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A Grande Comissão inclui a ordem de ir?

Quem nunca participou de uma conferência missionária construída sobre a ordem: “Vão e façam discípulos” (Mt 28:19)? Quem nunca ouviu um missionário desafiar sua igreja no cumprimento da missão de Cristo lembrando que Ele ordenou que seus discípulos fossem para todas as nações do mundo? Quem nunca ouviu que a Grande Comissão começa com o imperativo “ide”?

Imagino que são poucos os que nunca escutaram algo parecido com isso. Mas, é isso mesmo o que o texto diz? A verdade é que quando observamos o texto no seu idioma original, observamos que o termo comumente traduzido como “Ide” (ARA) ou “Vão” (NVI) não é um imperativo, mas sim um particípio. E, baseados nessa informação, quem muitos afirmam que a ordem da Grande Comissão é apenas para “fazer discípulos” e que o primeiro verbo deveria ser traduzido como um gerúndio em português: “Indo, façam discípulos.” E que para cumprir a Grande Comissão os cristãos precisam manter uma vida de fazer discípulos no caminho da vida (enquanto vão, façam discípulos)?

É muito interessante como o diferente entendimento dessa estrutura sintática oferece diferentes perspectivas sobre a missão cristã. Caso Jesus tenha dado duas ordem (Ir e fazer discípulos), a proposta apresentada por muitos missionários deve ser entendida como uma leitura correta do texto. Caso Jesus tenha dado uma ordem (Enquanto vão, façam discípulos), pastores e outros pensadores culturais apresentam uma proposta missional coerente com a proposta de Cristo.

A pergunta, então, é: Quem está interpretando corretamente o texto? Na minha opinião, antes de qualquer afirmação missiológica ou missional que podemos derivar do texto, precisamos observar o texto atentamente, para tentar entender como ele pode nutrir nossa percepção de missão e missionalidade. Por isso, nesse artigo, pretendo observar como a construção usada por Cristo em Mt 28:19 é entendida por gramáticos e linguistas e, então, demonstrar como entendo o uso que Mateus faz dessa construção em seu evangelho.

A PERSPECTIVA DA GRAMÁTICA

Na Gramática Going Deeper (Köstenberger/Merkle/Plummer – KMP) os autores entendem que a construção [Part Aor] + [Imp Aor] sugere que o particípio tem ação coordenada com o verbo principal e que deve ser traduzido “tomando o modo desse verbo” (p.336). Embora simplista, essa descrição sugere que o Particípio nesse tipo de construção deve ser entendido com um imperativo e traduzido como descrevendo duas ações. Para os autores, existe 5 elementos que compõe a situação semântica do particípio circunstancial “imperativo”:

(1) O tempo do particípio é normalmente aoristo

(2) O tempo do verbo principal é normalmente aoristo

(3) O modo do verbo principal é imperativo

(4) O particípio precede o verbo principal

(5) Essa construção ocorre tipicamente em narrativas

Essa proposta oferecida por KMP é muito provavelmente inspiranda na Gramática Além do Básico (Daniel Wallace, pp. 641-42), e por sua simplicidade não considera a devida complexidade da construção. Nesse tipo de construção, Wallace sugere que o particípio tem força ingressava, sugerindo “a introdução de uma nova ação ou uma mudança na narrativa” (p.642) e que a ênfase recai na ação do verbo principal, de forma que o o particípio funciona como “um tipo de pré-requisito antes da ação do verbo” (p.643).

A PERSPECTIVA LÍNGUISTICA

Na gramática Intermediate Greek Grammar (Mathewson/Emig – ME) os autores abordam a mesma questão de uma perspectiva distinta. Eles entendem que essa construção deve ser entendida de modo mais genérico como um modificador verbal. De acordo com ME, esse tipo de particípio “especifica a circunstância debaixo da qual a ação do verbo que modifica acontece” (p.211). O critério que utilizado por ME é apenas a localização desse particípio em relação ao verbo principal. Se o particípio precede o verbo (como em Mt 28:19), ele “comunica uma ação como background ou pré-requisito do verbo principal, especialmente no forma-tempo aoristo” (p.211).

