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Por Igrejas Verdadeiramente Evangélicas

Na atualidade, é um desafio compreender plenamente o significado da identidade cristã. Com inúmeras expressões públicas, o movimento da “mensagem da prosperidade” [1] (FERREIRA, 2017, p. 46) e suas respectivas ramificações, bem como correntes cristãs que, em favor da militância política, trocam o evangelho por alguns pratos de lentilhas, tornaram-se a imagem pública evangélica difusa e contraditória. Com o recente e lastimável caso “Flordelis” (BBC, 2020), a igreja evangélica brasileira parece sofrer um desgaste cada vez mais agudo. Para um cristão verdadeiro pode parecer óbvio que nenhum desses movimentos atua representando a verdadeira igreja de cristo, mas, para que se possa expressar a fé cristã publicamente, a igreja cristã deve compreender que possui responsabilidade central no processo de formação de virtudes do povo de Deus. Berkhof (2012) expressa tal responsabilidade da seguinte forma:

Na presente dispensação, a igreja é militante, isto é, convocada para uma guerra santa, e de fato nela está emprenhada. Isto, naturalmente, não significa que ela deve gastar suas forças em lutas sangrentas de autodestruição, mas, sim, que tem o dever de levar avante uma incessante guerra contra o mundo hostil em todas as formas em que este se revele, seja na igreja ou fora dela, e contra todos os poderes espirituais das trevas. A igreja não pode passar o tempo todo em oração e meditação, embora estas práticas sejam tão necessárias e importantes, nem tampouco deve parar de agir, no pacífico gozo da sua herança espiritual. Ela tem que estar engajada com todas as suas forças nas pelejas do seu Senhor, combatendo numa guerra que é tanto ofensiva como defensiva. (p. 519)

Na palavra de Deus existe uma importante apresentação do papel das virtudes na vida cristã. O fruto do Espírito são dádivas concedidas que, embora não sejam obtidas através de empenho empregado pelo crente, devem ser por ele desenvolvidas. E justamente no processo de desenvolvimento do fruto, o cristão passa a formar virtudes e projetá-las em seus relacionamentos e também na sociedade. Paulo, em sua epístola aos gálatas, se preocupou em trabalhar o impacto que o verdadeiro evangelho causa tanto na vida espiritual do cristão, quanto na esfera pública. Os cristãos na região da Galácia enfrentaram conflitos ocasionados por partidarismos diversos e, principalmente, por agitadores que passaram a acrescentar adendos à mensagem da cruz (KELLER, 2015). Como resolver problemas que se manifestam não só no âmbito da igreja, mas também perante a sociedade? Segundo o apóstolo Paulo, estes e outros conflitos devem ser entendidos à luz do embate entre a carne e o Espírito, que, além de só ser possível na vida do crente, serve como uma espécie de conflito medidor que demonstrará os níveis de desenvolvimento já experimentado pelo cristão, assim como indicará o longo caminho que ainda é preciso trilhar.

Quando se entende a virtude como uma resposta cristã ao trabalho de frutificação graciosamente concedido pelo Espírito, deve-se também indagar sobre as formas a serem adotadas para que o cristão possa emitir essa resposta de forma cada vez mais vívida e vigorosa. Alguns estudiosos, como James K. Smith (2010), tratam a igreja e sua liturgia como uma incubadora de virtudes que possui um papel central na formação cristã, e, para compreender este aspecto formador da igreja, não há outra forma senão através da análise do culto cristão. Um cristão sabe distinguir, dentre as diversas expressões auto afirmadas evangélicas, quais são de fato caracterizadas pelas marcas do evangelho da verdade. Mas tal percepção, invariavelmente, dependerá de uma análise dos cultos. Uma igreja marcada pela mensagem da prosperidade não pode ser uma igreja verdadeira, pois a adoração no culto é idólatra em sua reverência à Mamom. Do mesmo modo, uma igreja que deforma a mensagem da cruz para encaixá-la ao conceito de que “a história de todas as sociedades até hoje existentes [seja] a história das lutas de classes” (ENGELS, MARX, 2017, p.22), jamais poderá ser interpretada como uma verdadeira igreja, uma vez que o culto ao regime ou sistema social como o meio capaz de alcançar o ápice escatológico, será também idólatra. A compreensão do evangelho acabará por desenvolver no crente a noção de que toda e qualquer visão utópica, comumente encontrada no cerne das bases epistemológicas de determinados regimes econômicos, e também em certas ideologias políticas, está fadada ao fracasso. E o verdadeiro culto cristão atua no crente como um lembrete de que o fim já está escrito, e há um papel a ser desempenhado pela igreja até que chegue o dia do supremo juiz (ALLMEN, 2006).

