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No clássico Um cântico de Natal, de Charles Dickens, existe uma conversa poderosa entre o Fantasma do Natal do Presente e Ebenezer Scrooge. Scrooge percebe alguma coisa se mexendo perto da barra da túnica do espírito. Quando ele pergunta sobre aquela forma estranha, o fantasma revela duas crianças subnutridas e miseráveis agarrando seus tornozelos.

– Cuidado com estes dois, diz o espírito, mas, acima de tudo, cuidado com o menino, porque, na sua testa, vejo escrito Condenação, a não ser que a escrita seja apagada. Quando Scrooge pergunta se as crianças não têm quem os ajude, o fantasma replica com as próprias palavras de Scrooge—Não há prisões? Não há casas de correção?

As crianças são símbolos do efeito do egoísmo de Scrooge. Elas o encaram com um olhar de condenação. Scrooge sabe que as acusações delas estão corretas. Embora seus nomes na história sejam Ignorância e Miséria, eu acho que elas podem ser corretamente chamadas de Culpa e Vergonha.

– Espírito, as crianças são suas? —pergunta Scrooge.—São filhos do Homem, respondeu o espírito. Assim também são a culpa e a vergonha. Elas são filhas da humanidade. Elas se agarram firmemente ao nosso lado. Não são fáceis de enxotar.

São quase tão antigas quanto o próprio tempo, nascidas no jardim quando Adão e Eva se rebelaram, sāo prole de desejos proibidos.

O Dia em que a Culpa Nasceu

A Culpa e a Vergonha eram desconhecidas no Éden antes da rebelião. Mas quando Eva limpou o suco da fruta proibida dos seus lábios, estas emoções pairaram sobre ela como uma nuvem escura. As silhuetas delas a seguiriam até o dia da sua morte. Ela seria enterrada na presença fria delas. E, como Adão seguiu os passos da esposa, mais duas sombras nasceram.

A Culpa e a Vergonha são concebidas na rebelião. Elas se parecem com seus pais: têm os olhos do pai e o sorriso da mãe. Não podemos negar que são nossas.

Viver fora do Éden é conhecê-las intimamente. Nós as conhecemos bem, muito melhor do que gostaríamos. Desejamos poder nos desfazer delas, mas elas não nos deixam em paz.

Apesar da Culpa e da Vergonha serem gêmeas, nascidas no jardim, uma logo após a outra, elas não são idênticas. A Culpa geralmente está relacionada a um evento: eu fiz algo ruim. A Vergonha está relacionada a uma pessoa: eu sou ruim. A Culpa é a ferida. A Vergonha é a cicatriz. A Culpa é um caso individual. A Vergonha é contagiosa.

Quando transgredimos a lei de Deus, sentimos culpa. Mas a emoção é quase simultaneamente seguida de vergonha. A culpa diz: “Você fez algo errado.” A vergonha diz: “Você precisa se esconder. Você não presta. Merece viver na escuridão. Venha comigo, eu mostro o caminho.”

Comparando a Culpa e a Vergonha às crianças de Uma Canção de Natal do Dickens, A Culpa é a menina e a Vergonha é o menino. E, como o fantasma diz: “Cuidado com estes dois, mas, mais do que tudo, cuidado com o menino, porque, na sua testa, eu vejo escrito Condenação”. O que a Culpa começa, a Vergonha com certeza termina. Na sua testa está escrito Condenação.

Ninguém pode compartilhar sua culpa, mas muitos podem compartilhar sua vergonha. O filho cujo pai está preso, a esposa cujo marido é infiel, a filha cuja mãe é abusiva—todos eles compartilham da vergonha. Sentem que seu valor ficou diminuído. A vergonha se agarra bem forte aos seus tornozelos, permitindo que andem, mas que jamais corram.

Desta maneira, a vergonha é muito menos lógica que a culpa. A culpa está associada a eventos que podem ser definidos em categorias jornalísticas objetivas: quem, o quê, onde, quando e por que. Mas a vergonha não está tão preocupada com os detalhes.

Viver com Culpa e Vergonha

Para podermos sobreviver nas selvas fora do Éden, necessitamos aprender a lidar com a culpa e a vergonha. Necessitamos de soluções para abordar os fatos de transgressão, a nossa culpa. Mas também necessitamos de ajuda para navegar o trauma emocional que sentimos como resultado de nossos pecados e dos pecados de outros que se espalham até nós. Ambas estas crianças, Culpa e Vergonha, ameaçarão nossa existência. Mas cuidado especial com o menino.

Como cristãos, nossa culpa, no sentido mais profundo, foi completamente tratada ao nos acertarmos com Deus, quando confiamos em Jesus. Isto, a Bíblia chama de justificação. É um evento rápido e decisivo que acontece na conversão. Mas o processo de aplicar a verdade do evangelho às nossas vidas, aquilo que a Bíblia chama de santificação, dura a vida inteira e pode ser bem bagunçado.

A vergonha nos assombra mesmo muito tempo após termos lidado com a culpa. Mas não podemos cair na sua conversa. Necessitamos confrontar tanto nossa culpa quanto nossa vergonha com o evangelho da graça.

É por isto que precisamos tratar da vergonha lembrando-nos de como Deus tratou de nossa culpa. Nossa culpa foi perdoada de forma objetiva na cruz. Em Cristo, Deus afastou nossos pecados de nós, tanto quanto o Oriente dista do Ocidente (Sl 103.12). Mas a vergonha se recusará a aceitar nossa nova identidade. Não podemos deixar que ela tenha a última palavra.

A voz da vergonha nos dirá que nós somos os nossos pecados, ou que somos os pecados dos outros. Necessitamos reorientar nossa percepção própria baseada na identidade que nos foi dada por Jesus. Necessitamos contestar a voz da vergonha com a verdade do evangelho de que somos inteiros, somos renovados, somos amados, somos perdoados e somos adotados. Nada pode nos separar do amor de Cristo (Rm 8.38-39).

Ao nos recordarmos destas verdades em comunidade, podemos começar a abafar as acusações persistentes da vergonha, com canções e sermões sobre uma cruz vazia, um túmulo vazio, uma vida nova e um Rei em seu trono. É verdade, a vida nas selvas é dura, mas temos bons companheiros, um guia confiável e a esperança de uma cidade melhor (Hb 11.16).

A Bíblia nos mostra que podemos viver bem nas selvas porque sabemos que Jesus nos guia quando a atravessamos. Ele é nosso Bom Pastor, quer seja junto a águas de descanso e pastos verdejantes, ou pelo vale da sombra da morte (Sl 23). E um dia ele nos levará para o lar, longe das selvas.

Traduzido por Mariana Ciocca Alves Passos

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