Desse ponto de vista, o particípio aponta para uma informação de importância secundária em relação ao verbo principal, e poderia ser visto como um passo na realização do objetivo do verbo principal (p.212). Embora, a apresentação seja de certo modo similar a anterior, ME sugerem a aplicação do princípio de modo distinto, pois entendem que o particípio é subordinado ao verbo principal, independente do modo como o mesmo é traduzido. Em alguns casos, os autores entendem que o particípio nesse caso poderia ser traduzido como um gerúndio em pt (e.g. Lc 5:3: Sentando no barco, ensinou a multidão). Infelizmente, esse exemplo (e todos os outros sugeridos pelo autor; e.g. Mt 2:7; Ef 1:13; 1Pe 2:1-2; Ap 1:12)  não representam a situação semântica de Mt 28:19 ([Part Ao] + [Imp Ao]), e por isso, não poderia ser uma boa referência para a situação em questão. 

SÍNTESE

Nessas duas perspectivas apresentadas, apesar de pontos em comum, existem aplicações distintas do conceito. Na primeira, o particípio é entendido como um pré-requisito, mas que funciona como um imperativo. A segunda, embora entenda que essa tradução seja válida, sugere que não existe uma regra clara aqui, e que em alguns contextos o particípio poderia ser entendido de outra forma. Embora similares, as diferentes perspectivas podem oferecer diferentes propostas missiológicas ou missionais para o texto.

O Uso de Mateus

A única forma de se resolver esse tipo de situação, na minha opinião, é observar o uso que cada autor do NT faz desse tipo de construção. No caso da Grande Comissão, seria necessário observar como Mateus a utiliza. Se minha pesquisa está correta, o autor usa essa construção 11x (cf. 2:8, 13, 20; 9:6, 13, 18; 11:4; 17:27; 21:2; 28:7, 19), e em todas elas nota-se que o particípio é usado como um pre-requisito da ação do verbo principal e tem sentido imperativo:

2:8: πορευθέντες ἐξετάσατε (Vá e investigue)

2:13: ἐγερθεὶς παράλαβε (levante-se e pegue)

2:20: ἐγερθεὶς παράλαβε (levante-se e pegue)

9:6: ἐγερθεὶς ἆρόν (levante-se e pegue)

9:13: πορευθέντες δὲ μάθετε (vá e aprenda)

9:18: ἐλθὼν ἐπίθες (vem e impõe)

11:4: πορευθέντες ἀπαγγείλατε (vá e fale)

17:27: λαβὼν δὸς (pegue e dê)

21.2: λύσαντες ἀγάγετέ (desate e traga)

28:7: πορευθεῖσαι εἴπατε (vão e fale)

28:19: πορευθέντες οὖν μαθητεύσατε (vão e façam discípulos)

Observando esses usos, quatro elementos precisam ser observados: 

(1) Contexto de Comunicação

Todos os usos que Mateus faz dessa construção não acontecem na estrutura narrativa do texto, mas apenas em ocasião de comunicação, como se a situação contextual fosse restrita a ocasiões de fala que comunicam ordem. É por isso que outros exemplos similares em porções narrativas do texto não servem como paralelos adequados para entender como essa construção funciona. Considere por exemplo o Lc 5:3 oferecido por ME: “Então sentou-se, e do barco ensinava o povo”. Não apenas a construção sintática da sentença é distinta ([part. pres. at] + [imperf. at. indicativo]), como a situação semântica da mesma também o é. Trata-se de uma moldura da narrativa para apresentar o ato de ensinar da parte de Cristo, e não na comunicação do ensino propriamente dita.

(2) Comunicação de Autoridade

Digno de nota, é que em várias ocasiões essa construção acontece num contexto onde a comunicação aponta para um ato de autoridade. Isso é claramente percebido em textos em que Cristo não é aquele que usa tal expressão. Por exemplo, Herodes ordena os sábios que investiguem a questão do nascimento do messias (2:8), o anjo do Senhor ordena a José que fuja para o Egito com sua família (2:13), e para voltar para sua terra natal (2:20). A única excessão à esse conceito acontece em Mt 9:18, que uma solicitação é exprimida por meio do uso da mesma construção.

