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As páginas da Bíblia estão cheias de atos milagrosos de Deus, e aqueles que acreditam na confiabilidade das Escrituras certamente acreditam em milagres. No entanto, hoje, quando alguém afirma ter testemunhado um milagre, até mesmo cristãos evangélicos tendem a rir por dentro, talvez atribuindo o “milagre” a uma imaginação fértil ou aos avanços da ciência moderna. Estamos diante de um paradoxo difícil: por um lado, ansiamos por maravilhas e sinais milagrosos como aqueles da Escritura, mas muitas vezes quando vemos ou ouvimos acontecimentos dignos de serem chamados de “milagrosos”, lutamos para superar o nosso ceticismo moderno. Será que Deus deixou de trabalhar no mundo do jeito que ele fez nos tempos bíblicos?

Para responder a essa pergunta, precisamos desenvolver uma teologia de milagres que nos ajudará a entender corretamente a maneira como Deus trabalha no mundo hoje de maneira que evitemos os extremos de transformar tudo em um milagre, por um lado, ou permitir que nada seja considerado um milagre, por outro. Precisamos determinar o que é um milagre e o que não é.

Visões Erradas sobre Milagres

Muitas falsas visões sobre milagres persistem hoje em dia. Por exemplo, algumas pessoas acreditam que Deus criou o mundo como um relógio ao qual só precisava ser dado corda, apenas para ser deixado sozinho, operando de acordo com um conjunto de leis naturais. Nesta visão, Deus não é normalmente envolvido no mundo, e os milagres são aqueles momentos que ele escolhe para interromper as leis da natureza. Contudo, esta visão tira Deus de qualquer sustentação comum e providencial da ordem criada. Ou seja, ela assume que Deus normalmente não exerce ação na criação, o que, como veremos, não é bíblico.

Uma segunda visão errada de milagres também tenta empurrar qualquer ação divina para fora do mundo, mas de uma maneira diferente. Este ponto de vista sugere que não há realmente milagres porque, por definição, os milagres violam as leis da natureza. No entanto, tendo em vista que não temos uma compreensão exaustiva das leis da natureza, como podemos ter certeza de que algum dado milagre de fato viola alguma lei da natureza? Ironicamente, esta posição alegremente admite que algumas coisas que acontecem no mundo ultrapassam nossa compreensão, porém ela atribui esses mistérios à ciência, em vez de a Deus.

O oposto da segunda perspectiva é o ponto de vista chamado de “Deus das lacunas”, que basicamente atribui qualquer coisa que atualmente não entendemos ao miraculoso poder de Deus. Em vez de explicar um evento extraordinário como “mera ciência”, o ponto de vista chamado de “Deus das lacunas” explica qualquer lacuna de conhecimento científico por meio da existência de Deus ou da ação divina. Mas à medida que o conhecimento científico cresce, e as lacunas no nosso conhecimento encolhem, o mesmo acontece com o Deus que supostamente as preencheu.

Além disso, outra visão errada dos milagres transforma cada ação comum de Deus no mundo em um milagre extraordinário. Michael Horton descreve bem este ponto de vista em The Christian Faith (A Fé Cristã):

Em reação contra o naturalismo, é frequentemente afirmado pelos cristãos que Deus está, de fato, envolvido constantemente no curso de suas vidas na forma de milagres. Com sede por sentido prático do cuidado de Deus por suas vidas, muitos cristãos se agrupam com indivíduos prometendo a eles um encontro diário com milagres. O que se perde nessa barganha é o sentido da providência ordinária de Deus por meio de processos naturais e humanos que Ele mesmo criou e sustenta. (368) ¹
Ou seja, alguns cristãos estão tão preocupados com o fato de que o secularismo moderno não dá lugar para Deus que eles exageram chamando qualquer coisa incomum que acontece de milagre. Mas quando tudo é um milagre, nada é um milagre.

