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A preguiça é um vício familiar. E já que é assim, a maioria de nós prefere o caminho rápido e fácil ao duro e lento. Saúde do corpo? Exercício e moderação dão muito trabalho; uma pílula basta. Manutenção de carro? Por que pagar por óleos lubrificantes ou troca de pneus quando você pode comprar um aditivo de combustível barato? Preparação para provas? Por que desenvolver hábitos de estudo regulares quando você pode deixar para estudar na última hora? Até que a natureza humana mude, sempre haverá um mercado para charlatões venderem uma solução rápida.

Mas e quanto à santificação?

Considerando a natureza humana, vale a pena perguntar se há uma solução rápida no mercado, alguma versão de “Como Tornar-se Santo em 3 Passos Fáceis”, que seja muito menos árdua do que Eugene Peterson (usando uma frase original de Friedrich Nietzsche) chamou de “uma longa obediência na mesma direção”. De acordo com Andy Naselli, existe. É chamada de “teologia da vida superior”, e ele gasta cerca de 100 páginas criticando-a em seu novo livro, “No Quick Fix: Where Higher Life Theology Came From, What It Is, and Why It’s Harmful” [Sem Solução Rápida: De Onde Veio a Teologia da Vida Superior, o Que é, e Por Que Ela é Prejudicial, sem edição em português].

O Que é a Teologia da Vida Superior?

Para Naselli, que ensina Novo Testamento e teologia no Bethlehem College and Seminary em Minneapolis, a Teologia da Vida Superior (HLT, sigla em inglês) foi a versão do cristianismo que ele cresceu ouvindo. Esta experiência inicial e o eventual desencanto com a HLT o motivaram a escrever esse livro. Na verdade, ele foi motivado a escrever uma dissertação de doutorado sobre o assunto, que foi posteriormente revisada e publicada como “Let Go and Let God? A Survey and Analysis of Keswick Theology” [Deixa Deus Agir? Uma Pesquisa e Análise da Teologia Keswick]. Em “No Quick Fix”, temos agora uma versão mais curta e acessível deste trabalho. Sendo assim, “No Quick Fix” é tanto incisivamente pessoal quanto minuciosamente refinado.

Então, o que é HLT? Em resumo, HLT é uma visão da vida cristã que divide os cristãos em dois grupos básicos: os que são cheios do Espírito e os que não são. Ser cheio do Espírito é “a chave” para viver uma vida cristã vitoriosa, e isso não é alcançado pelo esforço, mas pela entrega, “deixando Deus agir”.

A teologia da vida superior implica em uma tendência em separar a santificação da justificação, considerando-a quase uma espécie de “segunda conversão”. Assim, ela tende a ver a santificação mais como uma situação de crise do que um processo gradual.

Todo cristão luta contra o pecado e quer ser vitorioso na luta.

A teologia da vida superior (também conhecida como teologia Keswick) oferece uma solução rápida para essa luta. Ensina que existem duas categorias de cristãos: aqueles que são meramente salvos e aqueles que realmente se renderam a Cristo – ou aqueles que têm Jesus como apenas seu Salvador e aqueles que o têm também como seu Mestre. Se cristãos simplesmente puderem “deixar ir e deixar Deus”, podem estar livres de lutar contra o pecado e ser levados a esse nível superior de vida espiritual. O que poderia estar errado com isso?

Muito, afinal. Em “No Quick Fix”, uma versão mais curta e acessível de seu livro “Let Go and Let God ?”, Andy Naselli critica a teologia da vida superior a partir de uma perspectiva bíblica. Ele mostra que isso não leva à liberdade, mas à frustração, porque promete algo que não tem poder para entregar. Ao longo do caminho, ele conta a história de onde a teologia da vida superior veio, descreve suas características e compara-a com o que a Bíblia realmente diz sobre como superamos o pecado e nos tornamos mais como Cristo.

Embora não seja necessariamente um evento que ocorre uma única vez, como a justificação, esta situação de crise de entrega, juntamente com seu resultado de vitória, separa os abastados (cristãos espirituais) dos desprovidos (cristãos carnais). Ou você chegou lá ou não. E se você não chegou, o mais urgente a se fazer é render-se agora.