(3) Comunicações da Autoridade de Cristo

Por outro lado, quando tal construção é encontrada nos lábios de Cristo, o conceito de autoridade é inegável. Observe como Cristo manifesta sua autoridade diante dos fariseus quando os adverte: “Vão e aprendam” (9:13), ou quando ele responde aos discípulos de João: “Vão e digam” (11:4), ou quando ele ordena Pedro a ir pesca e pagar o devido imposto do templor: “Pegue e entregue” (17:27), ou quando ele ordena seus discípulos a irem a cidade buscar por um jumento: “Desate e traga” (21:2). Mateus parece usar essa construção para descrever o modo autoritário com que Cristo comunica seu ensino e seus mandamentos.

Considere, por um momento, a história em que Cristo demonstra sua autoridade para perdoar pecados. Quando Cristo estabelece o desafio: “O que é mais fácil dizer: ‘Os seus pecados estão perdoados’, ou: ‘Levante-se e ande’? (v.5), ele usa uma construção muito interessante para descrever a ação de levantar e andar: ἔγειρε (levante) καὶ (e) περιπάτει (ande) [impertivo] + [conjunção coordenada copulativa] + [imperativo], uma construção usada somente outras seis vezes no livro todo (cf. 5:12; 15:10; 16:6; 21:21; 23:3; 26:41). É evidente nesse caso, e em todos os outros em Mateus, que o uso de dois imperativos conectados por και (pt. conjunção coordenada aditiva e), implica em duas ordens. Também é interessante que em todos esses casos o conceito de autoridade está presente.

Agora, observe como Jesus comunica ao paralítico sua ordem e manifesta sua autoridade para os presentes na história da cura do paralítico:  “Levante-se, pegue a sua maca e vá para casa” (v.6). Os verbos “pegue” e “vá” são imperativos aoristos ativos no original (ἆρόν, ὕπαγε), e servem como o verbos principais para a sentença, que é iniciada com o particípio aoristo (mas, sing, nom) ἐγερθεὶς. Dificilmente alguém conseguir perder de vista o tom de ordem e manifestação de autoridade nessa sentença, de tal modo que uma tradução como “Quando se levantar, pegue sua maca e vá para casa” parece inapropriada. Digno da nossa atenção, é que o milagre não seria primeiramente expresso no pegar a maca, nem no ir para casa, mas no levantar-se. Para um paralítico, levantar-se seria o primeiro desafio, e para a comunidade em volta, a primeira evidência do milagre. Levantar não era apenas uma necessidade antecedente dos verbos seguintes, era uma ordem, um paralelo interessante com o uso do verso anterior, no qual Jesus usou dois imperativos conectados por και (v.5; ci ἔγειρε καὶ περιπάτει) para expressar essa ideia. 

(4) Senso de Urgência

Além disso, em todos esses casos existe um senso de urgência na realização na ação descrita pelo verbo principal. Nesse contexto, o particípio antecedente funciona como a ação também imperativa pre-requisitada para a a concretização da ação do verbo principal. No caso de 28:7, para que a mensagem seja comunicada aos discípulos, as mulheres tem que chegar até os discípulos, portanto, o ir é imperativo (necessário) para a comunicação. 

Conclusão

Considerando as observações acima, me parece que na declaração da Grande Comissão em Mt 28:19, nós vemos a construção [part aoristo] + [imp aorist], num contexto de fala (tal como 1 acima), que aponta para a autoridade (tal como 2 acima) nos lábios de Jesus (tal como 3 acima), num contexto em que o senso de urgência é palpável (tal qual 4 acima). Ao que parece, diante do modo como Mateus usa tal construção, é possível afirmar que a Grande Comissão deve ser entendida como a combinação de duas ordens: “Vão e façam discípulos.” Ir não é somente um pré-requisito conceitual para a realização da do fazer discípulos, é uma ordem carregada com a autoridade de Cristo (v.18). 

Em outras palavras, eu (particularmente) entendo que no caso de Mt 28:19 a ação do verbo principal é central na ordem de Cristo, mas que tal ação deve ser antecedida pela ação de ir. São duas ordens que devem ser realizadas consequencialmente e de modo necessariamente conjunto: Ir e fazer discípulos.

No caso de Mt 28:19 a ação do verbo principal é central na ordem de Cristo, mas que tal ação deve ser antecedida pela ação de ir. São duas ordens que devem ser realizadas consequencialmente e de modo necessariamente conjunto: Ir e fazer discípulos.

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