O fruto do Espírito é desenvolvido em virtudes, sendo tais virtudes expressas na forma final deste fruto, que é o amor. A linguagem adotada pelo apóstolo Paulo indica que o cristão é convidado a desenvolver um sabor, pois o termo fruto indica desenvolvimento gradual (KELLER, 2015), mas também conota a presença de um sabor especial. A igreja, através das práticas litúrgicas repetidas semanalmente nos cultos, contribui para que o crente desenvolva os sabores do fruto de forma a marcar sua presença de maneira singular. Esses sabores são expressos nas virtudes e devem ressoar não apenas nas práticas de serviço eclesiástico, mas também no mundo. Justamente por isso, existem realidades que devem estar constantemente presentes no imaginário cristão, pois através delas a missão cristã, tal como os distintivos éticos e morais, passará a fazer parte dos hábitos reflexivos diários do cristão. Tais realidades são descritas por ALLMEN:

Em primeiro lugar, o culto transfigura o mundo. (…) Paradoxalmente, o fato de o culto apresentar a Igreja enquanto comunidade batismal significa também que o mundo está presente no culto – mas presente após haver morrido para si mesmo. Com efeito, se o batismo faz que morra o que é batizado, ele também o ressuscita. O que ressuscita é aquele que foi morto no batismo. A identidade não se dissolve: o Ressuscitado da manhã de Páscoa é o mesmo que fora sepultado na tarde se Sexta-Feira Santa. Essa é a tônica implícita em todas as narrativas do sepultamento de Cristo: em sua notável unanimidade, todas elas têm por função atestar a realidade da ressurreição. A comunidade dos batizados que o culto manifesta é de fato uma comunidade de homens, mulheres e crianças que renunciaram ao mundo e morreram para o pecado. (ALLMEN, 2006, p. 45)

Dentro da grande escola de formação cristã, a igreja de Cristo, o próprio ato de cultuar é transformado em um processo contínuo de aprendizado, quando se tem o Deus verdadeiro, Uno e Trino, como o centro da adoração. E, em uma sociedade fragmentada com falsas representações do corpo de Cristo, só a igreja verdadeira pode anunciar a pura e poderosa mensagem do evangelho. Através das práticas de formação cristã presentes em cada culto, o que o Espírito frutifica é desenvolvido no crente de forma a fazer com que, os moldes graduais experienciados nos cultos, contribuam para o desenvolvimento do amor, que é expresso na entrega, no serviço. O amor é o estágio final que, quando alcançado, possibilita ao cristão a disposição para matar gradativamente o que precisa morrer, vivificando o novo caráter e testemunhando para o mundo a maravilhosa obra redentiva de Deus.

Existem inúmeras expressões de pretensos representantes da fé cristã na sociedade brasileira hoje, e, em alguma medida, movimentos diversos que se afastavam do verdadeiro evangelho também estavam presentes na Galácia (KELLER, 2015). Contudo, o modo com que Paulo orienta os gálatas a se apegarem a verdade do Cristo crucificado e ao método de operação do evangelho para que haja em tudo uma resposta cristã, um agir virtuoso, serve para indicar que o evangelho é poder, não apenas para salvar aqueles que ainda não creem, mas também para transformar o crente e fazê-lo ser guiado pelo Espírito em uma vida de frutificação. Que a igreja brasileira não se furte a responsabilidade de acolher, formar e enviar para fora cristãos virtuosos, embaixadores do reino que compreendem que o que já está garantido no fim deve ser testemunhado e encenado em cada esfera que compõe a vida cristã.

REFERÊNCIAS

ALLMEN, J. O culto cristão: teologia e prática. 2ª. ed. São Paulo: ASTE, 2006.

BERKHOF, L. Teologia Sistemática. 4ª. ed. São Paulo: Cultura Cristã, 2012.

FERREIRA, F. Pilares da fé: a atualidade da mensagem da reforma. 1ª. ed. São Paulo: Vida Nova, 2017.

KELLER, T. Gálatas para você. 1ª. ed. São Paulo: Vida Nova, 2015.

MARX, K. ENGELS, F. Manifesto Comunista. 1ª. ed. São Paulo: Boitempo, 2017.

MORI, L. Caso Flordelis: como deputada conseguiu adotar mais de 50 filhos. BBC Brasil. 28 de ago. de 2020. Disponível em: https://www.bbc.com/portuguese/brasil-53953982 . Acesso em: 28 de ago. de 2020.

SMITH, J. Você é aquilo que ama: o poder espiritual do hábito. 1ª. ed. São Paulo: Vida Nova, 2017.

 


[1] Em sua obra ‘Pilares da fé’, Franklin Ferreira defende de forma perspicaz que a conhecida teologia da prosperidade não pode ser de fato caracterizada como teologia, pois não há a presença de aspectos minimamente coerentes acerca do ser de Deus, seus atributos e feitos, mas sim uma formulação utilitarista e materialista cuja a finalidade é apenas a elaboração de uma espécie de receita para obtenção de sucesso financeiro. Por isso, seria mais coerente se referir a essa corrente como a mensagem da prosperidade.

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