De Onde Veio Isso?

Mesmo aqueles que não são doidos por História provavelmente acharão o capítulo de Naselli sobre “a história da HLT” fascinante. Ao menos, você ficará surpreso com o quão difundido este ensinamento é, e também com os grandes homens e mulheres cristãos que o adotaram de alguma forma.

No primeiro de muitos gráficos úteis, Naselli traça a ancestralidade espiritual da HLT, desde seu início em John Wesley, passando pelo Movimento de Santidade, no século XIX, até o Movimento Vida Superior, sob Hannah Whithall Smith, cujo livro de 1875, O Segredo do Cristão Para Uma Vida Feliz, ainda pode ser comprado facilmente em qualquer livraria.

Todas essas correntes eventualmente culminaram no Movimento Keswick (pronunciado KEH-zick, nome proveniente de uma cidade britânica que se tornou o lar de uma famosa convenção bíblica); Naselli o considera como sendo a própria Teologia da Vida Superior. Com o Movimento Keswick vem uma lista de nomes de estrelas reverenciadas entre muitos cristãos: Andrew Murray (“o principal escritor devocional de Keswick”), Hudson Taylor e Amy Carmichael (“os principais missionários de Keswick”), Frances Ridley Havergal (“a compositora de hinos de Keswick”), só para citar alguns.

Esse trecho também mostra que, mesmo Naselli considerando a HLT prejudicial, ele não a vê como heresia. Qualquer teologia abraçada por Hudson Taylor e D. L. Moody não pode ser de todo ruim. A HLT deve ser valorizada por sua devoção calorosa, sua centralidade em Cristo e sua ortodoxia em doutrinas fundamentais. Mas após Naselli alegremente afirmar tudo isso, ele se volta para a crítica construtiva.

Por Que Ela é Prejudicial

Aqui, Naselli aponta 10 razões: uma maior e nove menores. A grande razão (que tem seu próprio capítulo e compõe um quarto do livro) é essa: A Teologia da Vida Superior é prejudicial porque cria duas categorias de cristãos.

Este capítulo contém o levantamento exegético mais pesado de Naselli, complementado com diagramas contendo frases de passagens-chave como Romanos 6.1-23 e 1 Coríntios 2.6-3.4. Mesmo sendo duas vezes filtrado de sua dissertação de doutorado, ainda assim não é leitura leve. Mas quando lido e relido com atenção, rende abundantemente.

Em contraste com a dicotomização da HLT, Naselli argumenta que não apenas alguns, mas todos os cristãos

  • são tanto justificados quanto santificados;
  • são espirituais (sendo nenhum permanentemente carnal);
  • são batizados com o Espírito;
  • são cheios do Espírito em diversos graus;
  • permanecem em Cristo em vários graus.

Em suma, Naselli conscientemente argumenta a partir de uma visão reformada de santificação (uma em que Arminianos Reformados como Matthew Pinson, colaborador de TGC, em grande parte, também concordariam). Se você teme que a orientação teológica de Naselli possa distorcer seu uso dos dados bíblicos, gostaria de lembrar que ele escreveu como um antigo proponente da HLT, e não como um nascido e criado calvinista. Para além disso, eu simplesmente o encorajo a ler seus argumentos.

Ao longo do capítulo, Naselli dá exemplo de uma virtude intelectual e uma erudição cuidadosa. Ele demonstra disposição em enfrentar certos dados bíblicos, especialmente quando há tensões, ao invés de ignorar textos que não se encaixam confortavelmente ao seu argumento. Ele também reconhece onde suas interpretações são menos seguras, como por exemplo, se o Espírito é o conteúdo com o qual estamos preenchidos ou o meio pelo qual somos preenchidos. Com cuidado pastoral, ele aborda questões do tipo, “Como obedecemos ao mandamento de nos enchermos do Espírito?” (dica: tem a ver com a Palavra) e “Será que um mandamento sugere que podemos tanto obedecê-lo quanto desobedecê-lo?” (resposta: não necessariamente).

Tendo lidado extensamente com a razão mais fundamental de porque a HLT é prejudicial, Naselli rapidamente lança mais nove razões, das quais analisarei três.