Milagres versus Providência

Uma das crenças cristãs mais básicas é a crença de que Deus – como criador, sustentador e redentor de toda a vida no universo – exerce ação dentro, sobre e por meio do que ele criou. Em certo sentido, toda a Bíblia é um relato de milagre após milagre – de trabalho especial contínuo de Deus na criação para resgatar e restaurar um povo de aliança para si mesmo. A Confissão de Westminster tem uma declaração sobre esse ponto sucintamente: “Deus, o grande criador de todas as coisas, sustenta, direciona, move e governa todas as criaturas, ações, e coisas, da maior à menor delas, por sua grande sabedoria e santa providência, de acordo com sua infalível presciência, e de acordo com sua livre e imutável vontade, para o louvor da gloria de sua sabedoria, poder, justiça, bondade e misericórdia.”

Então, o que é um milagre, e como um milagre é distinguível da ação divina regular? Como podemos manter ao mesmo tempo uma compreensão robusta da providência divina geral e da intervenção divina especial em milagres? A fim de entender os milagres corretamente, os cristãos devem considerar a providência de sustentação diária de Deus.

De acordo com Wayne Grudem, em sua obra Systematic Theology: “Um milagre é um tipo menos comum da atividade de Deus no qual ele desperta respeito e admiração das pessoas e dá testemunho de si mesmo” (355). Ou como Horton coloca: “Ao contrário da providência ordinária de Deus, sua intervenção milagrosa envolve uma suspensão ou alteração de leis naturais e processos em circunstâncias particulares” (368). Observe que ambas as definições de milagres pressupõem que Deus já está envolvido na criação continuamente.

Deus está envolvido no mundo por meio de mais do que apenas milagres; até mesmo processos naturais podem ser atribuídos à ação divina. Como Horton observa: “Quando uma queimadura cura, é Deus que cura através dos processos naturais com os quais ele ricamente dotou e com tanto cuidado atendeu” (369).

Quando entendemos que Deus providencialmente guia e sustenta a nossa vida quotidiana, a distinção entre “natural” e “sobrenatural” desaparece. Horton explica:

Nós frequentemente distinguir causas naturais e sobrenaturais, mas isso também pode refletir a falsa escolha de atribuição de circunstâncias, ou a Deus ou a natureza. As Escrituras não dá conta de uma criação ou uma história que está em algum momento único independente da agência de Deus. A questão não é se Deus está envolvido em cada aspecto de nossas vidas, mas como Deus está envolvido. Portanto, no que diz respeito à providência, a questão é nunca se causas são exclusivamente naturais ou sobrenaturais, mas se o envolvimento de Deus em cada momento é providencial ou milagroso. (369, itálicos Originais)

Visões “intervencionistas” de ação divina veem qualquer atividade de Deus como milagrosa, diminuem a orientação providencial de Deus, e criam uma dicotomia forte demais entre a agência de Deus e a agência da criatura. Em contraste, uma visão que vê milagres como uma instância especial de atividade de Deus reconhece que “mesmo em sua atividade milagrosa Deus normalmente trabalha através de meios de criaturas, mas ele santifica por serviço extraordinário” (368).

Ficar desapontado por não ver “milagres da Bíblia” em nossas vidas é não compreender o significado do cuidado providencial de Deus sobre a criação. Horton escreve: “Não só quando Deus intervém extraordinariamente, suspendendo sua ordem natural, mas em sua concepção e fidelidade a essa ordem, temos motivos para dar graças,”. “Não só quando se é câncer desaparece misteriosamente, mas quando é conquistado através das inúmeras camadas de mediação da criatura, em última análise, Deus é quem cura” (369).

Se experimentamos o poder de Deus de uma forma obviamente milagrosa, como uma cura, ou simplesmente por meio de sua orientação providencial nas mãos de um cirurgião, Deus está igualmente perto de nós, pois “nele vivemos, e nos movemos, e existimos” (Atos 17:27-28).


¹ Michael Horton, The Christian Faith: A Systematic Theology for Pilgrims on the Way (Grand Rapids, MI: Zondervan, 2011). Todas as citações de Horton neste artigo podem ser encontradas na obra The Christian Faith.

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