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Como o Discernimento é Parecido com Comprar numa Loja de Artigos Usados

O cheiro é inconfundível e é notado assim que se entra pela porta. Não é exatamente desagradável, mas é peculiar: um cheiro de naftalina e poeira, de tecidos desgastados e de livros em decomposição. É o cheiro do tempo e de humanidade, de milhares de vidas diferentes reunidas em um só lugar.

É o cheiro de uma loja de artigos usados.

Suponho que a natureza eclética destas lojas possa ser perturbador para algumas pessoas e até mesmo desorientador. Afinal de contas, não há uma oferta previsível, não há pedidos de compra confiáveis, não há maneira de saber o que encontraremos ou até mesmo o que estamos examinando. Aqui, podemos encontrar um prato de vidro para guardar balas que é exatamente como o de sua avó, ou um banquinho de vinil de meados do século passado que se encaixará perfeitamente em sua casa daquela época, ou uma lanterna de metal que fará com que nos sintamos como a detetive infantil Nancy Drew quando a usarmos.

De muitas maneiras, a vida nos apresenta dilemas e escolhas com a mesma previsibilidade que uma loja de artigos usados. E por não podermos encomendar nossas vidas da forma que queremos, devemos nos tornar pessoas que podem identificar a bondade onde e quando a encontrarmos.

Talvez seja por isto que em Filipenses 4.8 Paulo nos exorta a pensar sobre o que é verdadeiro, respeitável, justo, puro, amável, de boa fama e por que ele repete esta ideia na frase final do versículo: “se alguma virtude há e se algum louvor existe, seja isso o que ocupe o vosso pensamento”.

Se há alguma coisa, em qualquer lugar, que seja verdadeira, honrosa, justa, pura, amável e louvável — tudo o que encontrarmos que é excelente e louvável; onde quer que os encontremos, necessitamos concentrar nossas mentes e atenção nisto.

Ao mesmo tempo, a exortação de Paulo para buscarmos “tudo o que for” e “alguma coisa” não significa fazermos uma compra por atacado de tudo aquilo que o mundo oferece; é uma exortação condicional. Porque, francamente, muitas coisas que o mundo oferece são lixo, quebradas e sem condições de reparo, e seríamos tolos se as levássemos para casa.

Como disse recentemente ao meu marido, o truque para comprar roupas num brechó é descobrir como não se vestir como se tivesse comprado suas roupas num brechó — a diferença entre “clássico” e “desatualizado” é tênua. O sucesso nas compras em lojas de artigos usados realmente depende do olho de quem compra — depende de se desenvolver um instinto para o que vale a pena comprar e o que é melhor deixar na prateleira.

Ela conhece o que é de boa qualidade simplesmente pelo olhar? Ela aprendeu a ter discernimento?

Bom Gosto

Além de nos exortar a buscar a bondade, Filipenses 4.8 também nos dá os princípios necessários para discernirmos se algo é bom. As virtudes de verdade, respeito, justiça, pureza, amabilidade e louvor funcionam como um tipo de taquigrafia que podemos aplicar a quaisquer escolhas que enfrentemos.

Mas estes princípios também desenvolvem nosso “gosto” pelo bom, guiando-nos e moldando-nos ao mesmo tempo. Em outras palavras, buscar a virtude nos transforma em pessoas com discernimento.

Joseph Brodsky, ganhador do Prêmio Nobel, explicou este conceito, no que se refere à leitura, em uma palestra de 1988 proferida em uma feira de livros na Itália. Falando para a multidão, ele abordou um dos seus maiores desafios: há simplesmente demasiados livros e muito pouco tempo. Como saber o que devemos ler? Brodsky disse que necessitamos desenvolver a habilidade de saber se um livro vale a pena ser lido ao lermos poucas páginas, e aprendemos isto lendo poemas.

Segundo Brodsky, a poesia é “a maneira mais concisa, mais condensada de transmitir a experiência humana”. Ao lermos poemas, aprenderemos o que é a boa literatura em um período mais curto de tempo. Aprenderemos sobre a importância dos detalhes, da escolha de palavras, de camadas, de alusão e do anticlímax. E então podemos transferir este conhecimento para livros de prosa, permitindo-nos decidir se vale a pena continuar lendo um livro ou se devemos colocá-lo de lado.

“Tudo o que estou tentando fazer”, ele disse à plateia, “é ser prático e poupar sua visão e células cerebrais de um monte de material impresso inútil”.

Ao direcionar nossa atenção para os princípios da virtude em Filipenses 4.8, Paulo está tentando fornecer uma abordagem semelhante para navegarmos pelo mundo ao nosso redor. Assim como a leitura de poemas nos capacita a reconhecer a boa literatura, a busca destas virtudes nos ajuda a desenvolver o gosto pelo bem, transformando-nos e mudando aquilo que desejamos.

Quando buscamos coisas verdadeiras, somos forçados a confrontar nossa própria falsidade. À medida que buscamos a justiça, devemos lidar com nossa própria injustiça. E à medida que buscamos tudo o que for amável, aprendemos a rejeitar o que é de mau gosto e pragmático por coisas de valor e beleza eternos.

Em breve poderemos identificar a diferença entre o que é bom e o que é ruim, porque estamos sendo transformados em bons. Em breve poderemos tomar decisões sábias porque estamos nos tornando pessoas sábias. Em breve saberemos o que deixar na prateleira e o que levar para casa.

Achados e Perdidos

Minha casa está cheia de coisas que comprei em lojas de artigos usados. A mesa da cozinha onde nos reunimos para comer. O par de luminárias que iluminam nossa sala. Um pequeno armário de canto que comprei por três dólares e que pintei de vermelho — ainda fico feliz só de olhar para ele. A cômoda do nosso quarto e a caixa de joias que fica em cima dela. A chaleira de cobre no aquecedor a lenha. A cadeira na qual estou sentada ao escrever este texto. Fotos, obras de arte, discos, chapéus, objetos de vidro, livros — um mundo de tesouros e curiosidades.

Acho que o que mais gosto sobre comprar em lojas de artigos usados é que, de alguma forma, me parece um ato de redenção. Davi escreveu no Salmo 113.7 que Deus “ergue do pó o desvalido e do monturo, o necessitado,”, o que soa para mim como fazer compras numa loja de artigos usados: algo que não era mais desejado, que havia sido jogado de lado e considerado sem nenhum valor recebe subitamente uma vida nova.

É claro que não é uma metáfora perfeita, mas creio que há algo aqui. Não só os pertences vindos de lojas de artigos usados foram resgatados da destruição, mas eles também se tornaram úteis novamente. Não apenas se acumulam em minha casa — eles servem ao propósito para o qual foram criados. Eles têm propósito novamente.

Não posso deixar de sentir uma afinidade especial com estes objetos perdidos e novamente achados; estes lembretes de graça e de bondade. E não posso deixar de pensar que o trabalho de cultivar o discernimento faz parte da obra maior que Deus está fazendo no mundo. Uma obra de resgate e redenção, de recuperação e restauração. A obra de tornar tudo bom novamente.

Nota do editor: Este artigo foi adaptado do novo livro de Hannah Anderson, All That’s Good: Recovering the Lost Art of Discernment [Tudo Que É Bom: Recuperando a Arte Perdida do Discernimento] (Moody Publishers, 2018). Este livro foi um vencedor de nosso prêmio para livros em 2019. 

Traduzido por Luiz Santana.

 

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