1. A teologia da vida superior é uma forma de quietismo (corrente mística “cristã”) que enfatiza a passividade ao invés da atividade.

Confesso que fiquei surpreso com a forma dura com que alguns proponentes da HLT expressam esse ponto. Por exemplo, Charles Trumbull afirmou que “[qualquer] vitória que você obtém tentando é uma vitória falsa. Você deve substituir a palavra; não tente, mas confie, não é possível tentar e confiar ao mesmo tempo”.

Se eu estivesse desinformado, acharia que Trumbull estava descrevendo a justificação. Afinal, na justificação, a benção de Deus não vem àquele que tenta, mas àquele que confia no que justifica os ímpios (Rm 4.4,5).

Mas isso é justamente parte do problema da HLT. Ao transformar a santificação progressiva em um evento único, pós-conversão, como é a justificação, ele acaba por descrever a santificação em linguagem quase idêntica à justificação e, desse modo, colapsa as distinções bíblicas entre os dois.

Justificação e santificação vem por fé? Sim, mas a fé agindo de maneiras diferentes. Na justificação, a fé acolhe e baseia-se apenas em Cristo para a salvação, enquanto na santificação, a mesma fé opera através do amor a Deus e ao próximo (Gl 5.6).

Negar o papel do esforço ativo na fé santificadora, não apenas confunde a santificação com a justificação, mas também bate de frente com uma miríade de textos do Novo Testamento que descrevem a santificação em termos ativos.

2. A teologia da vida superior torna o nosso livre-arbítrio o determinante final na santificação.

Isso é um tanto irônico, considerando o quanto a HLT procura minimizar o esforço humano na santificação, a ponto de argumentar que não devemos nem tentar, mas simplesmente permitir que Cristo faça tudo.

E eis o atrito: Cristo deve fazer tudo, mas nós devemos permitir.

No fim, a HLT não remove o esforço humano da equação; simplesmente concentra tudo em um só lugar: deixar Deus agir.

Toda essa conversa sobre não fazermos nada, na verdade, diz que nós agimos decisivamente para que todo o processo “inicie e pare”. E quando percebemos que ainda estamos pecando e, portanto, não vivendo vitoriosamente, acabamos repetindo essa fórmula várias vezes.

3. A teologia da vida superior frustra e desilude os desprovidos.

O problema aqui não é o ciclo contínuo de pecar, arrepender-se e crer no evangelho. Isso pode ser frustrante, sem dúvida, mas é muito menos frustrante quando sua visão de santificação te ensina a esperar por isso.

A verdadeira frustração está em quando você pensa que há uma solução rápida, que irá impulsioná-lo para uma região mais elevada onde esse ciclo não é mais necessário; achando que já entrou nesta região, você se vê pecando novamente. E então, acaba descobrindo que apenas pensou ter se consagrado! Melhor tentar de novo… Na verdade, não tente… você entendeu o ponto.

O relato de Naselli sobre a experiência atordoante de J. I. Packer com a HLT é bastante instrutivo.

Abandone a Teologia da Vida Superior

Andy Naselli nos deu uma pérola neste pequeno livro, que pode servir a você e à sua igreja, quer defenda a HLT ou não. A exegese é sólida, o tom é apaziguador, o motivo é pastoral e a mensagem é, em última instância, precisamente esperançosa, pois é tão realista quanto o evangelho o é em relação ao pecado.

Essa é a boa nova que Naselli nos traz. O evangelho realmente nos torna pessoas santas, ainda que gradualmente. Na verdade, existe uma região mais elevada, onde o ciclo do pecado já não nos oprimirá: Ela é conhecida por céu, e Jesus o trará com Ele. E na verdade, há uma solução rápida que um dia virá, e será bem rápida mesmo: “Transformados seremos todos, num momento, num abrir e fechar de olhos” (1 Co 15.51,52).

Até lá, nas palavras de Packer, não vamos ” deixar Deus agir”, mas sim, “confiar em Deus e prosseguir”. Ou nas palavras de Hebreus 12.1,2: “Corramos, com perseverança, a carreira que nos está proposta, olhando firmemente para o Autor e Consumador da fé, Jesus”.

Traduzido por Rafael Salazar.

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