti. Eu sou teu vaso. O que quer que acontecerá, eu quero saber. Mostre-me.” Ele agradece a Deus por todas as dificuldades que enfrenta, por Richard Parker (o tigre de Bengala ranzinza que sobrevive com ele no bote) e, quando ele sente que está prestes a morrer, agradece por sua vida, dizendo a Deus que está ansioso para ver a sua família novamente. Durante uma tempestade, ele fica com raiva, perguntando a Deus o que mais ele poderia desejar ou tirar dele. Todavia, o conceito sincretista do Deus de Pi passado pelo filme acaba neutralizando estas atitudes. Qual o valor de se clamar a um Deus que não existe?

A mensagem final do filme é bem contrária ao conceito cristão de Deus e da salvação. Para nós, há somente um Deus, o Deus triúno, criador dos céus e da terra, que se manifestou salvadoramente na pessoa de Jesus Cristo, o único caminho para o verdadeiro Deus. Terei de concordar com os que dizem que fé no Deus da Bíblia é algo pessoal. Mas discordo dos que dizem que não faz a menor diferença se ele existe ou não, desde que crer nele nos faça bem.

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